- O Globo
Não só a estimativa de aumento real da receita pública em 2015, conforme os termos do programa de contingenciamento fiscal anunciado pelo governo, parece estar fora da realidade. Boa parte do já longo rol de especulações sobre as disputas e desavenças entre os ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e Nelson Barbosa, do Planejamento, não está nem aí para o mundo real.
Das marchas e contramarchas do episódio da ausência de Levy, sob a frágil alegação de uma gripe, na apresentação do plano de bloqueio de despesas públicas, os fatos observáveis só permitem as seguintes conclusões: 1) houve uma disputa entre duas posições e Levy ficou insatisfeito com a decisão adotada; e 2) a definição do volume total do bloqueio, com uma casa decimal abaixo de R$ 70 bilhões, não foi uma coincidência e serviu para mostrar a Levy que o apoio declarado da presidente Dilma Rousseff não equivale a um cheque em branco.
Em vista das circunstâncias do momento, a realidade, tanto no aspecto econômico quanto no político, impõe limites bem estreitos. É essa realidade que não dá espaço a um ajuste mais profundo, nos moldes e no grau que talvez fosse do agrado de Levy, mas também não permite acreditar ser factível uma retomada do crescimento na rapidez desejada - e insinuada - por Barbosa.
Desencontros entre Fazenda e Planejamento são a regra na história brasileira há pelo menos meio século. Depois de 1964, com a criação da estrutura da administração federal ainda vigente no essencial, ministros das duas pastas quase sempre defenderam políticas econômicas divergentes - a Fazenda na direção da austeridade; o Planejamento, numa linha mais expansionista -, sob a arbitragem do presidente da República. Simonsen e Reis Velloso, sob Geisel; Malan e Serra, com Fernando Henrique; Palocci e Mantega, no primeiro mandato de Lula; são exemplos notórios.
As dissensões entre os chefes das duas principais pastas da área econômica são, aliás, herdeiras das assimetrias de pensamento que opõem condutores da política econômica brasileira pelo menos desde a segunda metade do século passado. Já a primeira das 12 "Leis de Kafka" originais - a do "comportamento discrepante" -, estabelecidas, ainda em 1961, em fino texto pelo polêmico economista e diplomata Roberto Campos, ministro dos governos militares, delimitava os termos da dicotomia agora revivida.
Formuladas em conjunto com o economista Alexandre Kafka, representante do Brasil no FMI por mais de duas décadas e primo distante do famoso escritor tcheco, as "leis" descreviam, em tom irônico e jocoso, o funcionamento da economia brasileira e latino-americana. Dita a primeira "lei de Kafka": "independentemente dos homens e de suas intenções, sempre que o Ministério da Fazenda se entrega à austeridade financeira, o Banco do Brasil escancara os cofres - e vice-versa". Trocando o Banco do Brasil (que então também fazia o papel de Banco Central) pelo Planejamento dos anos mais recentes e promovendo ligeiras adaptações que não lhe tiram a essência, a "lei do comportamento discrepante" sobrevive aos tempos da política econômica brasileira com surpreendente vigor.
Essas lições da História sugerem que, entre os embates de bastidores de ministros e a enxurrada de especulações sobre seu desfecho, o que realmente tem importância é entender que, no caso atual, o processo de reequilíbrio das contas públicas, requisito para uma retomada da atividade econômica menos frágil e intermitente, assim como para pelo menos conseguir estabilizar da relação entre a dívida pública e o PIB, não se resolverá no curto prazo, nem ocorrerá em linha reta e está longe de se assemelhar a um passeio na brisa do campo.
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