- O Estado de S.Paulo
A crise econômica causada pela covid-19 pode inaugurar uma nova era no gerenciamento da dívida soberana
Não é hora de se preocupar com a dívida do governo. Enquanto os casos de covid-19 explodem e a atividade econômica trava, os governos têm razão em investir todos os recursos que podem nos esforços para limitar os custos humanos e econômicos da pandemia. Apesar dessa urgência, a crise empurrará os encargos da dívida soberana para um novo território. Ao longo do século passado, grandes crises globais ocasionaram empréstimos em larga escala por parte dos governos e mudanças – muitas vezes radicais – na maneira como estes lidam com seus credores.
É improvável que a batalha contra a covid-19 seja uma exceção. Os planos de recuperação econômica que estão sendo elaborados provavelmente vão superar os implementados durante a crise financeira; nos Estados Unidos, as medidas podem custar cerca de 10% do PIB. O impacto na produção e nas receitas tributárias também pode ser maior. É provável que pelo menos algumas economias acabem com dívidas muito superiores a 150% do PIB.
A história dos empréstimos governamentais nos últimos 100 anos pode ser dividida em três períodos. Entre o início da Primeira Guerra Mundial e o da Segunda, o conflito armado, a reconstrução e a Grande Depressão impuseram enormes demandas aos balanços dos governos. Durante esse período tumultuado, os governos muitas vezes se viram à mercê dos sentimentos do mercado. A Grã-Bretanha procurou manter a confiança do mercado reduzindo a dívida – que chegou a 140% do PIB logo depois da Primeira Guerra Mundial – por meio de uma austeridade dolorosa. O governo gerou superávits de 7% do PIB no orçamento primário ao longo da década de 20.
Os resultados foram desastrosos. A austeridade minou o crescimento econômico: a produção em 1928 ficou abaixo da registrada em 1918. Como consequência, a dívida continuou a subir, chegando a 170% do PIB em 1930. Ao observar essa amarga experiência, John Maynard Keynes disse que “certamente não valia a pena”.
Outras economias, forçadas a tomar medidas mais desesperadas, se saíram ainda pior. A Alemanha, enfraquecida pela guerra e incapaz de cumprir suas obrigações de dívida, afundou na hiperinflação. A deterioração do valor da moeda reduziu o fardo da dívida em relação ao PIB em 129 pontos porcentuais, mas a um custo social e econômico incalculável. Moratórias também foram comuns. Em 1933, os países que compunham quase metade do PIB global estavam sob alguma forma de reestruturação por dívida ou inadimplência.
Nova abordagem
Durante e após a Segunda Guerra Mundial, os governos das economias avançadas tentaram uma abordagem diferente. Depois do trauma dos 30 anos anteriores, a austeridade deixou de ser um meio politicamente sustentável de lidar com as dívidas acumuladas no período. Alguns países decretaram moratória ou experimentaram hiperinflação no pós-guerra.
Outros governos recorreram à repressão financeira – ou seja, forçaram os credores a ceder empréstimos sob condições pouco atrativas. Muitas das ferramentas da repressão financeira haviam sido utilizadas durante a guerra para financiar o conflito. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Federal Reserve comprou títulos do Tesouro para impedir que os rendimentos subissem para além de determinado nível. O governo também limitou as taxas de juros que os bancos podiam cobrar dos mutuários ou pagar aos depositantes, além de restringir os empréstimos bancários. Os controles de capital impediram os poupadores de buscar melhores retornos no exterior.
O efeito foi que instituições e famílias se viram forçadas a emprestar ao governo a taxas abaixo do mercado. À medida que os controles de preços dos tempos de guerra foram se abrandando, a inflação subiu para níveis relativamente modestos e a taxa de juros da dívida do governo, ajustada pela inflação, ficou negativa e assim permaneceu por boa parte das décadas seguintes.
De acordo com o trabalho de Carmen Reinhart, da Universidade de Harvard, e Belen Sbrancia, do FMI, as taxas de juros reais nas economias avançadas ficaram negativas por aproximadamente metade do tempo entre 1945 e 1980. Durante o período, o governo britânico pagou uma taxa de juros real média de apenas -1,7% e o governo francês, -6,6%. O efeito foi poderoso. Entre 1946 e 1961, a relação dívida/PIB dos Estados Unidos caiu 68 pontos porcentuais. Na década de 1970, esse número mergulhou para menos de 25% em todas as economias avançadas.
Uma terceira era começou na década de 1970. Os governos das economias avançadas afrouxaram o controle sobre os fluxos de capital e os sistemas financeiros, colocando-se mais uma vez à mercê dos mercados globais. Embora os mercados de títulos ocasionalmente tenham atormentado os políticos nas décadas de 1980 e 1990, aos poucos eles perderam o poder de instilar medo. A integração financeira global coincidiu com um aumento da poupança em relação ao investimento e um forte apetite pela segurança proporcionada pelos títulos dos países ricos com moedas estáveis.
Os custos dos empréstimos caíram constantemente, mesmo com o aumento do fardo da dívida. A crise financeira global só reforçou essa tendência. A dívida pública nos países ricos aumentou de 59% do PIB, em 2007, para 91% em 2013. No entanto, durante a última década, os governos do mundo rico puderam contrair empréstimos a taxas próximas a zero ou negativas.
Impressoras de dinheiro a todo vapor
A covid-19 significa que vem mais dívida por aí. Uma nova era de gerenciamento da dívida soberana talvez esteja prestes a começar. Ainda não se sabe ao certo o que esse período pode trazer. O regime de dívida pós-pandemia pode se assemelhar ao do imediato pós-guerra.
As provações dessa crise podem inspirar uma nova onda de investimentos em tecnologia e infraestrutura, gerando uma concorrência acirrada pelas reservas disponíveis e por custos mais altos nos empréstimos governamentais. A repressão financeira permitiria que os governos gerenciassem a situação, especialmente se barreiras a bens e capitais subirem como consequência dos bloqueios nacionais.
Por outro lado, pode ser difícil retomar o crescimento à medida que a pandemia diminuir. Os bancos centrais, em um esforço para aliviar as economias em dificuldades, já estão comprando grandes volumes de dívida do governo. O Fed está comprando quantidades ilimitadas de títulos do Tesouro; o Banco Central Europeu anunciou recentemente um esquema de compra de títulos de 750 bilhões de euros (US$ 809 bilhões).
Uma recuperação fraca poderia levar os bancos centrais a financiar grandes déficits fiscais com dinheiro que acabou de ser impresso, continuadamente. A experiência do Japão, antes considerada uma aberração econômica, será repetida em diversos lugares. Empréstimos financiados com dinheiro impresso, sem consequências inflacionárias, podem se tornar ideias populares no debate sobre os limites da dívida. Não seria a primeira vez que uma crise reescrevia a cartilha econômica. / Tradução de Renato Prelorentzou
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