- Folha de S. Paulo
O padrão de representação política deu lugar à pura cacofonia
As redes sociais representam uma nova espécie de política literária, no sentido que lhe empresta Alexis de Tocqueville (1805-1859) em o “Antigo Regime e a Revolução”. Explico: na França pré-revolucionária, a sociedade tornara-se excepcionalmente politizada, qualquer episódio cotidiano deflagrava —à semelhança de textões nas redes sociais hoje —vivas elocubrações.
“Todos aqueles que a prática cotidiana da legislação estorvava apaixonaram-se rapidamente por essa política literária. Não houve um pequeno proprietário devastado pelos coelhos do gentil-homem seu vizinho que não gostasse de ouvir dizer que a razão condenava indistintamente todos os privilégios, que todos os homens deveriam ser iguais.”
Cotidianamente todos os “faits divers” da política engendram cacofonia. Esta hiperpolitização é produto de várias causas estruturais combinadas, das quais comento apenas três.
A primeira é que o acesso amplo a informações instaura uma hipertransparência das ações públicas e privadas de agentes políticos, politizando a informação, cujo preço relativo aumenta, o que cria fortes incentivos para seu controle.
A segunda é que as redes sociais têm reduzido brutalmente os custos da ação coletiva ao possibilitar, a baixíssimo custo, a interação instantânea de milhares de pessoas, o que só seria possível no passado através de instituições intermediárias como igrejas, sindicatos e associações. A participação política alargou-se de forma colossal: sem sair de casa, um cyberativista pode ter grande incidência política.
A terceira, derivada desta última, é mais relevante para nossos propósitos aqui: o monopólio da representação política pelos partidos está fortemente tensionado.
Tocqueville enxergou a relação substitutiva entre ação de cidadãos e partidos. No caso francês, os primeiros foram mobilizados pelo que chamou de “políticos literários”; no nosso país e fora dele, pelos novos literatos de rede social, que inclui gente do próprio governo:
“E assim cada paixão pública fantasiou-se de filosofia: a vida política foi violentamente rechaçada na literatura e os escritores, ao tomarem em suas mãos a direção da opinião, preencheram, num momento dado, o lugar geralmente ocupado pelos dirigentes de partidos nos países livres.”
As mudanças produziram cidadãos hipercríticos, e uma espécie de democracia direta, selvagem, produto da aceleração exponencial do tempo político.
A reação populista aos desmandos dos atuais gentis-homens (as elites burocráticas e políticas) não produz bom governo —que exige uma combinação de conhecimento técnico e deliberação pública— apenas discursos hiperbólicos, pura política literária.
*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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