Nos cortes de gastos anunciados ontem pelo governo há mais vento que caroço. Combater os desvios ou aumentar a eficiência do gasto não é corte, é apenas o normal a se fazer. Reestimar para baixo receitas que estavam infladas é voltar à realidade. Cortar emendas de parlamentares ocorre todo ano. Se quiser fazer um ajuste, o governo tem que ir além das palavras.
E em algumas palavras, eles se traem. O ministro Guido Mantega, por exemplo, disse na apresentação do corte de R$50 bilhões que vai perseguir "a meta cheia" de superávit. "Não será usado nenhum artifício", disse o ministro, para logo em seguida se corrigir: "Não que tenhamos usado artifício, essa palavra não é correta."
Foi a palavra mais correta que ele disse na entrevista. Como todos viram, o governo no ano passado lançou mão de inúmeros artifícios contábeis para inflar as receitas num ano em que elas cresceram fortemente por causa do PIB alto. Mesmo assim, não cumpriu a meta de superávit primário.
O economista Raul Velloso, especialista em contas públicas, alertou que o corte anunciado foi sobre a Lei Orçamentária, ou seja, o que estava previsto para gastar em 2011. Do ponto de vista fiscal e monetário, o que interessa é o corte sobre o que foi executado em 2010. A comparação não pode ser feita com a Lei Orçamentária porque ela pode ter sido inchada com uma previsão excessivamente otimista de receita.
Houve no mercado financeiro quem considerasse o corte um bom sinal. Antes do anúncio, o economista Roberto Padovani, do WestLB, avaliou que se o corte fosse de R$50 bilhões estaria dentro do esperado pelo mercado. Disse que o mais relevante seria interromper a trajetória de deterioração fiscal e assim chegar perto da meta estabelecida para este ano.
Depois do anúncio, Felipe Salto, da Tendências consultoria, considerou que se o corte for cumprido pode ser o fim da "contabilidade criativa" que foi usada no ano passado. Ele acha também que o governo deu um bom sinal quando resistiu à pressão das centrais por um salário mínimo maior; e aponta outro bom sinal no fato de R$25 bilhões dos cortes serem em gastos de custeio dos ministérios.
Outros economistas, no entanto, apontaram erros do anúncio, como Sérgio Vale, da MB Associados. Ele pondera que mesmo com o corte de R$50 bilhões haverá aumento sobre 2010 se for retirado da conta o efeito da capitalização da Petrobras. A receita, por essa conta, terá um crescimento de 14%, que é quase o mesmo que subiu em 2010, com diferenças fundamentais: no ano passado ela cresceu porque a base de comparação era baixa; este ano, o país não crescerá tanto quanto no passado.
Monica de Bolle, da Galanto consultoria, acha que o governo poderia ter feito mais. Para ela, contingenciamento não é exatamente corte, mas uma postergação dos gastos.
O que mais impressiona na comunicação dos cortes, que foram discutidos numa longa reunião noturna de véspera, é a mesmice de outros momentos em que o governo tentou impressionar: contratar uma consultoria da FGV para ver onde está havendo gastos excessivos, fazer uma proclamação de que se fará mais com menos, cortar em 50% gastos de viagens; proibir a compra ou aluguel de imóveis e a compra de novos carros. Tudo isso, no fundo, é muito pouco. Alguns ralos permanecerão, como as transferências para o BNDES. O ministro Guido Mantega prometeu apenas fazer um aporte menor. Esse aporte no BNDES não entra como despesa e é portanto um gasto até mais problemático, porque teoricamente é apenas um empréstimo.
Outro anúncio foi a suspensão dos benefícios concedidos em 2009/2010. Esses estímulos foram concedidos para tirar o país da crise, já deveriam ter sido suspensos no ano passado. Foi um erro terem sido mantidos até agora.
Gil Castelo Branco, do Contas Abertas, cujo trabalho é de esquadrinhar as contas públicas, acredita que tudo o que o governo fez foi anunciar uma lista de desejos. Ele acha que não ficou claro como serão cortados os R$50 bilhões. Aliás, essa é também a ponderação de Raul Velloso: a falta de detalhamento torna mais difícil o trabalho de avaliar a validade ou não dos cortes. Gil achou estranho que tenha levado tanto tempo para um anúncio tão vazio, sem nenhuma ação concreta:
- O corte nas emendas ainda será discutido com os ministérios, ninguém sabe que projetos serão afetados. Reduzir 50% o gasto com passagem é mínimo, não estamos falando de corte na casa dos bilhões. Há um conflito entre anunciar o corte, para mostrar austeridade, mas ao mesmo tempo não criar dificuldade política.
Uma das dificuldades é que se o governo anunciar diretamente onde vai cortar, ele pode ter mais conflitos com o Congresso, dividir ainda mais seus aliados, como as centrais sindicais. Isso aumenta a dificuldade de executar os cortes ao longo do ano.
Apesar de o governo ter dito que nada será mudado no PAC, a experiência mostra que é no investimento que se faz o ajuste. O PAC tem bons e maus projetos, portanto, o ideal é que se fizesse uma escolha dos melhores projetos para serem preservados.
Pior do que anunciar intenções e chamá-las de corte ou ajuste é a insistência com que o ministro da Fazenda subestima a inflação. Ontem, novamente, ele mostrou mais uma vez sua leniência com o problema quando disse que o problema é passageiro e que cumprir a meta não é cumprir o centro da meta. Autoridades perseguem o centro, mesmo sabendo que algum choque pode elevar o índice. Mas em fevereiro já avisar que o centro da meta está abandonado é convocar a inflação a subir mais.
FONTE: O GLOBO
E em algumas palavras, eles se traem. O ministro Guido Mantega, por exemplo, disse na apresentação do corte de R$50 bilhões que vai perseguir "a meta cheia" de superávit. "Não será usado nenhum artifício", disse o ministro, para logo em seguida se corrigir: "Não que tenhamos usado artifício, essa palavra não é correta."
Foi a palavra mais correta que ele disse na entrevista. Como todos viram, o governo no ano passado lançou mão de inúmeros artifícios contábeis para inflar as receitas num ano em que elas cresceram fortemente por causa do PIB alto. Mesmo assim, não cumpriu a meta de superávit primário.
O economista Raul Velloso, especialista em contas públicas, alertou que o corte anunciado foi sobre a Lei Orçamentária, ou seja, o que estava previsto para gastar em 2011. Do ponto de vista fiscal e monetário, o que interessa é o corte sobre o que foi executado em 2010. A comparação não pode ser feita com a Lei Orçamentária porque ela pode ter sido inchada com uma previsão excessivamente otimista de receita.
Houve no mercado financeiro quem considerasse o corte um bom sinal. Antes do anúncio, o economista Roberto Padovani, do WestLB, avaliou que se o corte fosse de R$50 bilhões estaria dentro do esperado pelo mercado. Disse que o mais relevante seria interromper a trajetória de deterioração fiscal e assim chegar perto da meta estabelecida para este ano.
Depois do anúncio, Felipe Salto, da Tendências consultoria, considerou que se o corte for cumprido pode ser o fim da "contabilidade criativa" que foi usada no ano passado. Ele acha também que o governo deu um bom sinal quando resistiu à pressão das centrais por um salário mínimo maior; e aponta outro bom sinal no fato de R$25 bilhões dos cortes serem em gastos de custeio dos ministérios.
Outros economistas, no entanto, apontaram erros do anúncio, como Sérgio Vale, da MB Associados. Ele pondera que mesmo com o corte de R$50 bilhões haverá aumento sobre 2010 se for retirado da conta o efeito da capitalização da Petrobras. A receita, por essa conta, terá um crescimento de 14%, que é quase o mesmo que subiu em 2010, com diferenças fundamentais: no ano passado ela cresceu porque a base de comparação era baixa; este ano, o país não crescerá tanto quanto no passado.
Monica de Bolle, da Galanto consultoria, acha que o governo poderia ter feito mais. Para ela, contingenciamento não é exatamente corte, mas uma postergação dos gastos.
O que mais impressiona na comunicação dos cortes, que foram discutidos numa longa reunião noturna de véspera, é a mesmice de outros momentos em que o governo tentou impressionar: contratar uma consultoria da FGV para ver onde está havendo gastos excessivos, fazer uma proclamação de que se fará mais com menos, cortar em 50% gastos de viagens; proibir a compra ou aluguel de imóveis e a compra de novos carros. Tudo isso, no fundo, é muito pouco. Alguns ralos permanecerão, como as transferências para o BNDES. O ministro Guido Mantega prometeu apenas fazer um aporte menor. Esse aporte no BNDES não entra como despesa e é portanto um gasto até mais problemático, porque teoricamente é apenas um empréstimo.
Outro anúncio foi a suspensão dos benefícios concedidos em 2009/2010. Esses estímulos foram concedidos para tirar o país da crise, já deveriam ter sido suspensos no ano passado. Foi um erro terem sido mantidos até agora.
Gil Castelo Branco, do Contas Abertas, cujo trabalho é de esquadrinhar as contas públicas, acredita que tudo o que o governo fez foi anunciar uma lista de desejos. Ele acha que não ficou claro como serão cortados os R$50 bilhões. Aliás, essa é também a ponderação de Raul Velloso: a falta de detalhamento torna mais difícil o trabalho de avaliar a validade ou não dos cortes. Gil achou estranho que tenha levado tanto tempo para um anúncio tão vazio, sem nenhuma ação concreta:
- O corte nas emendas ainda será discutido com os ministérios, ninguém sabe que projetos serão afetados. Reduzir 50% o gasto com passagem é mínimo, não estamos falando de corte na casa dos bilhões. Há um conflito entre anunciar o corte, para mostrar austeridade, mas ao mesmo tempo não criar dificuldade política.
Uma das dificuldades é que se o governo anunciar diretamente onde vai cortar, ele pode ter mais conflitos com o Congresso, dividir ainda mais seus aliados, como as centrais sindicais. Isso aumenta a dificuldade de executar os cortes ao longo do ano.
Apesar de o governo ter dito que nada será mudado no PAC, a experiência mostra que é no investimento que se faz o ajuste. O PAC tem bons e maus projetos, portanto, o ideal é que se fizesse uma escolha dos melhores projetos para serem preservados.
Pior do que anunciar intenções e chamá-las de corte ou ajuste é a insistência com que o ministro da Fazenda subestima a inflação. Ontem, novamente, ele mostrou mais uma vez sua leniência com o problema quando disse que o problema é passageiro e que cumprir a meta não é cumprir o centro da meta. Autoridades perseguem o centro, mesmo sabendo que algum choque pode elevar o índice. Mas em fevereiro já avisar que o centro da meta está abandonado é convocar a inflação a subir mais.
FONTE: O GLOBO
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