Será
obrigatório transformar sociedade que se estruturou no racismo e deu 74 milhões
de votos a Trump
Neste
20 de janeiro de 2021, nada foi como a catártica festança de novembro, quando
ruas, praças e lares explodiram de júbilo pela derrota de Donald Trump. Na
cerimônia de posse de Joe Biden e de sua vice, Kamala Harris, aconteceu algo
mais sutil e profundo. Algo como ser coberto por uma manta familiar, quando nem
sabíamos quanto ainda estávamos com frio. Fomos sorrindo, revendo rostos
conhecidos, revivendo brincadeiras e nos surpreendendo, totalmente desarmados.
Um repentino conforto cívico fez emergir uma doce alegria interior.
Durou
só um dia. Mas aconteceu, e foi lindo.
Impossível
tirar os olhos e desplugar os ouvidos da performance de Amanda Gorman, a jovem
poeta negra que, em menos de 6 minutos, cativou geral recitando “The Hill We
Climb” (A colina que subimos). Trazia no dedo um imenso anel em forma de
pássaro aprisionado (tributo ao primeiro livro da imortal Maya Angelou, “Eu sei
por que o pássaro canta na gaiola”). Encadeou cada palavra para compor um
mosaico histórico do país, com técnica inspirada no épico “Hamilton”, de
Lin-Manuel Miranda. Sua récita foi iniciada com um questionamento: “Quando o
dia amanhece, nos perguntamos onde podemos encontrar luz nesta sombra que nunca
acaba?”. Ela mesmo deu a resposta: “Sempre há luz se formos suficientemente
corajosos para vê-la. Se ao menos fôssemos suficientemente corajosos para
sê-la… Não voltaremos ao que foi, mas vamos nos transportar ao que será um país
ferido, íntegro, benevolente, mas ousado, feroz e livre”.
Exatamente um ano antes, o veterano Joe Biden, branco, centrista e com 77 anos, se arrastava pelo Iowa rumo a nova derrota nas prévias partidárias, competindo com a safra 2020 de democratas mais jovens, mais diversos, mais progressistas. Conseguiu chegar aonde sempre quis estar graças ao próprio ocupante do cargo — talvez não chegasse à vitória sem a trágica, criminosa, deliberada porteira aberta pela Casa Branca à Covid-19. As previsões para fevereiro são de 500 mil mortos em solo americano. America First, como diria Trump. No 20 de janeiro de um ano atrás, a pandemia nem sequer foi mencionada por Biden num comício em Des Moines. Hoje seu lugar na história depende em boa parte de como se sairá no embate com o vírus.
Por
vezes o julgamento da história é mais veloz que o tempo. Donald Trump pôde ser
avaliado bem antes de se esgotarem os 2.044 dias em que ocupou e dominou a
mídia — mais precisamente, desde 16 de junho de 2015, quando o showman e
empreendedor fraudulento surgiu de uma escada rolante dourada para se declarar
candidato. Os 1.460 dias em que ocupou o Salão Oval, e de lá quase teve de ser
retirado na marra, apenas consolidaram o veredito: difícil de ser superado como
o mais ruinoso presidente da nação. Em quatro anos de mandato, foram dois
impeachments, o abandono de responsabilidades, uma insurreição contra eleições
livres e contra a verdade, um assalto ao Congresso, a criação de um culto à
personalidade, a mudança da sede do governo para o Twitter.
Por
enquanto, Trump está exilado em Mar-a-Lago, visto como material tóxico. Até o
ex-ator mirim Macaulay Culkin já se juntou ao diretor Chris Columbus para que
seja removida a microcena de “Home Alone 2” em que Trump faz uma ponta. A
ressaca do ex-presidente será grande. Por não suportar a invisibilidade, deverá
tentar prosseguir a “guerra incivil” em porões da democracia.
O
discurso inaugural de Biden foi o segundo mais longo desde a posse de Ronald
Reagan, em 1981. Se falou muito, foi por ter o que dizer, e o fez com notável
franqueza. Pela primeira vez nos mais de 230 anos da nação, um presidente
americano pronunciou a palavra maldita — “supremacia branca”. Disse mais:
“Precisamos confrontar e vamos derrotar o crescimento do extremismo político,
da supremacia branca, do terrorismo doméstico”. Em outras palavras, salvar os
Estados Unidos de si mesmos. Tarefa hercúlea para um homem que é, sempre foi e
sempre será um moderado de raiz, movido pela cautela e confiante no poder do
diálogo. Sua crença no estado de direito, na decência humana, na verdade são
louváveis para “restaurar a alma da América”, como anunciou. Só que, a partir
de 2021, não basta mais restaurar a alma da história passada. Será obrigatório,
também, transformar essa sociedade que nasceu e se estruturou no racismo, não
dispõe nem sequer de uma saúde pública para chamar de sua, e deu 74 milhões de
votos a Donald Trump. A iniquidade social, a justiça desigual, a
vulnerabilidade subitamente exposta dessa democracia tida como farol do mundo
vai exigir muito de Joe Biden. Talvez demais para a urgência e pouco tempo.
O mundo torce. “Se não fizermos mudanças audaciosas, corremos o risco de terminar com alguém pior do que Trump dentro de quatro anos”, disse em entrevista ao jornalista Anand Giridharadas o veterano Chuck Schumer, que agora assume a liderança da maioria democrata no Senado. O que foi chamado de mudança nas duas últimas décadas, incluindo aí os dois mandatos de Barack Obama, não foram “nem suficientemente grandes nem corajosas o bastante”, acrescentou. A hora é agora para Biden ousar se medir com Franklin D. Roosevelt ou com o Lyndon Johnson dos Direitos Civis. Que tempos históricos temos pela frente! Lá e cá.
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