A hora é da política fiscal expansionista com ênfase nos investimentos públicos, propõem grandes nomes da formulação econômica americana
No dia 1º de dezembro, duas das instituições mais influentes de Washington, a Brookins e o Peterson Institute, promoveram um seminário para reavaliar o papel da política fiscal. Jason Furman e Larry Summers, ambos professores da Universidade de Harvard, respectivamente ex-presidente do Conselho Econômico de Obama e ex-secretário do Tesouro de Clinton, prepararam o texto que serviu de base para a discussão1. Para o debate foram convidados, além dos ilustres autores, Ben Bernanke, Olivier Blanchard e Kenneth Rogoff. Bernanke presidiu o Fed durante a grande crise financeira de 2008, Blanchard e Rogoff foram economistas-chefes do FMI. Os três são renomados acadêmicos, doutorados pelo MIT, professores das Universidades de Harvard e Princeton. Estamos falando do que é a melhor expressão do cruzamento entre a academia e a tecnocracia, a fina flor da formulação e da execução da política econômica americana.
A
conclusão do seminário, como disse Summers e, em seguida, Blanchard repetiu no
Twitter, é que estamos diante de uma mudança de paradigma. Cesse tudo que a
antiga musa canta, saem as políticas de austeridade e a busca do equilíbrio
orçamentário. A tão decantada relação dívida/PIB é um indicador enganoso, deve
ser desconsiderado. A hora é de uma política fiscal expansionista com ênfase nos
investimentos públicos.
Essa
já vem sendo a tese defendida pelo FMI. A diretora-geral do FMI, Kristalina
Georgieva, e a economista-chefe, Gita Gopinath, deram recentemente entrevistas
defendendo o uso da política fiscal, tanto para amenizar a crise provocada pela
pandemia como para garantir uma recuperação sustentada uma vez passada a crise.
Contra
a corrente e sofrendo severas críticas, venho batendo nessa tecla desde antes
da pandemia. Sustento que a combinação de uma política de juros altíssimos,
conduzida pelo Banco Central desde a estabilização da inflação, com o Real em
1994, até muito recentemente, combinada com uma obsessão de equilibrar as
contas públicas através de aumento da carga tributária e de corte dos
investimentos, foi razão do baixo crescimento da economia nestes últimos 25
anos. Mas, antes de analisar o caso do Brasil, vejamos o que dizem Furman e
Summers.
Comecemos pela relação dívida/PIB, que os nossos economistas e analistas que despontam na mídia usam como um indicador de que caminhamos inexoravelmente para o abismo. Os luminares americanos concluíram que estavam equivocados. A relação dívida/PIB não deve ser levada em consideração como indicador da solvência de um país. É um indicador falacioso, porque compara um estoque, a dívida, com um fluxo, a renda.
Na
sua apresentação, Furman diz que nunca mais deixará de se sentir culpado por
ter usado o conceito de dívida/PIB por tantos anos. Um indicador relevante deve
comparar fluxo com fluxo, ou estoque com estoque. A comparação de estoque com
estoque exige que se calcule o Valor Presente Redescontado (VPR) dos PIBs
futuros do país. O VPR, ou o Valor Presente Líquido, é um conceito amplamente
usado em economia e finanças.
Usa-se
o VPR, por exemplo, para calcular o valor de uma empresa, a partir da
estimativa de seus lucros futuros. Porque depende dos fluxos esperados de renda
futura e da taxa de juros utilizada, o VPR está sujeito a grandes variações, de
acordo com as expectativas utilizadas no seu cálculo. É essa variação que faz
com que alguns achem que uma empresa cotada em bolsa está cara e outros,
barata.
Uma
empresa pode ter dificuldade para refinanciar a sua dívida, por isso compara-se
o endividamento com o fluxo de caixa livre, o chamado Ebitda. Mas não faz
sentido avaliar o risco de solvência de um país comparando o estoque da sua
dívida com a sua renda hoje, dado que um país que emite sua moeda não corre
risco de iliquidez. A dívida pública em moeda nacional deve ser comparada com o
VPR da renda nacional.
Países,
assim como civilizações, podem desaparecer, mas vamos simplificar e supor que
os países tenham vida longa, em particular que o Brasil, posto que não é chama,
seja eterno. O VPR do Brasil deve ser calculado redescontando o fluxo infinito
dos PIBs futuros pela taxa de juros esperada daqui para frente. Supondo uma
taxa de juros real de 2% ao ano, mesmo que o PIB brasileiro nunca mais
crescesse, o VPR do Brasil seria 50 vezes o PIB de hoje.
Usando-se
a dívida bruta do Tesouro, conceito inadequado como veremos à frente, mas o
favorito dos novos “Beatos Salus” do fiscalismo, a dívida que é hoje 85% do PIB
é apenas 1/50 de 85%, ou seja 1,7% do VPR da renda do país. Se supusermos que o
país volte a crescer, a dívida torna-se ainda mais insignificante quando
comparada ao VPR da renda. Se a taxa de crescimento for maior do que a taxa de
juros, a dívida, mesmo como proporção do PIB, irá se reduzir sistematicamente
se não houver déficit primários excessivos.
Supor
que o país possa ter um crescimento superior à taxa de juros da dívida é uma
hipótese mais do que razoável, se conseguirmos nos livrar da camisa de força
ideológica do equilíbrio fiscal e se o Banco Central não se curvar aos apelos
dos economistas do mercado para elevar a taxa de juros.
O
cálculo do VPR da renda do país é um exercício intelectual para calcular um
indicador coerente, que compare estoque com estoque, mas dada a enorme
variância no seu valor, dependendo das hipóteses utilizadas, tem pouca utilidade
prática. Como sustentam Furman e Summers, o indicador mais relevante é o que
compara fluxo com fluxo, ou seja, o serviço da dívida com o PIB. Assim como ao
examinar a viabilidade de assumir um financiamento de longo prazo, deve-se
verificar se o valor das parcelas é compatível com a renda, a comparação
relevante para a avaliação do endividamento público é entre o serviço da dívida
e a renda nacional.
No
Brasil de hoje, com a taxa real de juros abaixo de 2% e a dívida bruta perto de
85% do PIB, o serviço da dívida é de apenas 1,7% do PIB, muito abaixo do que
era até recentemente, quando a dívida era menor, mas o juro muito mais elevado.
Em toda parte do mundo, com as taxas de juros muito baixas, o serviço da dívida
é hoje pouco oneroso.
A
ideia do VPR do PIB chama atenção para um ponto fundamental e pouco
compreendido: o que ancora a moeda fiduciária é a percepção de perenidade do
Estado. É o fato de que o Estado estará sempre lá para aceitar seus títulos
para pagamento de impostos que dá credibilidade e aceitação à moeda. Essa é a
tese do economista alemão Georg Knapp (1842-1926), que, no início do século XX,
foi reinterpretada pela moderna Teoria Fiscal do Nível de Preços (TFNP). A
diferença é que a TFNP dá mais importância à solvência financeira do Estado,
enquanto Knapp ressalta a estabilidade política-institucional do Estado.
Todo
o espaço para a emissão de moeda e de dívida, sem provocar a inflação, se
evapora quando o Estado ameaça se desorganizar. O fato de que quando o Estado
caminha para o colapso político-institucional, ainda que com baixo nível de
endividamento, a moeda perde credibilidade e a inflação se acelera é evidência
clara a favor do Cartalismo de Knapp.
Voltemos
a Furman e Summers. Reconhecido o equívoco de se utilizar a relação dívida/PIB
como indicador da saúde fiscal e da sustentabilidade da dívida, eles concluem
que é preciso praticar uma política fiscal agressivamente expansionista. Numa
flagrante reversão da tese da “austeridade expansionista”, defendida por alguns
deles depois da crise de 2008, concluem que a política fiscal expansionista em
períodos de recessão não aumenta, mas sim reduz a relação dívida/PIB.
Reconhecem
que investimentos públicos se pagam e hoje são altamente necessários. Bernanke,
nos seus comentários, sustenta que os investimentos públicos, em
infraestrutura, saúde, educação, energia limpa e pesquisa, têm atualmente
retorno muito mais elevado do que os investimentos privados. Em artigo recente,
na mesma linha, argumentei que no mundo de hoje existe um excesso de oferta de
bens materiais e de serviços privados e uma insuficiência de serviços e bens
públicos.
No
dia seguinte ao seminário da Brookings, participei, com Luiz Carlos
Bresser-Pereira, Nelson Marconi, Monica de Bolle e Manoel Pires, de um painel
sobre o investimento público e a retomada do crescimento no Fórum de Economia
da FGV-SP. Bresser-Pereira e Marconi apresentaram uma proposta para elevar o
investimento público no Brasil para 5% do PIB i. Na década de 1970 a taxa de
investimento público foi em média quase 8% ao ano. Desde então, está em queda,
até chegar a menos de 2% nos últimos anos e caminha para ser zero, se o teto dos
gastos e o aumento das despesas correntes forem mantidos. Partem da premissa
incontestável de que o crescimento depende do investimento. Sustentam que o
investimento público é indispensável e complementar ao investimento privado.
Enquanto
houver capacidade ociosa e desemprego, o investimento público não concorre com
o investimento privado. Ao contrário, se bem conduzido, restrito à expansão de
bens e serviços públicos, sem invadir setores onde o investimento privado dá
conta do recado, aumenta a produtividade da economia e o bem-estar social.
Na
mesma linha de Furman e Summers, argumentam que, como o investimento público de
qualidade depende de planejamento e de projetos que tomam tempo, o Estado
deveria ter sempre uma carteira de investimentos aprovados, que seriam
executados de acordo com a necessidade e a capacidade da economia. A velocidade
de execução seria calibrada para evitar tanto a recessão e o desemprego quanto
as pressões inflacionárias e o desequilíbrio nas contas externas.
Em
consonância com o que propus, em artigo neste mesmo Valor no ano passado,
sugerem a criação de uma agência com competência técnica para avaliar os
investimentos e a velocidade adequada de sua execução. A política monetária é
incapaz de estimular a economia quando a taxa de juros já está muito baixa. A
insistência numa política monetária expansionista, perto do limite inferior dos
juros, corre risco de provocar um excesso de euforia nos mercados financeiros,
sem qualquer efeito sobre a demanda agregada e o nível de atividade.
Essa
é a razão pela qual uma agência competente de investimentos públicos é hoje tão
ou mais importante do que o Banco Central. As políticas monetárias e fiscal são
indissociáveis, não podem ser conduzidas de formas independentes e muitas vezes
contraditórias. Bresser-Pereira e Marconi propõem que o Conselho Monetário
Nacional, à semelhança do que faz o Copom em relação à taxa de juros, de acordo
com a sua avaliação da economia e das pressões de demanda, defina o ritmo dos
investimentos públicos.
A
governança dos órgãos responsáveis pela avaliação da qualidade dos
investimentos e pelo ritmo de sua execução é uma questão da mais alta
relevância e merece estudo cuidadoso. É preciso encontrar um equilíbrio
delicado, um desenho institucional que evite tanto pressões políticas
ilegítimas quanto a arrogância tecnocrática.
A
governança das políticas monetária e fiscal é um tema complexo e politicamente
sensível. É preocupação com pressões políticas ilegítimas que explica a
resistência de aceitar o que é uma constatação lógica irrefutável: o Estado que
emite sua moeda fiduciária não tem restrição financeira. A moeda fiduciária é
um passivo do Banco Central, portanto uma dívida do Estado, assim como os
títulos do Tesouro.
A
moeda fiduciária é apenas um título de dívida do Estado, emitido pelo Banco
Central, que não paga juros e não tem prazo de vencimento, é uma perpetuidade.
A distinção entre moeda e dívida pública perdeu sentido com o fim do
padrão-ouro. O desenvolvimento dos mercados financeiros deu aos títulos de
dívida pública uma liquidez quase perfeita, indistinguível da moeda. É possível
comprar e vender dívida pública no mercado quase que instantaneamente.
A
taxa de juros próxima de zero na dívida foi o golpe final na distinção entre
moeda e dívida. Hoje, moeda e dívida são perfeitamente líquidas e praticamente
não pagam juros. Quando o Estado gasta, credita necessariamente moeda em quem
recebe do Estado. A decisão de obrigar o Estado a compensar a moeda emitida -
creditada seria um termo mais adequado, dado que a moeda é quase que
integralmente eletrônica - com a arrecadação de impostos é uma restrição
institucional.
Uma
restrição que deixa de fazer sentido quando se entende que o espaço para a
emissão de moeda e dívida é muito maior do que se supunha. Foi o que o
demonstrou de forma incontestável o experimento do QE. Como lembrou Bernanke,
autor intelectual e executor do QE, no debate da Brookings, o mesmo experimento
já vinha sendo posto em prática no Japão, desde o início do século, sem
pressionar a inflação. Quando há insuficiência de demanda agregada, capacidade
ociosa e desemprego, o Estado pode e deve gastar, emitindo uma combinação de
moeda e dívida, sem se preocupar com o equilíbrio fiscal ou com o aumento da
relação dívida/PIB. A responsabilidade fiscal e a disciplina orçamentária devem
ser reinterpretadas como a busca da qualidade do gasto, da eficiência na
operação do Estado.
Trocar
ideias e discutir propostas, como tive a oportunidade de fazer no Fórum da
FGV-SP, me pareceu um sopro de ar fresco no ambiente dogmático e raivoso com
que tenho me deparado desde que passei a sustentar que o consenso
macroeconômico convencional estava equivocado. Tenho me esforçado para entender
as razões de uma tal falta de abertura mental de nossos economistas ortodoxos,
hoje em grande parte associados ao mercado financeiro.
Resisto
a aceitar que se trate de mera defesa de interesses, ainda que inconsciente.
Parece-me mais uma combinação de um arraigado colonialismo intelectual, com o
temor da perda do prestígio e da influência que adquiriram nas últimas décadas.
Agora, com a guinada dos cardeais da metrópole, ficará difícil explicar a
insistência no mantra fiscalista.
Pode-se
sempre argumentar, parafraseando um ex-banqueiro central canadense a respeito
da aposentadoria da Teoria Quantitativa da Moeda, que “não fomos nós que
abandonamos o fiscalismo, foi o fiscalismo que nos abandonou”. Seja lá o que
isso quer dizer. Com certeza, irão apelar para a tese da “jabuticaba”, que o
Brasil é diferente, o que vale para os países avançados não vale aqui, um país
que tem um histórico de inflação, que não emite uma moeda reserva, onde impera
a irresponsabilidade política.
A
moeda reserva faz realmente diferença para os países que têm déficits
recorrentes nas contas externas e dívida externa. Foi o caso do Brasil na
segunda metade do século passado. Obrigado a se financiar no exterior em moeda
estrangeira, para compensar o déficit na conta corrente do balanço de
pagamentos, o Brasil passou por graves crises todas as vezes que viu o crédito
externo ser bruscamente interrompido.
Se
emitisse moeda reserva, como os EUA e a União Europeia, não teria tido
problemas. Hoje, o Brasil é autossuficiente em petróleo e trigo, tem um setor
agropecuário altamente superavitário, a conta corrente caminha para o
equilíbrio e o país acumulou o equivalente a mais de 30% do PIB em reservas
internacionais. A atual dívida pública brasileira não sofre do que a literatura
econômica chama do “pecado original”, o fato de ser uma dívida com
estrangeiros, denominada numa moeda que o país não emite. A dívida pública
brasileira hoje é do Estado com brasileiros e denominada em moeda nacional. O
aumento da dívida e da taxa de juros tem, sim, efeitos redistributivos
perversos, mas essa é uma outra história. Fica para uma próxima oportunidade.
Quando
o Tesouro anuncia o maior déficit nominal da história, quando a relação
dívida/PIB atinge o seu mais alto nível e o coro dos que anunciam a hecatombe
final se intensifica, o Brasil acaba de fazer uma emissão externa de dívida
pública, desnecessária por sinal, à menor taxa de todos os tempos. A cotação do
dólar cai e a bolsa sobe, mas os fiscalistas insistem que vamos para o abismo se
o teto dos gastos for desrespeitado e o Banco Central não subir os juros. E os
economistas se dizem cientistas que se baseiam na evidência empírica. Julgue
por você mesmo, caro leitor.
1
Furman, Jason and Summers, Larry "A Reconsideration of Fiscal Policy in an
Era of Low Interest Rates", presentation to the Hutchinson Center on
Fiscal & Monetary Policy and Peterson Institute for International Economics
- December 1, 2020
i
Bresser-Perreira, L.C. e Marconi, N. "5% do PIB para o Investimento
Público", mimeo, Nov. 2020
*André Lara Resende é economista
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