Ex-presidente
conta causos como se estivesse sentado ao sofá de sua casa e partilha reflexões
ante a finitude da vida
Na
tentativa de entrar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, bombou em
latim; no curso de ciências sociais, bombou em matemática; já doutor pela USP,
claudicava no inglês; fez pesquisa de campo no Araguaia nos anos 1970 e só
soube da guerrilha porque o dono da fazenda que o hospedava lhe contou; péssimo
poeta e escritor sem imaginação literária, cometeu alguns textos pedantes.
Às
vésperas de completar 90 anos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deixou
a lendária vaidade ao desabrigo em “Um intelectual na política - memórias”
(Companhia das Letras, 432 págs., R$ 69,90). Não abdica do lugar que imagina
ter na história, o de quem buscou percorrer, da academia ao poder, a trajetória
da institucionalização da democracia no país. Mas chega ao pé do ouvido do
leitor, num tom confessional, para desfazer impressões preconcebidas. É
generoso com aqueles que o antecederam e o sucederam no poder e a quem a
crônica política atribui rixas históricas. Conta causos como se estivesse
sentado ao sofá de sua casa e partilha reflexões ante a finitude da vida.
Não
se trata de um acerto de contas. Fala das motivações dos atos, com franqueza às
vezes surpreendente, para se fazer compreendido. Não se delonga com sua
passagem pelo poder, tema dos quatro volumes de “Diários da Presidência” (Cia
das Letras, 2015-19). Mas menciona um erro cometido, o de ter forçado a barra
na reforma da previdência. Ao dizer que assustou as pessoas e pagou caro por
ter querido salvar o sistema previdenciário, deixa implícito o incômodo com as
repercussões duradouras do dia em que chamou de “vagabundos”, num país de pobres
e miseráveis, aqueles que se aposentam antes dos 50 anos.
Passa ao largo da falsa modéstia. Ao reconstituir o pedigree familiar e acadêmico, mostra como se valeu de ambos sem se prender a um ou ao outro. O resultado é que o filho, neto, sobrinho-neto de generais e marechais protagonistas da proclamação da República ao gabinete de Guerra de Getúlio Vargas não parece, no livro, ter chegado à Presidência porque estava escrito nas estrelas, mas porque, a partir de sua ancestralidade, se reinventou.
E
não apenas pelo embate com a herança getulista. Tome-se o pai, por exemplo, de
longe o familiar mais presente no livro. Preso na revolta tenentista de 1922,
Leônidas Cardoso é descrito pelo filho como um general intelectualizado,
bacharel em direito e nacionalista. Ao deixar o Exército, foi eleito deputado
federal pelo PTB em São Paulo. Era um getulista conservador que teve apoio do
partido comunista mas, no mandato, não foi capaz de mantê-lo, perdendo a
reeleição em 1958.
Fernando
Henrique aprendeu a lição. A prisão parecia um destino inevitável para quem se
tornou foragido da justiça militar, voltou ao Brasil dois meses antes do AI-5,
foi aposentado compulsoriamente da universidade e montou um centro de estudos
que abrigava combatentes da resistência. Ele foi, de fato, levado para a Oban,
a Operação Bandeirantes, centro de repressão do Exército, onde depôs por dez
horas, mas nunca chegou a ser preso.
Registra
o fato de que o superior do seu interrogador trabalhara com seu pai, mas outros
filhos de generais foram presos e torturados naquela época. Nenhum deles,
porém, teve sentado do lado de fora da Oban, durante o interrogatório, um
empresário do porte de Roberto Gusmão, ex-ministro da Indústria e Comércio,
que, à época, dirigia a indústria de bebidas Antarctica. Ou teve o privilégio
de reportar o acontecido, pessoalmente, ao governador de Estado Paulo Egydio
Martins, que tinha linha direta com Ernesto Geisel, presidente em guerra com os
porões da ditadura.
Fernando
Henrique chegou a fazer seus relatos ao próprio general Golbery do Couto e
Silva, braço direito de Geisel, e a quem chegou por intermédio do marechal
Cordeiro de Farias, amigo de seu avô. Ele reconstitui toda a teia de relações
de que se valia para proteger a si, a seus amigos e alunos, mas também duvida
dela. Atribui sua blindagem às relações que mantinha com organizações
internacionais, notadamente as fundações Rockefeller e Ford, que haviam
viabilizado o Cebrap. Essa capacidade de transitar por campos distintos e,
muitas vezes, opostos ao seu, que o acompanharia na aliança que o elegeu e o
manteve no poder, é um dos atributos mais destrinchados ao longo do livro. Como
sociólogo, convocava os intelectuais a olhar para a política como ela é. Como político,
recorria à sociologia para justificar a transigência com aliados.
Começou
a fazer esse trânsito ainda como jovem pesquisador, quando chegou à
Confederação Nacional da Indústria, por meio de Fernando Gasparian, de família
de industriais, editor da revista “Argumento” e da futura “Paz e Terra”. Das
pesquisas financiadas pela instituição sobre sociologia do trabalho, nasceu o
Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho. Foi um trampolim para a pesquisa
sobre o papel dos industriais na modernização do país e dos empresários na
política brasileira. Destrinchou os “anéis burocráticos”, conceito que
formulou, sob a inspiração de Max Weber, para definir os mecanismos que
articulam os interesses privados, a burocracia pública e a política, antes de
por eles transitar.
Cedo
dominou os códigos do passe livre. Numa conferência na Fiesp sobre os movimentos
agrários, ao lado de um dos mestres que mais influência exerceu em sua vida,
Florestan Fernandes, que viria a ser um dos fundadores do PT, o anfitrião lhe
disse: “Você, sim, não é comunista”. Nenhum dos dois era, mas ele atribuiu a
percepção ao fato de não chamar os trabalhadores no campo de camponeses, nem
ver nos empresários rurais apenas latifundiários a serem eliminados.
Contrapôs-se
ao Partido Comunista com a certeza de que não havia chance de aliança entre a
burguesia nacional e o operariado contra o imperialismo. Enfrentou ainda os
próprios propagadores da teoria da dependência, que formulara para mostrar os
rumos que o crescimento da América Latina tomara, apesar dela, e não o beco sem
saída a que o continente estava condenado. Suas convicções não vinham apenas
das leituras, mas, principalmente, das entrevistas que fez com empresários.
Manteve-os por perto desde a USP até o Palácio do Planalto, passando pelo
Cebrap, cuja fundação e manutenção viabilizaram.
O
distanciamento do Partido Comunista não se restringia à visão sobre o papel do
empresariado. Iniciara-se em 1956, ao assinar manifesto contrário à invasão da
Hungria pelas tropas soviéticas. Tampouco comungava dos ideais do governo João
Goulart ou da luta armada. O alheamento das disputas políticas da época é
retratado pela memória do 13 de março de 1964, dia em que Jango convocara o
comício em frente à Central do Brasil. Foi para lá que Fernando Henrique se
dirigiu, depois de visitar os pais, para pegar o trem até São Paulo. Viu o
protesto das velas acesas nas varandas dos apartamentos da zona sul e chegou à
estação sem reparar no comício. O tema só surgiria no vagão-restaurante, ao
encontrar amigos que também voltavam para casa, ainda assim limitados a
discutir se era um golpe ou um autogolpe que estava por vir.
Apesar
de pertencer a uma geração de sociólogos marcada pela luta de classes, a política
em que Fernando Henrique estava envolvido até o talo era a da USP, no Conselho
Universitário e na associação de docentes. Nas forças de segurança, a convicção
era outra. Depois do golpe, foi alertado de que era perseguido e saiu pingando
de casa em casa porque não se sentia seguro na sua. Não queria deixar o Brasil
porque tentaria a cátedra de sociologia. A consulta chegou ao secretário de
Segurança Pública, Miguel Reale: “Não se trata de um teórico, ele é um
prático”. Foi para Buenos Aires e, de lá, para Santiago, onde depois chegariam
Ruth e os três filhos.
O
relato de Fernando Henrique sobre sua vida é completamente desprovido de
dramaticidade. Pelo contrário. Não se furta a contar dos confortos incomuns dos
quais usufruiu. Já grandinho, não calçava meias ou sapatos. Esticava as pernas,
e Zizi, a babá, os colocava. Recém-formado, ganhou dinheiro de uma tia para
comprar um Opel usado, numa época em que só jovens ricos, como Maurício Klabin
Segall, tinham carros. Abandonou o ônibus e os bondes antes mesmo de
professores como Antonio Candido. Recém-casado, tinha telefone em casa, herança
do pai. Tão rara era a posse que seu professor, Florestan Fernandes, ia até lá
para fazer ligações. Em parte do exílio em Santiago morou na casa do cônsul
brasileiro na cidade, seu primo. Em Paris, convidado a dar aulas em Nanterre,
alugou, por intermédio de amigos, um apartamento onde havia telas de Salvador
Dalí. Circulava de carro, condição que lhe permitia dar carona a colegas como
Michel Foucault. De volta a São Paulo, chegou a morar numa casa que construíra
no Morumbi com piscina, empregados e motorista. Depois de dez anos ouvindo de
Ruth que não tinham como sustentar aquela vida burguesa, mudaram-se para um
apartamento perto da avenida Paulista.
Ruth
Cardoso tem uma presença muito mais marcante neste livro do que nos quatro
volumes que escreveu sobre sua passagem pela Presidência da República. Foi ela
quem o relegou ao segundo lugar na prova de ingresso para a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da USP. Também era Ruth, que gostava de
disciplinas com lógica e abstração, quem lhe salvara de apuros em matemática e
estatística na universidade. E, anos mais tarde, percorreria gabinetes para
tentar que ele pudesse fazer a prova de cátedra na universidade sem ser preso.
Foi também ela quem o alcançou, por telefone, em Tóquio, para dizer, zangada,
que o marido havia sido nomeado para a Fazenda.
Contemporizara
com Ruth, que se opusera à sua entrada na política, com o discurso de que
assumia incumbências à sua revelia. Vai pela mesma rota no livro, sem deixar de
alimentar as percepções contrárias. Nos dias que passou em Washington na
negociação com o FMI, que precedeu o Plano Real, encontrou-se com o secretário
do Tesouro do governo Bill Clinton, Larry Summers, que queria saber quem seria
o candidato a presidente, em vista de sua preocupação com o gasto público.
Fernando Henrique lhe disse que era ele, num momento em que nada havia sido
oficializado nesse sentido, porque achou que, naquele momento, era o que
precisava fazer para ganhar a confiança dos credores. A partir dali, não
haveria mais um presidente acidental.
O
percurso de contemporizador tem dois momentos de perda das estribeiras, ambas
antes de sua entrada na política partidária, uma com Jânio Quadros e a outra
com um coronel. Na primeira, Fernando Henrique representava docentes da USP.
Jânio ditava algo para a secretária quando eles entraram na sala. Perguntou:
“Senhores, em que posso servi-los?”, antes de emendar nas ofensas. “Eu, em geral
calmo, vi uma escuridão em minha frente e gritei com ele. Para surpresa geral,
o governador baixou o tom e começou a nos escutar”, relatou. Na segunda vez em
que recebeu a associação, mandou dizer que não levassem “aquele menino”.
A
segunda foi com um coronel que comandava a Oban. Já tinha sido interrogado e,
dessa vez, ia interceder pelos seus. Com o rádio da sala ligado a todo volume,
irritou-se com uma insinuação desse coronel de falta de patriotismo. Gritou:
“Coronel, não admito essa insinuação. Eu poderia estar em uma boa universidade
no exterior; fiquei aqui porque acredito no Brasil”. Para sua surpresa, o
coronel se encolheu e voltou a atendê-lo quando Fernando Henrique buscava
notícias de algum colaborador do Cebrap preso.
Se
a vida partidária lhe trouxe embates, desentendimentos, rivais e adversários, o
Fernando Henrique nonagenário não se mostra disposto a cultivá-los. Nenhum dos
personagens a quem a crônica política imputa tensas relações é tratado com mais
generosidade no livro do que seu antecessor, Itamar Franco. Registra o
folclore, como no dia em que Itamar era esperado no Congresso para tomar posse
como presidente interino, depois do impeachment de Fernando Collor, e seu
chanceler o encontrou deitado, sem paletó, atormentado pela percepção pública
de que estaria obcecado em ocupar a cadeira de presidente.
“Sabedoria
para mim é ter tranquilidade para saber que há coisas que precisam ser mudadas
mas não perder o juízo por causa disso”
O
Itamar de sua descrição era turrão, desconfiado e difícil, mas não era bobo.
Matreiro e determinado, era, sobretudo, na definição de seu sucessor, íntegro.
Resume sua capacidade de enfrentar situações difíceis com a dura recepção dada
a um Antonio Carlos Magalhães bravateiro ante a intervenção no Banco da Bahia.
Fernando Henrique captou o personagem e aprendeu a lidar com ele, valendo-se do
fato de que Itamar, quando o procurava, achava que estava falando com São
Paulo.
Seu
sucessor também é tratado com quase igual generosidade. Fernando Henrique foi
até o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo porque precisava de apoio na
convenção do MDB que definiria os candidatos do partido ao Senado. Franco
Montoro liderava a disputa, mas Luiz Inácio Lula da Silva, então presidente do
sindicato, não gostava da alcunha de “senador dos trabalhadores” que ele usava.
Lula se valeu de FHC para diluir Montoro e o emedebista novato usou o
sindicalista para conseguir voto. Conseguiu. Foi o segundo mais votado, o que
lhe permitiu assumir uma cadeira no Senado em 1978, quando Montoro se elegeu
para o governo paulista.
Na
descrição de Fernando Henrique, Lula nasceu dotado de intuição, era esperto,
sempre falou bem e não se deixava fisgar facilmente. Preferiu montar seu
próprio partido a ir para o MDB. Atraiu o mestre do sociólogo, Florestan
Fernandes, e seu companheiro de pesquisas, Francisco Weffort, mas ele preferiu
ficar no MDB menos por diferenças programáticos, mas porque achou que haveria
resistência no Congresso, como de fato houve, a um partido montado no tripé
sindicato-igreja-intelectuais.
Ao
fundar o PSDB, em 1988, resistiu ao nome de batismo porque a social-democracia
pressupunha uma base social que já estava com o PT. Não hesitou em enfrentar
vaias no Pacaembu para subir no palanque de Lula no segundo turno da disputa
presidencial de 1989, junto com Mario Covas, derrotado na primeira rodada. Mas
cita o cavalo de batalha do petista contra o Plano Real, em 1994, como um dos
estímulos para fazê-lo candidato. Oito anos e muitos embates depois, diz que
passou a faixa para Lula com satisfação, estado de espírito que contrapôs à
apreensão que marcara sua posse em 1995. Ouviu de Lula que ali deixava um
amigo. Concluir o contrário não apagou a emoção relatada.
As
páginas mais confessionais do livro, porém, são aquelas dedicadas à morte de
Ruth, em 2008. É discreto sobre sua segunda mulher, Patrícia, discretíssimo
sobre os filhos e só de relance revela que é bisavô de José, neto de seu
primogênito, Paulo Henrique, quase septuagenário. Situa a viuvez como o momento
a partir do qual passou a conviver mais com a memória das pessoas que já tinham
partido de sua vida e que o fizeram quem ele é. Foi isso que possibilitou o
livro, mais povoado dos que já se foram do que de quem aí está. Não se sente
velho, pelo menos não enquanto não chegarem as limitações pessoais. Nem a da
memória o atinge. Não recorreu a anotações ou aos livros que já escreveu,
garante.
O tom confessional e de apaziguamento com o qual percorre o relato de sua vida deixa a impressão de que se valerá das forças que lhe restam para convencer que a superação deste momento exigirá que as diferenças sejam deixadas de lado. Não cita uma única vez o inquilino do Planalto. Limita-se a se referir ao “capitão, que se quer mito”. Sempre negou que tivesse mandado esquecer o que escrevera e que acreditava, sim, no poder de transformação das ideias. É isso que está lá. Quem se mantiver fiel às arengas do passado não vai ser capaz de superar as trevas do presente para iluminar o futuro.
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