O Estado de S. Paulo
A ilha continua a alimentar uma direita
primitiva e uma esquerda anacrônica
Cuba tem uma importância política e
geopolítica muito superior ao seu pequeno território e à sua precária economia.
Para começar, a questão cubana é um tema da
política interna dos Estados Unidos. Afeta o resultado das eleições
presidenciais sobretudo pela influência decisiva que tem sobre o voto na
Flórida, o terceiro Estado com maior número de representantes no colégio
eleitoral. Quanto mais atritada for a relação entre Estados Unidos e Cuba,
melhor para a extrema direita norte-americana, que tem nos grupos
anticastristas naquele Estado uma base política de peso.
A ilha é também diretamente importante para
a América Latina. Não é segredo que o serviço de inteligência da Venezuela
conta com vários oficiais cubanos treinados em métodos de vigilância e
repressão, empregados pelo regime castrista contra dissidentes internos ou
agressões externas. Quanto mais avançar a normalização das relações entre Cuba
e Estados Unidos, maiores as chances de Havana deixar de ser um dos
sustentáculos da ditadura venezuelana.
Barack Obama fez a coisa a certa. Deu um passo na direção correta e só não deu outros porque sabia que não tinha cacife no Congresso para derrubar a legislação do embargo. Cuba e Venezuela devem ser vistas como variáveis de uma mesma equação, a ser resolvida com as pressões cabíveis dentro de relações diplomáticas que respeitem a soberania dos dois países.
A questão cubana tem ainda relevância simbólica. Mais de 60 anos depois da revolução que derrubou a ditadura de Fulgêncio Batista, Cuba continua a alimentar uma direita primitiva, de um lado, e uma esquerda anacrônica, de outro. Aquela se vale da ditadura cubana para mobilizar o fantasma da ameaça comunista e, a pretexto de defender a liberdade, cerceá-la. Esta se vale do embargo norte-americano para desculpar o autoritarismo em Cuba. Superar esse estado de coisas faria bem à democracia na América Latina.
Já houve condições mais favoráveis para
ajudar Cuba a encontrar um caminho em direção a um regime de maior liberdade
política e econômica. Quando estavam Obama na Casa Branca, Peña Nieto em Los
Pinos (palácio presidencial do México) e Lula e depois Dilma no Planalto, o
Brasil poderia ter empenhado a sua liderança regional em favor de uma transição
gradual em Cuba. Infelizmente, o governo brasileiro decidiu manter relações
econômicas e políticas preferenciais com o status quo em Havana e
Caracas.
Hoje tudo se tornou mais difícil. Joe Biden
tem desafios demais no front doméstico e na política externa para dar
prioridade à questão cubana. Da ótica do governo democrata, seria gastar
capital político no lugar errado, na hora errada. Já a América Latina se
encontra desunida como nunca, incapaz de articular uma voz minimamente uníssona
sobre qualquer assunto. A liderança brasileira, se um dia de fato foi assim tão
grande quanto se alardeava, está em frangalhos, sob um governo inepto e
destrutivo. O México, que já foi ator importante, perdeu gravitação. Está
consumido pelas questões da América Central e da fronteira com os Estados
Unidos, sob um presidente idiossincrático.
Diante desse quadro, o que fazer, além de
esperar que uma combinação virtuosa de eventos se dê nos próximos três anos,
período em que haverá eleições presidenciais no Brasil (2022) no México (2024)
e nos Estados Unidos (2024) e eleições de meio mandato neste último país
(2022)?
O mínimo a fazer é prestar solidariedade às
manifestações pacíficas de cubanos e cubanas que protestam contra a falta de
liberdade e contra condições precárias de vida, agravadas pela pandemia.
Compreender e destacar que há algo novo e promissor nas formas de protesto,
agora com protagonismo de artistas que expressam criativamente suas aspirações
e experiências de viver como dissidentes em Cuba. Demandar que o governo cubano
não os trate como inimigos internos, mas como porta-vozes legítimos de
insatisfações reais e cada vez mais prementes. Continuar a criticar o embargo
americano, um dejeto da guerra fria a ser jogado na lata de lixo da História.
À parte fazer o necessário, é preciso não
fazer o injustificável. Apoiar a repressão do governo cubano aos protestos é
não só um pecado, mas também um erro que serve à extrema direita aqui e alhures.
Cacoete ideológico de uma esquerda presa a paixões do passado e refratária à
crítica e à autocrítica.
Seria um cacoete de menor importância se
Lula não lhe pagasse um tributo retórico que alimenta expectativas negativas
sobre a política externa do Brasil na eventualidade de ser eleito. Antes de
dizer o que disse, o líder petista deveria ter lido a nota do Partido
Socialista Chileno que reafirmou a condenação ao embargo, condenou a repressão
e pediu ao governo cubano que abra canais de diálogo com as lideranças
dissidentes. Na mesma direção, embora um passo atrás, manifestou-se o partido
da Frente Ampla, no Uruguai.
Eleito ou não para novo mandato presidencial, Lula pode desempenhar um papel construtivo para bem encaminhar a questão cubana. Se quiser fazer a coisa certa.
*Diretor-geral da fundação FHC, é membro do Gacint-USP
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