- O Globo
Durante séculos, os navegantes tinham razão em evitar o oceano, por causa dos limites da Terra plana. Tinham razão, mas estavam errados, porque a Terra era redonda. Estamos fazendo o mesmo no Brasil: enfrentamos nossos problemas sem perceber que as soluções propostas são baseadas em ilusões. Nossa democracia precisa redondear o Brasil, buscando soluções que combinem a razão imediatista dos eleitores com a lógica necessária ao enfrentamento de nossos problemas. Diante de tanta violência e do descrédito da polícia, o eleitor tem razão em querer armas para se defender. Mas, apesar da razão, o eleitor está errado, porque estas mudanças não levarão ao fim da violência.
A razão de que mais armas diminui violência se baseia em falsas premissas, como ao dizer-se, olhando para o horizonte, que a Terra é plana. O argumento de que as armas irão apenas para as mãos dos homens de bem não se sustenta, porque antes do primeiro crime os atuais bandidos tinham bons antecedentes. Com mais armas nas mãos, disputas entre vizinhos com bons antecedentes poderão se transformar em guerras, quando eles puderem usar as armas guardadas em casa; a raiva transforma a posse em porte, automaticamente, mesmo que ilegal. O direito à posse vai levar os bandidos a assaltarem casas de bons cidadãos em busca de armas, em vez de dinheiro; diante do risco de uma arma guardada, entrarão atirando. A generalização da posse de armas vai provocar duelos dos cidadãos de bem reagindo ao assaltante que entrará atirando.
O mesmo serve para a redução da maioridade penal. Tem razão o eleitor em não se conformar com um delinquente juvenil matar e continuar solto: impune e ameaçando. Mas universalizar a redução da maioridade pode ampliar a criminalidade: a cadeia será a universidade dos pequenos delinquentes para depois cometerem crimes maiores. A solução é construir uma sociedade pacífica sem armas nem raiva; graças a um longo projeto de pacificação nacional, onde o principal vetor será a educação. Para enfrentar a violência imediata, é preciso fortalecer a polícia, valorizar o policial. Ao armar a população, estamos passando a mensagem de que a polícia é ineficiente, incompetente e desnecessária. Isto é como ver a Terra plana, olhando apenas para o horizonte.
A diferença entre a “razão” e o “certo” também aparece nos demais problemas. Queremos resolver os problemas do desemprego, da concentração de renda, da baixa produtividade, da persistência da pobreza, mas, no lugar de iniciarmos o processo de redondear o Brasil por meio da necessária revolução — para termos uma educação de base com qualidade e igual para todos —, preferimos soluções simplistas. O problema é que, para redondear os problemas, seria preciso eleger políticos que acreditem que o Brasil é complexo, é redondo, e digam isso aos eleitores, desde a campanha. Mas para o eleitor é mais obvio e crédulo ver o Brasil plano e votar com a razão do horizonte curto, mesmo que as propostas escolhidas não resolvam, mas iludam, como a visão da Terra plana iludiu por milênios.
*Cristovam Buarque é senador (PPS-DF)
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