- O Globo
Governo vê em cada professor, cada intelectual, um doutrinador de esquerda
A recente homenagem prestada na Academia Brasileira de Letras a José Aparecido de Oliveira, que faria 90 anos e foi o primeiro ministro da Cultura pós-ditadura, transformou-se em hora da saudade. Vários amigos exaltaram o espírito conciliador do homenageado, sua tolerância, sua dedicação à causa; enfim, valores tão em falta hoje.
Fiquei imaginando sua alegria diante do que o cinema e as Letras acabaram de conquistar: em Cannes, pela primeira vez, dois filmes nossos, numa mesma edição, faturaram dois troféus e, na literatura, o mais importante prêmio, o Camões, foi para Chico Buarque.
Tomara que eu esteja enganado, mas acho que não houve um telegrama de ministro, um “parabéns” de praxe aos agraciados, um tuíte sequer do presidente, ele que posta vários por dia sobre qualquer irrelevância. Em suma, um silêncio sintomático, como que dizendo “isso para nós não importa”, embora a chamada economia criativa seja responsável por 2,64% do nosso PIB.
Não é apenas desprezo, mas hostilidade. A cultura vem sendo tratada como inimiga, seja no plano da educação, seja no da arte. A ditadura militar usava a censura explícita; hoje, se usa a privação de recursos ou “contingenciamento”, um eufemismo que no caso esconde uma paranoia. O governo vê em cada professor, cada intelectual, um doutrinador de esquerda, como se a direita não tivesse capacidade de fazer a cabeça dos jovens.
Aliás, não tem mesmo, com um ministro que debocha dos estudantes fazendo uma ridícula imitação de Gene Kelly ou cometendo atentados contra a gramática, escrevendo “insitar” e substituindo Kafka por “cafta”.
No tributo a José Aparecido, quem melhor definiu a importância do tema foi a ministra Maria Elizabeth Rocha, a primeira mulher a integrar o Superior Tribunal Militar e única que votou por manter a prisão preventiva dos militares que desfecharam mais de 200 tiros para matar um músico e um catador de lixo inocentes.
“Foi o Estado fuzilando cidadãos, e isso não é aceitável”, ela declarou em seu voto, com a mesma coragem cívica com que advertiu em seu discurso na ABL: “Um país sem cultura é um país sem alma”.
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