Decisão do Supremo não se discute: cumpre-se. Mas, é bom lembrar, não se trata de medida autoritária. O aspecto restritivo deixado no ar não ultrapassa o campo jurídico. Ao Supremo Tribunal Federal cabe dizer a última palavra na área de competência legal. Mas a palavra é de quem a pede ou a toma pela convicção. A democracia tem a sua dinâmica e nada está imune à razão e à emoção.
Daí para baixo, juízos de valor não são privativos de ministros do Supremo e também estão ao alcance da cidadania. A sociedade é um campo fértil onde a democracia viceja com o vigor que a tonifica nas variações ao longo da História. Decisões do Supremo podem e devem ser debatidos livremente pelos cidadãos.
Não custa lembrar, no caso brasileiro, que a liberdade de opinião está calibrada para o exercício do contraditório e não se confina à paixão do futebol. Opiniões pairam acima de eleições e de governos, dos municípios à República, e, onde quer que se apresentem, dizem respeito à democracia que vem sendo lapidada aos poucos, à medida que os costumes nacionais trocam seu avesso tradicional pela modernidade.
A oportunidade de reavaliar o mensalão, sob seus múltiplos aspectos, não pode ser desperdiçada e, se não tiver efeito exemplar, o saldo da política brasileira vai apenas trocar a beira do abismo retórico pelo o risco de disparar ladeira abaixo, e que não seria a última instância.
A ordem inversa favoreceria o entendimento democrático da frase portadora de uma sombra juridicamente óbvia, mas sem familiaridade com a cidadania. Nada impede a discussão popular sobre o julgamento do mensalão, que merecia atender por um nome mais explícito do que o aumentativo sem conteúdo. Do ponto de vista da cidadania e da democracia, devia-se acreditar que decisões do Supremo estão acima de recursos, mas podem e devem ser discutidas pelo proveito de que, nas divergências de opinião, pouco se perde na hora e alguma vantagem se resgata com o tempo. E se dissiparia o efeito residual de sotaque autoritário, que soa mal aos ouvidos como sentença definitiva: o Supremo falou, está falado.
Mutatis mutandi, a verdade é que, fora do domínio jurídico, a oportunidade de comentar decisões do Supremo, como está ocorrendo com suficiente teor de amadorismo, ganharia sotaque brasileiro se, depois do essencial, uma adversativa ressalvasse que os cidadãos podem e devem discutir à vontade decisões dos ministros, com inegável proveito para a credibilidade da democracia que já não é a “plantinha tenra” a que se referia Octavio Mangabeira na passagem da ditadura anterior à legalidade democrática em 1945.
Desenha-se imperdível a oportunidade de esterilizar na vida pública os hábitos que levaram a democracia a ser via de enriquecimento pessoal, mediante desempenho do mandato representativo ou exercício de responsabilidades públicas. O efeito geral pode dissuadir em tempo os que tomaram esse caminho como se fosse um ato de distração cometido pelos que pedem aos cidadãos um voto para servir, passam ao verbo pronominal e se servem com falta de cerimônia digna de algo mais do que figurar em lista de aproveitadores como se fosse exercício de cidadania.
É insuficiente o destaque em que o ex-presidente Lula, sem se dar conta das palavras e movido pela incapacidade de ficar calado, nem esperou o espetáculo terminar para depor contra ele próprio: no seu entender, não houve mensalão, e omitiu o resto com que está engasgado desde que deixou o poder. Se, por princípio, a História não se repete, Lula, por falta de princípios, não faz outra coisa senão chover no molhado.
O que tem faltado, da parte dele, Luiz Inácio Lula da Silva, é a coragem de assumir a responsabilidade política que o episódio do mensalão lhe reservou, e ele delegou ao chefe de seu Gabinete Civil na hora do aperto, mas à maneira de Pilatos. Se não houve o mensalão, por que não aplicou sua certeza na manutenção (ou na volta) de José Dirceu?
A ordem dos fatores altera o produto. Se fosse dito que “decisão do Supremo cumpre-se, mas se discute”, as cabeças não cederiam à timidez. Onde ficaria o centro de gravidade da sentença, num país em que a liberdade de divergir não fosse suspeita? No centro, acrescentaria o conselheiro Acácio, como avalista do óbvio. Que se cumprissem decisões do Supremo, mas fosse admitida como natural a liberdade de discuti-las, nos efeitos e conseqüências a que ficariam expostas. O resto viria por gravidade.
FONTE: JORNAL DO BRASIL
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