O
caminho é investir e exigir mais do ensino fundamental e abrir alternativas no
médio
Dizem
que a vida vai voltar ao normal. E em 2021 o Ministério da Educação pretende
começar a implantar o novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com duas
modificações importantes. A primeira, desde já, é o “Enem seriado”, em que os
alunos do ensino médio serão avaliados a partir do primeiro ano, com uma nova
versão da Prova Brasil. A segunda, a partir de 2024 ou 2025, é a adaptação do
Enem à reforma do ensino médio, que prevê que os estudantes possam escolher
seus itinerários de formação. Como a maioria dos candidatos ao Enem não vem
diretamente do ensino regular, a prova geral vai continuar existindo, ao lado
do sistema seriado.
Imagino que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) tenha estimado o custo desse novo formato, a maneira como os resultados das avaliações seriadas vão ser utilizados para melhorar a qualidade do ensino e como compatibilizar os dois sistemas para que um não se torne mais valorizado do que o outro. Digo “imagino” porque não encontrei nenhum documento oficial que explique mais em detalhe as razões e os custos dessa mudança.
Tomara
que o Ministério da Educação (MEC) saiba o que está fazendo, mas há pelo menos
três coisas importantes que precisam ser discutidas antes de embarcar nesse
caminho sem volta. A primeira é se precisamos realmente continuar tendo um
vestibular nacional unificado como o Enem. Quando o exame foi criado, em 1998,
o objetivo era ter um marco de referência de qualidade para o ensino médio
brasileiro, como a Prova Brasil. Em 2009 ele se transformou em vestibular
nacional e as universidades renunciaram à sua autonomia e responsabilidade por
selecionar seus estudantes. A justificativa foi que assim os estudantes não
precisariam mais se inscrever em diferentes concursos e poderiam se candidatar
a vagas em qualquer parte do país.
Mas
o Enem transformou o ensino médio num grande cursinho de preparação para a
prova, com resultados totalmente previsíveis – as vagas mais disputadas são
quase todas ocupadas por filhos de pais de nível universitário que estudaram em
escolas privadas e em algumas poucas escolas federais. O Brasil não é o único
país que tem um exame desse tipo e em todo mundo se discute, hoje, se esses
exames realmente medem o que pretendem – ou seja, a capacidade de o aluno
adquirir uma boa formação e se transformar em bom profissional e cidadão – e se
não existem formas melhores de tornar o acesso ao ensino superior melhor e mais
equitativo.
No
Brasil cerca de metade dos alunos que entram no Sistema de Seleção Unificada
(Sisu), o mecanismo de escolha de cursos do Enem, são cotistas, mas as notas de
corte para os cursos são semelhantes para cotistas e não cotistas, o que
significa que elas não beneficiam quem realmente precisaria. A tendência, ao
menos nos Estados Unidos, é reduzir o peso dos resultados em provas
padronizadas como o ACT e fazer uma seleção mais rica e complexa dos
estudantes, tomando em conta capacidade de liderança, motivação, experiência
escolar, vínculo com suas comunidades de origem, etc. Essa seleção precisa ser
feita pelas universidades, até para fortalecer seus vínculos com a população
das regiões onde estão.
A
segunda questão é se a prova geral e os itinerários formativos que o novo Enem
pretende implementar estão alinhados com as intenções da reforma do ensino
médio iniciada em 2017. Se a prova geral for um resumo de tudo o que estava no
currículo tradicional, do português à física, passando pela filosofia e
sociologia, o Enem continuará mantendo o ensino médio brasileiro na camisa de
força do currículo único. E se as provas específicas, dos itinerários
formativos, continuarem submetidas à esdrúxula classificação de áreas de
conhecimento adotada pelo MEC, vão retirar a força da principal inovação do
novo ensino médio, que são os itinerários. A sugestão é tornar a prova geral
mais leve, semelhante ao Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa),
e alinhar os itinerários com as áreas de formação mais próximas ao mundo da
educação superior e do trabalho, adotadas de forma semelhante em outros países:
ciências exatas, matemática e tecnologia (STEM); ciências biológicas e da
saúde: ciências e profissões sociais; e humanidades, letras e artes.
A
reforma do ensino médio abriu também a possibilidade de um “quinto itinerário”,
de capacitação técnica para quem precisa entrar logo no mercado de trabalho, e
é necessário associar ao Enem sistemas adequados de certificação pelo menos
para as áreas de formação técnica de maior demanda – enfermagem, administração,
informática, agropecuária, segurança no trabalho.
A
terceira questão é se não seria o caso de criar uma avaliação individualizada
ao final do ensino fundamental, aos 15 anos, como faz a Inglaterra com o exame
GCSE. O chamado “fundamental II” é o patinho feio da educação brasileira, é aí
que os eventuais resultados de melhora dos resultados do antigo primário se
perdem. Um exame desse tipo ajudaria a estabelecer um padrão de qualidade para
esse nível e orientar os estudantes para que encontrem seus caminhos nos anos
seguintes. Investir e exigir mais da educação fundamental e abrir o leque de
alternativas no ensino médio, quebrando o gargalo do Enem, esse parece ser o
caminho que precisamos.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências
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