- O Estado de S.Paulo
Por mais que Trump tenha virado de cabeça para baixo a política externa americana, o país segue tendo muita força
Foi o rei Jaime I quem estabeleceu a primeira colônia norte-americana no início do século 17 nas terras da Virgínia. Jaime I ascendeu ao trono da Inglaterra em 1603 e em 1607 já era claro que enxergava-se como o “pai de todos os habitantes da Virgínia” – a palavra “colônia” não havia ainda sido introduzida para designar a ocupação inglesa. O termo usado era “plantação”, não apenas devido à principal atividade econômica da região, mas porque Jaime I via a Virgínia como a (im)plantação da Inglaterra na “América”.
Cerca de 400 anos se passaram até Donald Trump pousar triunfante na ilha desmazelada pelas agruras do Brexit, dessa vez para uma visita de Estado com toda a pompa e circunstância que tais eventos requerem. É claro que há protestos espalhados por Londres, é evidente que o banquete oferecido pela rainha contou com notáveis ausências. É também óbvio que os desafetos de Trump, entre eles o prefeito de Londres e membros do Partido Trabalhista (Labour Party) tenham proferido palavras de profundo desagrado com a presença de Trump e de contrariedade à maneira como está sendo recebido.
A visita de Trump parece espécie de fechamento de um ciclo para o reinício de outro que, ao que tudo indica, será a evolução do primeiro. O voto a favor do Brexit foi desferido há quase exatos três anos, em junho de 2016. Poucos meses depois, em novembro do mesmo ano, Donald Trump seria consagrado nas urnas norte-americanas. Não é irrazoável pensar nesses dois eventos como os marcos do ressurgimento do populismo-nacionalista que desde então se tornou quase endêmico, quase fetiche. Se o Brexit se revelou absoluto desastre político para o Reino Unido, com a desintegração do Partido Conservador e a degradação do Partido Trabalhista, expondo todo tipo de incompetência de, o mesmo não pode ser dito de Donald Trump, ainda.
Por mais que Trump tenha virado de cabeça para baixo a política externa americana, aproximando-se da Rússia, da Hungria, e até da Coreia do Norte, além de brigar abertamente com aliados impondo-lhes tarifas de importação como espécie de sanção econômica ou solução para todos os males, os Estados Unidos permanecem com força. Força geopolítica, força econômica. É claro que a guerra comercial com a China e as ameaças ao México e ao funcionamento da poderosa máquina produtiva que opera na América do Norte graças ao Nafta e ao seu eventual acordo sucessor, o USMCA, ainda podem ter graves repercussões econômicas para os EUA. Mas Trump é sujeito que vive intensamente o momento. E, o momento atual lhe agrada, independentemente das investigações que o perseguem.
Tanto lhe agrada que ele soube desferir o golpe mais certeiro apesar das palavras proferidas pela rainha durante o banquete, por alguns políticos, pela ainda primeira-ministra Theresa May. Todos esses fizeram questão de frisar a importância do multilateralismo, o papel dos EUA como guardião da geopolítica, como um dos principais países responsáveis pela preservação da ordem mundial concebida no pós-guerra. Nada disso, entretanto, interessa Donald Trump. O presidente norte-americano está, nesse exato momento, interessado em duas coisas e duas coisas apenas: nas eleições presidenciais de 2020 nos EUA e na tentativa de transformar o Brexit sem acordo com a União Europeia – o chamado “hard Brexit” – um sucesso. Essas duas coisas não são exatamente separáveis: o sucesso em garantir o Brexit sem acordo é por ele visto como a vitória de sua marca populista-nacionalista peculiar, aproveitando para, com ela, mandar recados claros para esses globalistas que ainda pululam na Europa e torcem para ele o nariz. Para além de outras mensagens, seria essa vitória outro aceno para a sua base, antecipando os temas de campanha. Para os defensores do Brexit a qualquer preço, o gesto de Trump de mostrar-se aberto a um acordo de livre-comércio com o Reino Unido é música angelical, além de espetacular gesto obsceno para o continente.
Intitulei este artigo de “A vingança”, mas é claro que Trump não quer dar o troco em Jaime I. Quiçá nem sequer saiba quem foi o monarca, ou se sabe, pouco deve lhe interessar. Contudo, não deixa de ser vingança o fato de que 400 anos após Jaime I inaugurar as colônias na Virgínia, Trump esteja prestes a tornar o Reino Unido absolutamente dependente dos EUA. De Brexit para Trump para a colonização às avessas nos moldes populistas-nacionalistas do século 21.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
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