De
solidariedade no precário, vive o Brasil negro e periférico
Encantados
de religiões de matriz africana e ameríndias trabalham enquanto bebem, fumam,
dançam, gargalham, caminham, riscam o chão. Na miudeza do cotidiano, produzem
milagres, ensina o historiador Luiz Antonio Simas em livros, aulas, canções. Na
manhã de sábado passado, Deise Gouveia subia uma via da Fazendinha, comunidade
do Complexo do Alemão. Copo de cerveja na mão, tentou se escorar no que supunha
parede ou muro, mas era porta entreaberta. Rolou escada abaixo, adentrou a sala
simples de Paula, mais de metro abaixo do nível da rua. Do susto, a graça. O
vídeo viralizou, e a moça ganhou fama instantânea; anteontem festejou meio
milhão de seguidores numa rede social.
Sóbria, foi obrigada pela mãe a se desculpar; soube, então, que a vizinha tem câncer e enfrenta dificuldades. Na mesma rede social que a consagrou como Deise do Tombo, pediu ajuda para Paula; em menos de uma semana, mais de três mil doadores já garantiram R$ 130 mil. No encontro, a graça. Ambas louvaram a Deus — e estão corretas. Na trama, vi a mão de Zé Pelintra, o homem do chapéu panamá que o ex-prefeito em exercício do Rio de Janeiro desrespeitou em debate às vésperas do segundo turno.
“Exu
matou um pássaro ontem com a pedra que só jogou hoje.” Com esse itan da
mitologia iorubá, Leandro Roque de Oliveira abre os serviços em “AmarElo —É
tudo pra ontem” (Netflix, 2020). O documentário percorre os caminhos que o
artista e São Paulo e o Brasil trilharam para Emicida ocupar com música negra e
público preto e periférico o palco do Teatro Municipal da capital mais rica do
país no mês da Consciência Negra, em 2019. O filme, dirigido por Fred Ouro
Preto, é uma aula de História afrocentrada — ou seja, é contada sob a ótica e o
protagonismo daqueles que os registros oficiais, até outro dia, teimavam tornar
invisíveis. Sabe o verso do samba-enredo campeão da Mangueira, “A História que
a História não conta”? Isso.
Artista
mais importante do Brasil no momento, Emicida revela seu processo criativo,
enfileira suas referências, reverencia sua ancestralidade. Pelo filme, além das
canções do álbum “AmarElo”, vencedor do Grammy Latino, desfilam de Luiz Gama a
Abdias do Nascimento, de Wilson das Neves a Zeca Pagodinho, de Ruth de Souza a
Lélia Gonzalez, de Dona Ivone Lara a Majur e Pabllo Vittar, de Ismael Silva a
Racionais MC, do samba ao hip-hop, de viagens mundo afora a horta domiciliar,
filhas e dona Jacira, a mãe. A obra atesta em hora e meia por que o sucesso, a
mobilidade social, o reconhecimento de pessoas negras no Brasil nunca são
individuais, mas invariavelmente coletivos. “Nossos passos vêm de longe”,
avisou há tempos Jurema Werneck, intelectual negra à frente da Anistia
Internacional Brasil.
O
elo entre matéria e invisível, ancestralidade e descendência, também moldou “M8
— Quando a morte socorre a vida” (2018), longa metragem de Jeferson De,
vencedor do prêmio do público do Festival do Rio 2019, em cartaz nos cinemas.
Na trama, baseada em livro homônimo de Salomão Polakiewicz, Juan Paiva vive
Maurício, um estudante cotista de medicina incomodado com o corpo de um jovem
negro (Raphael Logam) usado na aula de anatomia. É a empatia que enfrenta a
banalização do extermínio num país em que, no primeiro semestre, uma pessoa foi
assassinada a cada dez minutos — três de cada quatro tinham pele preta ou
parda, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública.
Jeferson
De e Felipe Sholl introduziram no roteiro conexões com a religiosidade
afro-brasileira e homenagens a mulheres negras tornadas referências: em cena,
Léa Garcia e Zezé Motta; citadas, Conceição Evaristo, Sonia Capeta e Marielle
Franco, cujo assassinato, com o motorista Anderson Gomes, completou mil dias e
segue sem esclarecimento sobre mandante e motivo. “No livro, a questão
religiosa se dava pelo catolicismo. Foi minha opção a escolha da umbanda”,
contou De. Ele também levou à telona, com brilhantismo, o medo de mães de
jovens negros vivos, com a inesquecível Cida de Mariana Nunes, e a dor das que
os perdem, em atuação impecável de Tatiana Tiburcio (Emília).
De solidariedade no precário, de fé no invisível, de empatia entre desconhecidos, de confiança na ancestralidade, vive o Brasil negro e periférico. Vida real e ficção, voz e silêncio, tombos e caminhadas guardam a potência da nação que desqualifica, exclui e mata filhos e filhas, cultura, tradições. Primas, Emilly, de 4 aninhos, e Rebecca, de 7, foram alcançadas por um só tiro de fuzil na porta de casa, em Duque de Caxias, na véspera do tombo de Deise. Suas histórias estão para sempre guardadas num túmulo cimentado pelo pai da mais nova. O futuro enterrado.
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