Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO
A reforma política foi enterrada essa semana. Não será nem a primeira vez, nem a última, que isso acontece. A diversidade de interesses que envolve uma mudança eleitoral e partidária é tal que não favorece a formação de maiorias parlamentares sólidas. O dissenso acaba sendo, sempre, o responsável pela estabilidade das regras eleitorais e partidárias. A rigor, as alterações introduzidas nas regras partidárias e eleitorais pela Constituição de 88 não negaram as tradições políticas - antes disso, adequaram as normas à nova democracia sem romper com as tradições partidárias arraigadas na vida brasileira, como o voto proporcional e personalizado que consagra o eleito como dono de seu mandato, com mais poder sobre ele do que o seu próprio partido. O poder constituinte atuou, assim, em duas direções: como reação ao período ditatorial anterior, deu forte conteúdo democrático ao texto constitucional, consagrando eleições em todos os níveis e instituindo enorme liberalidade para a constituição de partidos políticos; como restabelecimento de tradições afrouxadas no regime autoritário, consolidou um sistema político sem obrigações de lealdade partidária e restabeleceu, assim, o poder dos líderes regionais donos de votos sobre os partidos.
Ao longo de toda a Constituinte, e após a promulgação da nova Constituição, em 1988, propostas de alterações substantivas nessa realidade foram abandonadas por ausência de maiorias. Assim, o eterno debate sobre o fim do voto proporcional para a eleição de parlamentares municipais, estaduais e federais foi inviabilizado; a cláusula de barreira para o funcionamento dos partidos políticos (mínimo de votos para ter funcionamento parlamentar) foi instituída, mas sua vigência sucessivas vezes adiada, até que foi definitivamente derrubada pelo Judiciário. Na verdade, a única mudança de fato instituída nesse período foi a possibilidade de reeleição para cargos executivos - ainda assim, em termos. Na tradição brasileira, a proibição de reeleição era contornada pela alternância de candidaturas dentro de um mesmo grupo ou família; a partir da reeleição, essa manobra passou a ser feita apenas depois de uma reeleição.
Uma mudança proposta na legislação eleitoral ou partidária sempre prejudicará alguns partidos - aí reside a impossibilidade do consenso. É curioso, todavia, como não existe maniqueísmo nisso.
Na reforma política enterrada essa semana, por exemplo, convergiram favoravelmente à instituição da lista fechada para as eleições parlamentares o PT, o PSDB, o DEM e o PCdoB.
"Racharam" com o PT oito pequenos partidos da base aliada. A lista fechada é uma forma de controle efetivo da agremiação sobre os eleitos, de forma a garantir fidelidade aos seus princípios nas votações do Legislativo. O PT sempre foi favorável a essa mudança. O PSDB e o DEM, como principais partidos de oposição, convergiram para isso. A lista pode ser uma forma de neutralizar o poder de atração que o governo federal exerce sobre as lideranças estaduais, seja ele e elas de que partido forem, na tradição política brasileira. Uma oposição mais orgânica só é possível com partidos mais sólidos.
Como a questão diz respeito à sobrevivência de cada político e de cada partido, a solução defendida pelo deputado José Genoíno (PT-SP) para desenterrar a reforma política no futuro é uma tentativa de sair desses reiterados dilemas colocados pelo sistema político a cada proposta de mudança. Genoíno sugere que os eleitos em 2010 para a Câmara e para o Senado, no período de um ano, tenham simultaneamente às suas funções legislativas normais poderes constituintes para mudar as normas constitucionais relativas ao Executivo e Legislativo. Isso incluiria não apenas as regras de funcionamento partidário e as normas eleitorais, como o papel do Senado, que não constitui efetivamente uma casa revisora, e as regras de edição de medidas provisórias, que dão poder excessivo ao Executivo. Nesse amplo escopo, estão incluídas questões tão polêmicas como as cláusulas de barreira e a fidelidade partidária, que estão hoje no formato definido pelo Judiciário; a suplência dos senadores; o fim das alianças nas eleições proporcionais; além, é lógico, da eleição para o Legislativo por listas partidárias.
Os temas continuarão polêmicos, mas o parlamentar acredita que uma eleição em que está em jogo também um mandato constituinte obrigará os partidos a conformarem-se de forma mais orgânica no pleito, de forma a garantir que seus eleitos ajam de acordo com os interesses e convicções da agremiação, não os seus particulares. Genoíno acha que esse mandato específico levará o tema reforma política para a campanha eleitoral, obrigando um debate direto com o eleitor sobre o tema. As mudanças seriam feitas pela maioria simples dos votos, o que facilitaria os acordos interpartidários - para se alterar uma Constituição, é preciso ter três quintos da Câmara e três quintos do Senado, em dois turnos, em cada casa, e isso nenhum governo conseguiu, exceto o de FHC para instituir a reeleição. Para garantir que as reformas se configurem como produto de um debate mais popular, o deputado defende um referendo às mudanças feitas pelos constituintes de 2011.
Nada garante que a Constituinte desempaque o debate e a reforma política, mas pode ser uma discussão definitiva sobre o tema. Há quem defenda que o problema do sistema político não são as regras eleitorais ou partidárias, e que sucessivas mudanças, em vez de melhorá-lo, interrompem um processo de amadurecimento que é natural e obrigatório, dada a pouca tradição da democracia brasileira. O simples fato de que, dessa vez, o fim da reforma política perdeu de vez coloração ideológica, todavia, pode ser um sinal de que o estágio da recente democracia brasileira requer um debate sobre o formato institucional dos poderes que emanam do voto popular - Executivo e Legislativo - e das eventuais deficiências formais no sistema representativo instituído pelas Constituição de 1988. Não custa pagar para ver.
Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
A reforma política foi enterrada essa semana. Não será nem a primeira vez, nem a última, que isso acontece. A diversidade de interesses que envolve uma mudança eleitoral e partidária é tal que não favorece a formação de maiorias parlamentares sólidas. O dissenso acaba sendo, sempre, o responsável pela estabilidade das regras eleitorais e partidárias. A rigor, as alterações introduzidas nas regras partidárias e eleitorais pela Constituição de 88 não negaram as tradições políticas - antes disso, adequaram as normas à nova democracia sem romper com as tradições partidárias arraigadas na vida brasileira, como o voto proporcional e personalizado que consagra o eleito como dono de seu mandato, com mais poder sobre ele do que o seu próprio partido. O poder constituinte atuou, assim, em duas direções: como reação ao período ditatorial anterior, deu forte conteúdo democrático ao texto constitucional, consagrando eleições em todos os níveis e instituindo enorme liberalidade para a constituição de partidos políticos; como restabelecimento de tradições afrouxadas no regime autoritário, consolidou um sistema político sem obrigações de lealdade partidária e restabeleceu, assim, o poder dos líderes regionais donos de votos sobre os partidos.
Ao longo de toda a Constituinte, e após a promulgação da nova Constituição, em 1988, propostas de alterações substantivas nessa realidade foram abandonadas por ausência de maiorias. Assim, o eterno debate sobre o fim do voto proporcional para a eleição de parlamentares municipais, estaduais e federais foi inviabilizado; a cláusula de barreira para o funcionamento dos partidos políticos (mínimo de votos para ter funcionamento parlamentar) foi instituída, mas sua vigência sucessivas vezes adiada, até que foi definitivamente derrubada pelo Judiciário. Na verdade, a única mudança de fato instituída nesse período foi a possibilidade de reeleição para cargos executivos - ainda assim, em termos. Na tradição brasileira, a proibição de reeleição era contornada pela alternância de candidaturas dentro de um mesmo grupo ou família; a partir da reeleição, essa manobra passou a ser feita apenas depois de uma reeleição.
Uma mudança proposta na legislação eleitoral ou partidária sempre prejudicará alguns partidos - aí reside a impossibilidade do consenso. É curioso, todavia, como não existe maniqueísmo nisso.
Na reforma política enterrada essa semana, por exemplo, convergiram favoravelmente à instituição da lista fechada para as eleições parlamentares o PT, o PSDB, o DEM e o PCdoB.
"Racharam" com o PT oito pequenos partidos da base aliada. A lista fechada é uma forma de controle efetivo da agremiação sobre os eleitos, de forma a garantir fidelidade aos seus princípios nas votações do Legislativo. O PT sempre foi favorável a essa mudança. O PSDB e o DEM, como principais partidos de oposição, convergiram para isso. A lista pode ser uma forma de neutralizar o poder de atração que o governo federal exerce sobre as lideranças estaduais, seja ele e elas de que partido forem, na tradição política brasileira. Uma oposição mais orgânica só é possível com partidos mais sólidos.
Como a questão diz respeito à sobrevivência de cada político e de cada partido, a solução defendida pelo deputado José Genoíno (PT-SP) para desenterrar a reforma política no futuro é uma tentativa de sair desses reiterados dilemas colocados pelo sistema político a cada proposta de mudança. Genoíno sugere que os eleitos em 2010 para a Câmara e para o Senado, no período de um ano, tenham simultaneamente às suas funções legislativas normais poderes constituintes para mudar as normas constitucionais relativas ao Executivo e Legislativo. Isso incluiria não apenas as regras de funcionamento partidário e as normas eleitorais, como o papel do Senado, que não constitui efetivamente uma casa revisora, e as regras de edição de medidas provisórias, que dão poder excessivo ao Executivo. Nesse amplo escopo, estão incluídas questões tão polêmicas como as cláusulas de barreira e a fidelidade partidária, que estão hoje no formato definido pelo Judiciário; a suplência dos senadores; o fim das alianças nas eleições proporcionais; além, é lógico, da eleição para o Legislativo por listas partidárias.
Os temas continuarão polêmicos, mas o parlamentar acredita que uma eleição em que está em jogo também um mandato constituinte obrigará os partidos a conformarem-se de forma mais orgânica no pleito, de forma a garantir que seus eleitos ajam de acordo com os interesses e convicções da agremiação, não os seus particulares. Genoíno acha que esse mandato específico levará o tema reforma política para a campanha eleitoral, obrigando um debate direto com o eleitor sobre o tema. As mudanças seriam feitas pela maioria simples dos votos, o que facilitaria os acordos interpartidários - para se alterar uma Constituição, é preciso ter três quintos da Câmara e três quintos do Senado, em dois turnos, em cada casa, e isso nenhum governo conseguiu, exceto o de FHC para instituir a reeleição. Para garantir que as reformas se configurem como produto de um debate mais popular, o deputado defende um referendo às mudanças feitas pelos constituintes de 2011.
Nada garante que a Constituinte desempaque o debate e a reforma política, mas pode ser uma discussão definitiva sobre o tema. Há quem defenda que o problema do sistema político não são as regras eleitorais ou partidárias, e que sucessivas mudanças, em vez de melhorá-lo, interrompem um processo de amadurecimento que é natural e obrigatório, dada a pouca tradição da democracia brasileira. O simples fato de que, dessa vez, o fim da reforma política perdeu de vez coloração ideológica, todavia, pode ser um sinal de que o estágio da recente democracia brasileira requer um debate sobre o formato institucional dos poderes que emanam do voto popular - Executivo e Legislativo - e das eventuais deficiências formais no sistema representativo instituído pelas Constituição de 1988. Não custa pagar para ver.
Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras
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