Urge
buscar medidas que possam salvar vidas enquanto transcorre o trabalho da CPI
Pode
ser que a CPI da pandemia descubra fatos novos, que revolucionem nossa visão do
problema. Caso isso não aconteça, e é provável que não aconteça, já é possível,
pelo menos, escrever o argumento desse filme, abstraindo os lances e peripécias
de um roteiro.
Na
base de tudo está a negação da pandemia por Bolsonaro. Esse conceito de negação
foi lançado por Freud em 1923. E numa carta de 1937, escrita para um colega,
ele cita o rei Boabdil, que ao receber a notícia de que a capital de seu reino,
Alhambra, estava sitiada mandou queimar a carta e decapitar o mensageiro.
Bolsonaro
não poderia aceitar a pandemia com os problemas econômicos que trazia e,
sobretudo, a ameaça de sua reeleição. De certa forma, ele queimou a carta
enviada pelos cientistas e decapitou os ministros que insistiam no tema.
Sua
tese era de que a economia precisava seguir seu curso. Para fundamentá-la era
preciso buscar algo aparentemente científico. A tese da imunização de rebanho
foi a tábua de salvação. Todos se contaminariam de um modo ou de outro, pensava
Bolsonaro, então que se contaminassem logo para voltarmos à normalidade.
Ele abstraiu o número de mortes implícito nessa escolha. Na verdade, era preciso trazer também a esperança de cura, uma espécie de bala de prata contra a covid-19: a hidroxicloroquina. O remédio era uma resposta simples para um problema complexo. Todos se contaminam, todos se salvam pela hidroxicloroquina
Essa
negação, que teve o momento máximo quando classificou a covid como apenas uma
“gripezinha”, precisava ir adiante na negação. Se a covid-19 não tinha
importância, por que gastar fortunas com vacinas? Numa de suas declarações mais
claras sobre o tema, Bolsonaro disse preferir gastar dinheiro com remédio a
comprar vacinas.
Mais
tarde voltou ao tema, criticando a “vacina chinesa de Doria”, a Coronavac, e
terminando por lançar suspeitas também sobre as vacinas que usam a técnica de
mensageiro RNA, no caso da Pfizer: se quiser virar jacaré, ou ver mulher de
barba ou homem falando fino, tome a vacina.
Ao
longo desse tempo, o número de mortos aumentava e Bolsonaro mantinha sua
frieza: não sou coveiro. Era algo previsível em sua tática.
Daí
o desencontro entre seu comportamento e o que esperava a imprensa. Por que
evitar aglomerações, se todos vão mesmo se contaminar? Por que usar essas
opressivas máscaras? Se vamos chegar a uma situação de normalidade, é melhor
todos se contaminarem rapidamente.
Olhando
em torno, no universo particular de seu Palácio do Planalto, a teoria da
contaminação de rebanho ia muito bem: 460 funcionários se contaminaram até
abril.
A
história pode ser contada assim, até mesmo no embate entre Bolsonaro e
governadores. Ele quer a volta de todos ao trabalho e está disposto a fazer
tudo para conquistar “essa liberdade”.
São
duas concepções em jogo. Uma quer que as pessoas se vacinem, não se aglomerem,
usem máscaras e lavem as mãos. A de Bolsonaro é a volta ao trabalho, o fluxo
pleno da economia.
Quando
for concluído o relatório da CPI, é possível fazer como se fez nos Estados
Unidos: convidar um grupo de sanitaristas para examinar uma por uma essas
decisões, ou mesmo hesitações. Aqui, como lá, também seria possível os
especialistas calcularem o número de mortes que poderiam ter sido evitadas com
as escolhas corretas.
Portanto,
um minucioso trabalho de coleta de dados da CPI e um relatório que articule
esses dados ainda serão insuficientes. Será necessário quantificar as suas
consequências.
Nesse
momento, Bolsonaro pelo menos terá uma defesa. Não têm razão aqueles que o
acusam por todas as mortes pela covid-19 no Brasil. Ele teria de responder
apenas por uma parte delas.
Quando
a CPI encerrar seu trabalho, o número total de mortos no Brasil, segundo uma
previsão da Universidade de Washington, será de 600 mil pessoas. Quantas podem
ser atribuídas a uma escolha política de rasgar a carta e decapitar o
mensageiro?
Ainda
faltam detalhes à história. Até que ponto a vacinação no Brasil seguirá em
ritmo lento? Até que ponto os atrasos na remessa de IFAs não são uma represália
chinesa às declarações de Bolsonaro?
A
Coronavac está no braço de 80% dos vacinados no Brasil. Bem ou mal, dependemos
dela para uma vacinação em massa, até o momento. Da Índia dificilmente virá
alguma coisa, pois a crise lá é profunda e o próprio Instituto Serum está sob
forte pressão. A Pfizer fechou um negócio de 1,5 bilhão de doses com a Europa.
Vai estar sobrecarregada.
Nesse
contexto, provocar um rompimento com a China é apenas o lance final da
estratégia de imunização de rebanho, que, na verdade, poderia ser chamada de
extermínio de rebanho.
Isso
coloca a CPI diante de outra tarefa, mais imediata do que compilar os dados e
determinar responsabilidades. É preciso um núcleo de emergência, a busca de
algumas medidas que possam salvar vidas enquanto o trabalho transcorre. E isso
se vai dar no campo das vacinas, vencida, como parece ter sido, a batalha da
hidroxicloroquina.
*Jornalista
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