Eliezer Rizzo de Oliveira, cientista político e professor aposentado da Unicamp
Professor vê conexão de interesses entre partido ‘de extração verde-oliva’ e a candidatura de Bolsonaro ao Planalto
Wilson Tosta / O Estado de S. Paulo
RIO – Especializado na área militar, o
cientista político e professor aposentado da Unicamp Eliezer Rizzo de Oliveira
vê se desenhar “um cenário de crise” na movimentação política das Forças
Armadas em relação ao voto eletrônico nas eleições de 2022. O
exemplo é o da invasão do
Capitólio por apoiadores de Donald Trump, inconformados com a
vitória de Joe Biden, em janeiro – com peculiaridades brasileiras que aponta.
Como a possível ação de “setores da sociedade armados e mobilizáveis”, que,
diante de uma derrota de Jair Bolsonaro,
produzam um “cenário de extrema violência”. “O protagonismo militar está em
pleno ato.” Segundo ele, ocorreu em 2018 uma conexão de interesses entre uma
espécie de partido militar “de extração verde-oliva” e a candidatura de
Bolsonaro ao Planalto.
A seguir, trechos da entrevista.
Como o sr. analisa o episódio de ameaça às eleições
de 2022 enviada pelo ministro da Defesa, Braga Netto ao
presidente da Câmara, Arthur Lira?
O episódio é nebuloso, já que o general
Braga Netto o desmentiu e Lira não o teria confirmado, tampouco desmentido. No
entanto, o deputado se inscreve entre as diversas personalidades que vieram a
público para defender as eleições. Algumas criticaram duramente o general Braga
Netto, com toda razão. E este também se manifestou: não teria formulado ameaça
militar, não costuma mandar recados, mas falar diretamente com as autoridades
políticas e – aqui o principal – ele se alinha ao voto impresso, que é o sonho
autoritário de Bolsonaro. O ministro age como se fosse membro de um diretório
nacional partidário. Sim, no caso, do partido verde-oliva que governa com Bolsonaro.
O voto eletrônico é realmente uma
preocupação entre militares ou é uma chave que usam para interferir na
política?
Imagino que haja militares a favor e contra
o voto eletrônico. Mas não poderia dizer se eles associam suas posições às de
seus comandantes militares. Bolsonaro, sim, tornou o voto impresso uma questão
de condição para preservar a democracia: “sem voto impresso não haverá
eleição”. Como, se a eleição é determinação constitucional? Vai colocar tanques
nas ruas? Os comandantes cumprirão tal ordem inconstitucional? Espero que não,
que cumpram a Constituição. Os governadores cruzarão os braços? Desenha-se mais
um cenário de crise, a exemplo da invasão do Capitólio por trumpistas. Se
agregarmos setores da sociedade armados e mobilizáveis, chegamos a um cenário
de extrema violência que sugere golpe militar para controlar o caos
social.
O que explica que as Forças Armadas, que
foram as “grandes mudas” da política brasileira, de 1985 a 2018, voltem a
querer ter o velho protagonismo?
As Forças Armadas foram valorizadas, de certo modo, e conviveram com o processo de reparação das vítimas da violência repressiva da ditadura militar: Lei e Comissão de Pessoas Presas e Desaparecidas e Comissão da Anistia. O presidente Fernando Henrique Cardoso criou o Ministério da Defesa, contrariamente à vontade dos altos comandos militares. Mas estes se resignaram e não confrontaram o presidente. Foram adotados importantes documentos de Defesa Nacional – Política Nacional de Defesa, Estratégia Nacional de Defesa e Livro Branco de Defesa Nacional – com a participação das Forças e relativa participação de políticos e acadêmicos.
O que aconteceu, então?
O ponto de virada, a meu ver, foi a
combinação de crise política dos governos de Lula – corrupção – e Dilma –
Comissão Nacional da Verdade. A CNV decorreu de um pacto não formalizado, mas
efetivo, entre o governo Lula e os comandantes. Assim, a CNV devia investigar
os crimes contra os direitos humanos cometidos pelo Estado e também por pessoas
e grupos políticos da luta armada, sem restrições. A CNV cumpriu parcialmente
sua finalidade legal, pois investigou exclusivamente os delitos contra os
direitos humanos cometidos por agentes públicos ou em conexão com eles. E não
respeitou a anistia, embora tenha suavizado posições no relatório final.
E quais as consequências?
Em suma, o militarismo latente entre
militares, da ativa e da reserva, sobretudo de clubes e associações, e civis
veio à tona. Generais da reserva ameaçaram com o protagonismo militar,
eufemismo de intervenção militar. Ocorreu então uma conexão de interesses entre
uma espécie de partido militar de extração verde-oliva e a iniciativa do
deputado Jair Bolsonaro para ser candidato à Presidência. Ele se notabilizara
pela agressiva atuação parlamentar como defensor dos interesses profissionais
dos militares, ainda que confrontando regulamentos e gerando desconforto às instituições
castrenses. Tratava-se agora de enfrentar o “socialismo”, de impedir o retorno
das esquerdas ao poder. Leia-se, de impedir Lula de ser candidato, daí a ameaça
de intervenção militar do general Villas Bôas, em abril de 2018. Eleito
Bolsonaro, uma das bandeiras deste governo civil com administração e domínio
militares é precisamente impedir o retorno das esquerdas. E, se um candidato de
esquerda, Lula ou outro, vier a ser eleito, será impedido por ação militar?
Estaremos diante de um golpe de estilo clássico?
Esse movimento é iniciativa da liderança
militar ou há um amplo consenso na tropa sobre a retomada do protagonismo
político?
Comandantes de diversos níveis tornaram-se
líderes políticos, os da reserva com toda liberdade. Assim, há sinais claros de
uma intensa militância nos quartéis na direção do que apontei. Há generais que
se incomodam com tal situação, pois identificam nela um perigo para o
profissionalismo e o preparo militar para a defesa nacional. Porém, dada a
situação atual, interessa a Bolsonaro a politização do meio militar, que lhe
fornece uma base numerosa de eleitores.
O que explica tal processo?
A formação intelectual e profissional dos
militares é fundada em valores conservadores no Brasil. Mas não necessariamente
antidemocráticos. Bolsonaro levou os militares ao governo como prometera. Para
preservá-los, compra-os com vantagens previdenciárias, recursos para a Defesa,
acúmulo de vencimentos acima dos limites constitucionais, cargos e
flexibilização absurda da permanência de militares em cargos civis. Quem
participa desta militarização da administração tem motivo financeiro para se
empenhar pela reeleição de Bolsonaro. Os quadros militares, tal como os quadros
sindicais de Lula e Dilma ou intelectuais de FHC, exercem o poder de Estado.
Ganham com isso, mas poderão perder. O desastre do Ministério da Saúde sob
direção do general da ativa (Eduardo) Pazuello é evidência da militarização da
administração, em confronto com a convicção no meio militar de que militares
são administradores mais competentes do que civis. Até que aparece um esquema
corruptor para desmentir.
Trata-se de um anacronismo, um desejo de
volta ao passado de prestígio e força dos militares, ou vontade de mudar o
futuro das Forças Armadas, transformando os militares novamente em atores
políticos?
Uma capa superior das Forças Armadas, do
Exército com todo destaque, é formada por atores políticos. Mas em outros
níveis também. Alguns são intelectuais que elaboram interpretações sobre o
passado, o presente e o futuro, defendendo o direito das Forças Armadas à
intervenção militar, ainda que sem base legal.
Há um projeto de Brasil aí?
Identifico um projeto de Estado danoso:
antissocial; autoritário; ultraliberal; promotor do armamento da população como
uma espécie de segurança pública privada; negacionista da ciência e da educação
pública; controlador do pensamento científico; confrontador da
institucionalidade democrática, dos poderes da República, do voto, das
eleições. Em Fascismo Eterno, Umberto Eco sugere que tais atitudes e
perspectivas são “nebulosas fascistas”, um namoro com o autoritarismo.
Quais poderão ser as consequências para as
Forças de um eventual retorno do protagonismo militar na política?
O protagonismo militar está em pleno ato. A
consequência inevitável é a politização dos mais diversos meios e instituições
militares. Para contê-la, poderá ocorrer um acirramento da disciplina e do
controle político nos quartéis.
E para o País?
Não bastaria afirmar que esta situação faz mal ao Brasil e representa um risco gravíssimo à democracia. Devemos ir além. Os candidatos à eleição presidencial de 2022 precisam firmar posição sobre o que pretendem fazer com as Forças Armadas, os militares, os policiais, a defesa nacional e a segurança pública. Não bastam palavras soltas ao ar. É fundamental a apresentação de programas com planos, métodos, metas. A saída da presente militarização da administração federal não será uma tarefa dos militares, mas dos políticos previdentes e com a participação necessária das Forças Armadas institucionais. Pois elas existem e cumprem suas funções no dia a dia. Em tempo, é fundamental que candidatos progressistas reafirmem a Lei da Anistia. Ignorá-la tem sido um erro das esquerdas.
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