O combustível do populismo é real, mesmo que as soluções populistas sejam ilusórias
Existem
duas formas de falar em democracia.
A primeira é lembrar os poetas que deixaram páginas belíssimas sobre o governo
do povo, para o povo e pelo povo.
A
segunda é optar pelos realistas, que nos dão uma visão mais desencantada sobre
o fenômeno. O cientista político David
Stasavage pertence ao segundo grupo, e o seu mais recente livro, “The
Decline and Rise of Democracy: A Global History from Antiquity to Today”
(Princeton, 406 págs.), é um dos livros do ano.
Li
a obra de um fôlego só, assombrado pela inteligência do homem. Tese: se você
pensa que a democracia nasceu na Grécia, foi refinada em Roma, desapareceu na
Idade Média, reemergiu na Itália renascentista e foi reinventada pelos “pais
fundadores” dos Estados Unidos, você está enganado.
Formas
de “democracia primordial” (“early democracy”) encontram-se em variadas
regiões, em variadas civilizações, e sempre pelo mesmo motivo: quem governa
precisa de ajuda para governar. Precisa de dinheiro —e não é possível cobrar
impostos sem o consentimento daqueles que estão dispostos a contribuir. Precisa
de soldados —e não é possível ter exércitos sem o consentimento daqueles que
estão dispostos a lutar.
A
história da democracia é a história de uma troca: se o líder quer o meu
dinheiro ou a minha coragem, eu tenho uma palavra a dizer sobre os destinos da
comunidade.
Isso
foi válido na Atenas do século 5 a.C.. Mas também nas 13 colônias americanas do
século 18 ou nos países europeus durante e depois da Primeira Guerra Mundial.
Mesmo
o voto
feminino se explica por um estado de necessidade: se os homens lutavam
no front, era preciso que as mulheres ocupassem os postos de trabalho dos
machos para salvar a economia. Com essa emancipação econômica, chegou a
emancipação política.
Claro
que nem todas as civilizações optaram pela via democrática. Muitas optaram pela
via autocrática —e pelos motivos inversos: o poder central não precisava do
consentimento dos súditos para nada. Com aparelhos burocráticos e repressivos
mais avançados, era possível governar sem perder tempo com consultas ou
negociações. O Big Brother observava e sabia tudo.
Essa,
aliás, é a grande diferença entre a China e a Europa: a primeira,
tecnologicamente mais refinada, conseguiu mapear os solos e as populações com
assinalável precocidade histórica; a segunda, pelo menos até a era moderna,
sempre se caracterizou por Estados fracos ou insuficientemente burocratizados,
obrigando os seus líderes à negociação.
Como
afirma David Stasavage com deliciosa ironia, foi o relativo atraso da Europa
medieval que deu uma chance à democracia no Ocidente. Primeiro, ao permitir que
ela sobrevivesse na sua forma primordial, feita de consulta e consentimento
permanentes.
E,
depois, ao permitir também a evolução da democracia primordial para a
democracia moderna, nascida nos Estados Unidos. Qual a diferença?
Na
democracia moderna, a consulta e a deliberação diretas foram substituidas pela
representação política, até por motivos de extensão geográfica: votamos,
elegemos os nossos representantes e são eles que decidem em nosso nome.
De
certa forma, é nesse estágio que ainda nos encontramos. E se hoje sentimos que
a democracia
está em crise, isso se explica pelos dois elementos divergentes da
democracia moderna: por um lado, a participação política é mais ampla do que na
democracia primordial; por outro, essa participação é também mais episódica e
pouco convincente. Alguém acredita mesmo que o seu voto é assim tão decisivo?
Sentimos
que o poder está mais distante. Mas não só: sentimos também que o poder está
mais poderoso —como se o líder, agora auxiliado pela mais avançada burocracia e
tecnologia, já não precisasse de nós para nada. Exatamente como se fosse um
autocrata.
O
que isso gera é desconfiança e ressentimento —a mistura explosiva que o
populismo explora. Curioso: o combustível do populismo político é real, e não
ilusório, mesmo que as soluções populistas sejam ilusórias, e não reais.
Como
resolver o impasse?
Concordo
com David Stasavage: temperando as virtudes da democracia moderna com as
virtudes da democracia antiga. Descentralizando, devolvendo poder aos cidadãos,
limitando o poder de quem governa.
Se
isso não acontecer, a história da democracia terá o mesmo fim que a história da
autocracia. A única diferença é que demoramos mais tempo para lá chegar.
*João Pereira Coutinho, escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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