O Estado de S. Paulo
Justiça e Congresso repelem ameaças, enquanto
Bolsonaro se entrega ao Centrão
Golpismo, desemprego, fome, inflação e
milhares de mortes evitáveis, mas ainda causadas pela pandemia, são as grandes
marcas, até agora, do terceiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro, o
mais inepto e mais desastroso chefe de governo do Brasil independente. Chefe de
governo, título hierárquico, é o rótulo mais adequado, porque governante ele
nunca foi. Governar é atividade complicada e trabalhosa. Se algum dia tiver
constado de sua agenda, logo deve ter sido riscada. Incompetente e omisso no
enfrentamento da covid-19, Bolsonaro já ficaria na História pelos desmandos e
erros cometidos enquanto se perdiam mais de meio milhão de vidas. Mas o
destaque de sua folha corrida, ao lado de tantos fatos sombrios, será sua
coleção de ameaças à democracia.
As ameaças bolsonarianas foram formuladas
publicamente e são inegáveis. Mais de uma vez o presidente vinculou a
realização das eleições de 2022 à adoção do voto impresso. Antes disso, apontou
o risco de desordens se a votação eletrônica for mantida. Em 7 de janeiro, um
dia depois da invasão do Congresso americano, incitada por Donald Trump,
Bolsonaro apontou o risco de algo semelhante no Brasil, em caso de suspeita de
fraude, uma hipótese fantasiosa, se o sistema for mantido.
Repetindo a fala trumpista, Bolsonaro falou em eleição fraudada nos Estados Unidos e insistiu na ideia de falsificação de resultados no País. Era essa a sua preocupação mais visível naquele momento, enquanto outros brasileiros, atentos à pandemia, torciam pelo início da vacinação. A primeira dose de vacina seria aplicada dez dias depois, em São Paulo, em evento no Hospital das Clínicas. O imunizante seria a Coronavac, introduzida no Brasil por meio da cooperação entre o Instituto Butantan e a fabricante chinesa Sinovac – aquela mesma apontada como indesejável “vachina” pelo presidente da República.
O começo da vacinação seria um dos poucos
fatos positivos de janeiro, no Brasil. Dezenas de milhões de trabalhadores,
naquele mês, haviam deixado de receber o auxílio emergencial. Condenados à extrema
pobreza, passaram a depender de campanhas de solidariedade para comer e ter
condições mínimas de sobrevivência. Nenhum centavo de ajuda federal seria
recebido no primeiro trimestre, quando o contingente desempregado chegou a 14,8
milhões de pessoas, ou 14,7% da força de trabalho. No trimestre móvel terminado
em abril esses números seriam mantidos, embora o governo insistisse em falar
numa forte recuperação econômica.
Distante das preocupações com a realidade
social brasileira, o presidente continuou concentrado em seus objetivos
pessoais e familiares – garantir a reeleição, evitar qualquer tentativa de
impeachment e proteger seus filhos de toda investigação perigosa. A defesa do
voto impresso se manteve como um dos temas centrais de sua permanente busca da
reeleição.
Embora tenha prometido muitas vezes,
Bolsonaro nunca provou a ocorrência de fraudes em 2014 e em 2018, nem mostrou
como se poderia violar a urna eletrônica. Ao repetir essa acusação, pôs em
dúvida, inevitavelmente, a competência ou a honestidade da Justiça Eleitoral.
Mas, além de insistir nessa fantasia, conseguiu a adesão do ministro da Defesa,
general Walter Braga Netto. Ao cair nesse erro, o ministro foi além dos
cuidados com a segurança nacional e com a gestão das Forças Armadas, órgãos de
Estado, e virou personagem do noticiário político.
A intromissão do general na política foi
noticiada pelo Estadão. Segundo o jornal, o ministro repetiu a fala
golpista do presidente, condicionando a realização de eleições em 2022 ao uso
do voto impresso. A ameaça, de acordo com a notícia, foi passada por uma
terceira pessoa ao presidente da Câmara, deputado Arthur Lira. Numa primeira
entrevista, o deputado negou esse fato, mas depois, em postagem eletrônica,
limitou-se a garantir a realização das eleições, sem desmentir a notícia. O
general tentou desmenti-la, inutilmente, e gastou a maior parte da declaração
falando sobre voto impresso.
Ministros do Judiciário, presidentes da
Câmara e do Senado e outros políticos logo reagiram ao ministro da Defesa. Defenderam
as eleições em 2022, condenaram ameaças golpistas e repeliram as manifestações
de autoritarismo.
Quando o general Braga Netto cometeu a
tolice de sair de seu cercadinho, o presidente já estava, mais uma vez,
politicamente acuado. O avanço da CPI da Covid, os sinais de corrupção no
Ministério da Saúde, a pandemia prolongada, o desemprego elevado e a
insistência dos defensores do impeachment assombravam Bolsonaro e seu círculo
mais próximo. Seu passo seguinte, “em busca de uma melhor interlocução com o
Parlamento”, foi sujeitar-se mais claramente ao Centrão, nomeando para a chefia
da Casa Civil uma das principais figuras do bloco, o senador Ciro Nogueira.
Como em janeiro de 2019, Bolsonaro continua sem plano de governo. Seu objetivo
evidente, agora, é evitar riscos e sobreviver na Presidência. Falta verificar
se o novo diálogo com o Congresso reduzirá – e por quanto tempo – seu ímpeto
golpista.
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