Bolsonaro
toma medidas para colher no futuro um país atrasado e subserviente
Um
dos principais pilares do governo Bolsonaro é a destruição das estruturas
educacionais do país. O MEC é o epicentro desse processo. Desde a
redemocratização, nunca suas políticas foram tão irrelevantes, o seu orçamento
tem se reduzido nestes dois anos e meio de mandato e os recursos existentes não
são gastos. A completa ausência do governo federal em meio à pandemia aumentou
a desigualdade educacional e milhões de alunos pobres brasileiros terão negado
o seu direito ao aprendizado. Agora o alvo da vez é o INEP, principal
responsável pelas provas e indicadores nacionais, que passa por uma operação de
desmonte. Mas por que o bolsonarismo quer destruir a educação? Quais os efeitos
disso para o desenvolvimento brasileiro?
Três
razões explicam a visão e a estratégia bolsonarista em relação à educação. A
primeira é que o governo Bolsonaro prioriza a guerra cultural em detrimento das
políticas públicas. Ou seja, o mais importante é defender um conjunto de
valores, mais do que se preocupar com a garantia dos direitos e a qualidade dos
serviços públicos. Além disso, como segundo fator, os atores educacionais são
considerados inimigos fundamentais na batalha do bolsonarismo para conquistar e
manter o poder, não só no plano político imediato, mas na busca da hegemonia
social. Por fim, o enfraquecimento da política educacional significa reduzir
informação, reflexão e debate, algo essencial para um presidente que busca
reduzir ao máximo o controle sobre seu poder.
A predominância da guerra cultural como norteador do modelo bolsonarista de governo tem sido apontada por vários estudiosos, com destaque para o trabalho de João Cezar Rocha. Trata-se, na verdade, de um formato que se espalha internacionalmente entre os grupos populistas de extrema direita. No fundo, o embate dos valores ganha proeminência sobre a gestão das políticas públicas. O bolsonarismo ignora os consensos técnicos em cada setor e as evidências científicas, além de evitar o diálogo com os especialistas, quando não os confronta ou até os persegue.
Recém-lançado,
o livro “Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política”,
organizado por Leonardo Avritzer, Fábio Kerche e Marjorie Marona (Editora
Autêntica), mostra como o bolsonarismo está desmontando todo o aparato de
políticas públicas que o Brasil construiu por pelo menos 30 anos, o que ampliou
o acesso a direitos e produziu resultados muito importantes em vários setores,
mesmo que ainda haja a necessidade de aperfeiçoamento da gestão pública
brasileira. Só que a prioridade dada à lógica da guerra cultural pelo governo
Bolsonaro impossibilita continuar o processo de melhoria da efetividade,
eficiência e equidade das ações estatais.
O
exemplo educacional é paradigmático da forma como funciona o bolsonarismo em
relação às políticas públicas, como notei no capítulo que escrevi para o livro
sobre governo Bolsonaro citado acima. O modelo adotado foi o de destruir e
desfazer o que havia, sem se importar muito com o que colocar no lugar em termos
técnicos e de estruturação de programas. Slogans sem amparo nos estudos ou na
experiência internacional ganharam força e profissionais com pouquíssimo
conhecimento sobre o assunto - quando o conheciam - foram escalados para os
principais postos do MEC. Para piorar, esse exército de amadores têm brigado
constantemente, quase sempre para ver quem agrada mais ao guru intelectual -
Olavo de Carvalho -, ao presidente da República e, agora, a interesses de
certas igrejas.
Por
ora, a maioria das propostas do MEC bolsonarista, geralmente sem pé nem cabeça,
tem sido derrotada no Congresso Nacional e no STF, enquanto outras ações não
têm tido muita aderência junto aos governos subnacionais. Além disso, houve
vitórias da coalizão educacional no front legislativo, sendo o novo Fundeb a
principal delas.
Mas
persistem pautas ideológicas vinculadas à guerra cultural que rondam a política
educacional. A mais perigosa é a do “homeschooling”, uma forma sorrateira de
destruir a escola pública, reduzir ainda mais o status social dos professores e
repassar recursos para as igrejas que apoiam o bolsonarismo na sua luta para
proteger as famílias do contato com as ideias do mundo moderno.
O
“homeschooling” resume bem o projeto de Bolsonaro: em vez de emancipar os
cidadãos mais pobres por meio de direitos e políticas efetivas, o objetivo é
prendê-los a estruturas arcaicas que os mantêm na posição de eternos
subordinados. Enfraquecer a gestão pública e seu arsenal científico é garantir
a líderes messiânicos ou populistas o monopólio da verdade. Não há a menor
chance de o Brasil e sua população mais carente terem um futuro melhor se o
“homeschooling” virar uma política ampla. Essa constatação não sensibilizaria o
presidente da República: seu projeto não é de modernização do país, mas sim de
manutenção do poder em alianças com grupos cujo objetivo é evitar que nosso
relógio da história ande para frente.
Mas
a destruição da política educacional não se dá apenas com a apresentação de
projetos ideológicos que propõem valores culturais arcaicos e sectários. O
modelo bolsonarista precisa sempre de inimigos e o campo educacional é um dos
mais visados, uma vez que professores, pesquisadores, gestores educacionais,
alunos de universidade e até de ensino médio geralmente pensam de forma
independente. Não se pode esquecer que a primeira grande manifestação contra o
governo Bolsonaro foi em defesa da educação, em maio de 2019.
A
luta contra os atores da educação, enfraquecendo ou destruindo as estruturas
educacionais, envolve duas dimensões temporais. De um lado, é preciso sucatear
universidades, não apoiar as redes de ensino subnacionais e brigar com
especialistas e professores para evitar que a coalizão educacional tenha
influência no presente, como adversários imediatos do governo. Mas, por outro
lado, há um projeto claro e mais amplo, que vem desde a proposta da “escola sem
partido”, de destruir qualquer espaço que possa gerar mentes independentes,
algo que, segundo essa visão, é a origem de todos os males recentes do país
desde a redemocratização. O bolsonarismo tem um propósito anti-iluminista, de
defesa da tradição, tal qual interpretada pelos aliados políticos e religiosos
do presidente Bolsonaro.
Em
outras palavras, no mundo defendido por Bolsonaro não há lugar para
profissionais como os da educação, que atrapalham o seu projeto político e
destoam de sua visão de sociedade. Como defendeu o grande pensador e educador
americano John Dewey, o processo educacional é uma escola de democracia, de
debate plural, tolerante e crítico das ideias. O bolsonarismo deseja o oposto
disso: o povo deve ser livre para fazer o que quiser, contanto que siga o
líder.
Como
último risco ao bolsonarismo, a educação pode ser uma fonte importante de
processos de “accountability” social e político, pois seus estudos geram
informação, sua prática cotidiana é norteada pela reflexão e pelo debate,
podendo mobilizar pessoas e instituições a controlar mais os governantes. E
inegavelmente o presidente Bolsonaro e seu séquito sabem bem o valor que a
informação tem na sociedade contemporânea, dado que desde as eleições esse
grupo tem sido pródigo em produzir “fake news”, contrapondo-se rapidamente e em
larga escala a tudo que é dito contra eles. Tal preocupação tem se mantido na
atuação governamental, com a luta informacional que tem havido no meio
ambiente, por conta da degradação da Amazônia, na saúde, por causa da
contabilidade de casos mortes por covid-19, bem como no desmonte do IBGE, cujo
símbolo máximo foi a inviabilização do Censo demográfico.
Governos
que almejam a autocracia não gostam das pressões geradas pelos dados produzidos
por pesquisadores e professores. Assim ocorre na Hungria, na Venezuela, na
Turquia, na Polônia e na Rússia. O sonho de Bolsonaro é trilhar este caminho de
corroer a democracia por dentro dela. Para tanto, é preciso reduzir ou
desgastar paulatinamente os controles. É sempre mais difícil ou pelo menos mais
ruidoso mexer logo de cara com a Suprema Corte ou com o Congresso Nacional, mas
tirar a autonomia da educação é menos visível para o cidadão comum e mesmo para
a imprensa. E isso gera um efeito subterrâneo e de longo prazo.
Afinal,
menos educação pode significar mais gente acreditando na cura milagrosa da
cloroquina, na guerra química produzida pela China por meio do vírus da
covid-19, na existência de hospitais vazios em meio à pandemia, na fraude com o
voto eletrônico e no desenvolvimento econômico que não respeita o meio
ambiente, como o garimpo ilegal e o turismo predatório. Se não houver espaços
de produção de informação, debate e reflexão como as escolas e a universidade,
o trabalho do bolsonarismo de vender a falsa ilusão de um mundo feliz com mais
armas e “famílias normais” fica facilitado.
Quatro
anos destruindo a educação resultará num custo alto ao Brasil, pois os efeitos
das ações educacionais demandam anos para serem semeados. Seguindo nesta toada,
teremos mais desigualdade, menos capital humano qualificado e cidadãos menos
preparados para o controle democrático dos governantes. A necropolítica
bolsonarista não é responsável apenas pela inépcia que está matando milhares de
brasileiros por covid-19. Bolsonaro quer matar a educação para colher no futuro
um país atrasado e subserviente.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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