- Folha de S. Paulo
A proposta de prioridade à economia sobre a vida está na lógica de Bolsonaro
A disposição das forças políticas, no tabuleiro do Poder, avançou em alterações importantes, nos últimos dias. Ainda que confundindo botinas com luvas, mulheres e furos, Bolsa e humanidade, o bolsonarismo oficial não foi contrastado pela oposição desde a sua posse. Dominou para nada que prestasse, aceito pela passividade proveitosa ou atemorizada diante da inépcia amalucada e regressiva. O contraste apareceu. Incipiente, mas já capaz de empurrar Bolsonaro e o bolsonarismo para mais próximos do seu lugar legítimo.
É o aparecimento quase simultâneo da lucidez independente no Congresso, há algum tempo puxada por Rodrigo Maia e, em algumas ocasiões, por Davi Alcolumbre; também da consciência ativada em muitos governadores, quase todos, tanto da sua responsabilidade como do seu poder; e, ainda, da marselhesa das panelas, som da opinião pública desalentada.
Essa combinação é uma força real, em condições de atenuar o estado caótico geral e o regressismo social e legal comum aos atos e projetos do governo. Não em condições, porém, de diminuir a alienação mental de Bolsonaro e dos seus três orientadores. Dotados de meios de resistência, como recusa a sanções, incidentes internacionais, mobilização de agitações com PMs, caminhoneiros, milícias. O cardápio é farto. E, sim ou não, com os militares.
Nosso falar, a propósito, precisa corrigir-se. A usual menção a militares inclui, além do Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Assim tem sido imprecisa e injusta. Marinha e Aeronáutica têm praticado um profissionalismo exemplar. Há muito tempo, e com mais razão nestes tempos, não se vê um almirante ou brigadeiro fazendo considerações públicas de fundo político, nem diretas nem disfarçadas.
As especulações de divisão e preocupações diversas nos comandos do Exército, ou divergências da tropa de generais entre si ou com Bolsonaro, em geral não têm indícios aceitáveis. Escalado ou voluntário para remendar falas de Bolsonaro, o general-vice Hamilton Mourão vem, sempre, com um "não se expressou bem" que, no máximo, traz vaguidão. É o suficiente, porém, para mostrar que a corrente do Exército no governo, representada por Mourão, não se opõe ao dito ou feito por Bolsonaro. Apenas procura não ser atingida, também, pela repercussão negativa do feito bolsonárico.
Como a já exausta última gota, o episódio que alterou a distribuição dos pesos políticos foi, na noite de terça (24), a fala de Bolsonaro em rede de TV. O contrassenso da alienação: uma leitura de mau texto para atacar a estratégia do seu governo no combate ao coronavírus. Mais contrassenso: fala em rede nacional para convocar os brasileiros a não cumprir o isolamento, na residência, recomendado pela Organização Mundial da Saúde, em nome da ciência, para evitar o contágio e diminuir as mortes. Bolsonaro propugnando a atividade econômica que seu governo, em 15 meses, jamais promoveu.
Bolsonaro, no entanto, em sua fala não fez mais do que ser Bolsonaro. Admite não conhecer estudo nem caso prático que apoie sua pregação contra o isolamento. Trata-se, pois, de uma intuição sua, um impulso instintual, algo vindo de suas profundezas mais recônditas. Da natureza do homem que tem como seu herói o chefe de crimes coronel Ustra; que fez e levou os filhos a ligação com milicianos homicidas; adepto do método "bandido bom é bandido morto"; que preferiria ver um filho morto a sabê-lo homossexual. Que instiga o aumento de tragédias rodoviárias, quer a população armada e libera arma até para menores de idade; defendeu e prestou homenagens parlamentares a assassinos, retira a proteção às tribos indígenas assediadas por matadores, propôs encerrar um confronto de traficantes na Rocinha com o lançamento aéreo de uma bomba na favela, ameaçou explodir bombas nos quartéis de seus companheiros no Exército: a morte alheia é indiferente a esse ser funesto, quando não é desejada.
A proposta de prioridade à economia, sobre a vida exposta das crianças escolares e dos adultos ativos, está na lógica e na natureza sinistra de Jair Bolsonaro. Já bem conhecida. Por que agora, ou só agora, causou indignação consequente, tanto pode dizer bem como dizer mal dos brasileiros. À sua escolha.
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