EDITORIAIS
Forças Armadas não são nem têm ‘poder
moderador’
O Globo
Continua a prosperar no universo paralelo
do bolsonarismo uma interpretação descabida da Constituição que justificaria
uma intervenção militar em apoio aos desígnios golpistas do presidente Jair
Bolsonaro. Essa leitura estapafúrdia do artigo 142 da Carta, que estabelece o
papel das Forças Armadas na República, não passa de uma tentativa de aplicar um
verniz, de conferir uma pátina de legalidade à ruptura da ordem democrática.
Rechaçada pelo consenso dos juristas, ela já foi formalmente descartada pelo
Supremo Tribunal Federal (STF).
A visão deturpada desse artigo atribui às
Forças Armadas o exercício de um pretenso “poder moderador” — inexistente em
todas as Constituições republicanas. Seria apenas mais um delírio das redes
sociais, não tivesse sido ressuscitada nesta semana em entrevista do general da
reserva Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
Depois de pregar contra “excessos”, Heleno afirmou que a intervenção militar
“poderia acontecer em momento mais grave”. Argumentou que, se o artigo 142
“existe no texto constitucional, é sinal de que pode ser usado”.
Ora, em nenhum momento o artigo 142 confere às Forças Armadas autoridade para intervir ou moderar crises entre o Executivo e os demais Poderes. Ao contrário, ele deixa claríssimas as três funções constitucionais de Exército, Marinha e Aeronáutica. Textualmente, “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Quem deu início à interpretação equivocada — e conveniente para as intenções golpistas de Bolsonaro — foi o jurista Ives Gandra Martins, ao enxergar nesse trecho a atribuição às três Forças da missão de moderar crises entre os Poderes. Só que isso é pura lorota, já que simplesmente não está escrito no texto constitucional.
Para quem tinha alguma dúvida, a questão
foi dirimida pelo ministro Luiz Fux, presidente do Supremo, quando analisou no
ano passado uma ação ajuizada pelo PDT sobre a missão das Forças Armadas.
“Inexiste no sistema constitucional brasileiro a função de garante ou de poder
moderador”, escreveu Fux em medida cautelar. “Para a defesa de um Poder sobre
os demais, a Constituição instituiu o pétreo princípio da separação de
Poderes.”
Noutro trecho, Fux esmiúça o papel do
presidente da República: “A ‘autoridade suprema’ sobre as Forças Armadas
conferida ao Presidente da República correlaciona-se às balizas de hierarquia e
de disciplina que informam a conduta militar. Entretanto, por óbvio, não se
sobrepõe à separação e à harmonia entre os Poderes, cujo funcionamento livre e
independente fundamenta a democracia constitucional, no âmbito da qual nenhuma
autoridade está acima das demais ou fora do alcance da Constituição”.
Foi o que voltou a esclarecer ontem a
ministra Cármen Lúcia, em entrevista à jornalista Míriam Leitão, ao reiterar
que as Forças Armadas “não são um poder à parte” e que o artigo segundo da
Carta estabelece somente três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Cabe aos ministros do STF o dever de interpretar o texto constitucional. O
general Heleno e os bolsonaristas que embarcam na interpretação desvairada do
artigo 142 deveriam ouvi-los. Do contrário, não serão democratas genuínos.
É inaceitável a promiscuidade entre facções
e gestão de presídios do Rio
O Globo
A prisão ontem da cúpula da Secretaria de
Administração Penitenciária (Seap) do Rio, pela Polícia Federal, deveria levar
a uma reflexão sobre como o estado gerencia mal uma das áreas mais sensíveis
relacionadas à segurança pública. É estarrecedor que o secretário estadual de
Administração Penitenciária, Raphael Montenegro, e os subsecretários Wellington
Nunes da Silva e Sandro Farias Gimenes, responsáveis pelo sistema carcerário
fluminense, tenham sido detidos numa operação da PF para desarticular um
esquema criminoso na secretaria. Na casa de Montenegro, agentes apreenderam R$
250 mil em notas de real e dólar.
A ação foi desencadeada depois da visita de
Montenegro ao traficante Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP — chefe da
maior facção criminosa do estado —, no presídio federal de Catanduvas, no
Paraná, em 28 de maio deste ano. Segundo as investigações, Montenegro pedira
para conversar com o detento no pátio. Como mostrou reportagem do GLOBO,
visitas de secretários de Administração Penitenciária aos presos são
inusitadas, tanto quanto a retirada dos detentos de suas celas. O diálogo, de
acordo com a PF, foi sobre o retorno do bandido ao Rio.
Registre-se que a investigação só avançou
devido ao aparato de segurança do presídio de Catanduvas, que conta com um
sistema de escuta ambiental capaz de captar conversas no interior das
instalações. Diferentemente do caos reinante na maior parte das penitenciárias
do país, as unidades federais de segurança máxima têm celas individuais
monitoradas em tempo real. Os dados são gravados e arquivados. Daí a conversa
ter chamado a atenção. Evidentemente, não significa que sejam inexpugnáveis —
já houve casos em que o esquema foi burlado, em geral com a conivência de
funcionários —, mas, quanto mais obstáculos, melhor.
Sabe-se que, em todo o país, o sistema
carcerário é um problema que demanda solução urgente. Abarrotados, com
segurança e infraestrutura precárias, os presídios se transformaram em escolas
do crime, protagonizando um papel bem diferente daquele que se espera deles.
Chefes do tráfico e de milícias costumam comandar de dentro das celas seus
negócios ilícitos. Ordenam invasões e mandam executar inimigos. Qualquer plano
de segurança pública precisa levar em conta o que se passa dentro dos
presídios.
Por ser uma área nevrálgica, a Administração Penitenciária tem de ser bem gerida. O mínimo a esperar é que seus gestores estejam acima de qualquer suspeita. É intolerável a promiscuidade da cúpula da Seap com facções criminosas. Agiram bem a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. Mas prender e exonerar os acusados não encerrará a questão. Um dos aspectos mais assustadores do escândalo é constatar quão vulnerável é essa estrutura. O estado precisa fazer uma depuração em seus quadros para se blindar contra situações semelhantes.
A moderação do Senado
O Estado de S. Paulo
Em tempos em que a Presidência da República
e a Câmara dos Deputados flertam com a irresponsabilidade, o Senado tem sido fonte
de estabilidade para o País, com sua independência e equilíbrio. Desde o
primeiro semestre, a CPI da Covid vinha mostrando a importância da separação de
Poderes, ao investigar as ações e omissões do governo federal na pandemia. Mais
recentemente, outros aspectos positivos da responsabilidade do Senado ficaram
em evidência.
Em mais uma tentativa de criar conflito com
outros Poderes, o presidente Jair Bolsonaro disse que vai apresentar no Senado
pedido de impeachment dos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes,
do Supremo Tribunal Federal (STF). Em tese, a inusitada ameaça deveria causar
algum abalo. Afinal, é o chefe do Executivo recorrendo à ameaça explícita.
Contrariado em seus interesses pelos dois ministros do Supremo, diz que vai
acusá-los de crime de responsabilidade.
No entanto, em razão da atuação responsável
do Senado, a ameaça não surtiu maiores efeitos. É notório que o tal pedido de
impeachment não tem viabilidade, como o próprio vice-presidente Hamilton Mourão
reconheceu. “Acho difícil o Senado aceitar”, disse.
A responsabilidade do Senado fez, portanto,
com que a ameaça de Jair Bolsonaro, que podia ser uma nova fonte de
instabilidade em um momento delicado como o atual, recebesse o devido
tratamento. A fala foi vista como mais uma pirraça do presidente. A atuação de
Jair Bolsonaro continua sendo grave, mas seus efeitos foram devidamente
limitados.
Outra manifestação da independência do
Senado em relação ao Palácio do Planalto – e que contribui para pôr limites à
irresponsabilidade de Jair Bolsonaro – refere-se à escolha do novo ministro do
Supremo. Segundo o Estado, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tem
deliberadamente atrasado a tramitação do processo de avaliação do nome indicado
pelo Palácio do Planalto.
A indicação de André Mendonça para a vaga
do STF é especialmente problemática. Sua atuação à frente do Ministério da
Justiça mostrou que a defesa dos interesses bolsonaristas tem prevalência sobre
seu compromisso com a Constituição. Além disso, o presidente Bolsonaro manifestou
várias vezes que sua opção pelo nome de André Mendonça não teve nenhuma relação
com os requisitos constitucionais. Foi uma escolha baseada na religião do
candidato e em sua relação de amizade.
Fará muito bem, portanto, o Senado em não
apenas segurar a tramitação dessa indicação, mas em rejeitar o nome de André
Mendonça na sabatina. O papel do Supremo é defender a Constituição. Não há vaga
na Corte para quem tem outras prioridades.
O Senado também tem sido – e pode ser ainda
mais – fonte de tranquilidade para o País em seu papel de Casa Revisora. Nas
últimas semanas, a Câmara dos Deputados acelerou a tramitação de projetos
legislativos que são verdadeiros retrocessos institucionais, como a volta das
coligações partidárias em eleições proporcionais.
Com a aprovação em primeiro turno da
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 125/11, a Câmara dos Deputados mostrou
não apenas desprezo pela qualidade da representação política. As coligações em
eleições proporcionais distorcem o voto, dando-lhe efeitos muito diferentes aos
esperados pelo eleitor, e estimulam legendas sem identidade programática. Os
deputados revelaram também indiferença com a estabilidade da Constituição. Em
2017, Câmara e Senado aprovaram a Emenda Constitucional (EC) 97/2017, que
proibiu as coligações em eleições proporcionais.
Com a mesma responsabilidade que vem
tratando as investidas do presidente Jair Bolsonaro, cabe ao Senado rejeitar os
retrocessos da Câmara. Com tantos problemas urgentes a serem enfrentados, não
há razão para o Congresso piorar o ordenamento jurídico.
A quem questiona a razão do sistema
bicameral no Legislativo, o Senado tem a oportunidade de dar, neste momento,
uma resposta muito convincente. Como poucas vezes se viu, a moderação e a
responsabilidade desta Casa Legislativa podem fazer toda a diferença.
Alternância no poder e democracia
O Estado de S. Paulo
É da natureza humana o apego ao poder uma
vez conquistado. A fim de evitar que esta perniciosa tendência contaminasse as
instituições políticas, visando a submetê-las às vontades de um soberano,
sociedades que lutaram pela liberdade ao longo da História conceberam uma série
de mecanismos que permitissem a alternância entre os detentores do poder de
tempos em tempos.
No século 18, Montesquieu, expressão mestre
do constitucionalismo moderno, ensinou que, “para que o abuso de poder seja
impossível, é necessário que, pela ordem das coisas, o poder faça o poder
parar”. Décadas mais tarde, James Madison sintetizaria o pensamento do
iluminista francês ao escrever que “é preciso fazer com que a ambição seja
neutralizada pela ambição” durante os arranjos para a elaboração da
Constituição dos Estados Unidos.
Ao contrário da aristocracia, “o governo
dos melhores”, a democracia admite governantes imperfeitos, mas não admite
senhores, não admite autocratas. A alternância de poder é, pois, atributo
primordial da democracia. Não se pode falar de uma coisa sem a outra. Uma
democracia só está amadurecida quando a miríade de interesses coletivos em jogo
em dada sociedade é mediada civilizadamente no âmbito das disputas políticas,
vale dizer, na luta por espaços de representação na Presidência e no Parlamento
regida por normas que todos aceitam como justas e às quais todos se submetem.
Isto implica que sejam dadas a cada um daqueles diferentes grupos de interesse
as condições – não só meramente formais – para vencer uma eleição e chegar ao
poder se assim for a vontade dos eleitores.
Para fluir perfeitamente, no entanto, este
pacto social há de ser uma via de mão dupla. Se, por um lado, forças políticas
alternativas ao governo de turno devem ter a chance de substituí-lo por meio do
voto, por outro, o grupo político ora detentor do poder precisa reconhecer o
resultado do pleito em caso de eventual derrota. Caso contrário, será um
traidor do mesmo pacto que propiciou sua ascensão ao poder e revelará de forma
cabal, por vezes trágica, sua vocação liberticida.
Até pouco tempo atrás, a contestação de
resultados de eleições cuja lisura foi inquestionável era um problema restrito
às republiquetas. Não mais. Nas duas maiores democracias das Américas, Estados
Unidos e Brasil, pôr em xeque a segurança do processo eleitoral se converteu em
uma das táticas para manutenção de poder engendradas por populistas como Donald
Trump e Jair Bolsonaro, não raro recorrendo à desinformação e às teorias
conspirativas.
A bem da verdade, os brasileiros tiveram um
aperitivo deste ardil na eleição presidencial de 2014, quando o então candidato
Aécio Neves (PSDB) não reconheceu a vitória de Dilma Rousseff (PT), sob a
alegação de “desconfianças propagadas nas redes sociais que colocaram em dúvida
desde a votação até a totalização dos votos” dados à petista. Um despautério
que, até Bolsonaro, parecia ter sido superado.
Apenas dois meses após tomar posse, convém
lembrar, Bolsonaro subiu um degrau em sua escadaria de infâmias ao afirmar ter
sido vítima de “fraude” em um pleito do qual saíra vencedor. Até hoje repete a
cantilena de que teria vencido a disputa no primeiro turno. E até hoje não
apresentou uma evidência sequer, por mais tênue que fosse, que corrobore sua
perigosa alegação. “Se o presidente da República tiver provas (de fraude na
eleição), tem o dever cívico de entregá-la ao Tribunal Superior Eleitoral.
Estou com as portas abertas. O resto é retórica política, são palavras que o
vento leva”, disse há poucos dias o presidente da Corte, ministro Luís Roberto
Barroso.
No caso americano, o vigor das instituições
democráticas foi submetido a um teste de estresse antes inimaginável, mas, ao
final, prevaleceram as leis e a vontade dos eleitores. O Brasil tem encontro
marcado com esta agitação no ano que vem, caso Bolsonaro não seja reeleito. O
que determinará se o movimento será choro de perdedor ou, de fato, uma crise
institucional será a força das instituições pátrias.
O ‘direito’ de faltar ao serviço
O Estado de S. Paulo
Depois de terem resistido ao máximo à
decisão das autoridades educacionais estaduais de retomar as aulas presenciais,
sob a justificativa de que só estariam seguros quando toda a população
estivesse vacinada, os professores da rede pública de ensino básico voltaram a
entrar em confronto com o governo do Estado de São Paulo.
Desta vez, o problema é o projeto de lei
enviado pelo governador João Doria (PSDB) à Assembleia, com o objetivo de
reduzir o número de faltas permitidas e de facilitar a demissão dos servidores
públicos menos assíduos. O projeto abrange todo o funcionalismo, mas seu maior
impacto recai sobre o professorado.
Pela legislação em vigor, as faltas
injustificadas não podem ultrapassar 15 dias seguidos ou 45 dias intercalados.
Além disso, 6 faltas podem ser abonadas, sem desconto no salário, e outras 24
podem ser justificadas. Os servidores também gozam de outras possibilidades de
afastamento, como 6 faltas para ida ao médico e 1 falta médica parcial, que
permite aos docentes com 35 horas-aula faltar três horas por dia pelo mesmo
motivo, sem limite de dias no ano.
A iniciativa do governo estadual foi tomada
após a Secretaria Estadual da Educação ter detectado que a média de faltas por
docente da rede pública passou de 8,1 para 9,5 dias entre 2015 e 2018. Já a
duração de licenças pulou de 18,6 para 29,8 dias. Ao todo, são quase 40 dias de
ausência em sala de aula por professor. Segundo a Secretaria, 13.122
professores, ou 10% dos docentes da rede estadual de ensino básico, foram
responsáveis por 41% das faltas em 2018.
O crescente índice de absenteísmo do
professorado paulista vem gerando dois problemas graves. Por um lado, ele
desorganiza o planejamento anual das atividades didáticas e exige que a Secretaria
da Educação tenha de providenciar substitutos, para que os alunos não fiquem
sem aulas. Por outro lado, essa troca de professores prejudica o desempenho das
turmas.
É por esse motivo que o nível de
aprendizagem escolar vem caindo em São Paulo, quando comparado com as demais
unidades da Federação. Levantamentos feitos há uma década pela Secretaria
Estadual da Educação apontam que um ponto porcentual a mais no índice de
absenteísmo dos professores da rede pública estadual de ensino básico acarreta
para os estudantes da quarta série do ensino fundamental uma perda de 7,5% nas
notas de Português e de 8,5% em Matemática.
Enviado à Assembleia com pedido de
tramitação em regime de urgência, o projeto do governo estadual acaba com as 6
faltas abonadas. Também reduz o número de faltas necessárias para a exoneração
de um servidor absenteísta, prevendo que ele será demitido se tiver faltado
mais de 15 dias consecutivos ou 20 intercalados de faltas injustificadas.
Também se passa a exigir perícia em todos os casos de licença médica,
independentemente do prazo de duração. Autoriza a Secretaria da Educação a
promover a contratação de docentes temporários no caso de greves longas dos
professores concursados. Mantém, porém, a chamada bonificação de rendimento do
professorado.
Para a presidente do Sindicato dos
Professores do Ensino Oficial de São Paulo (Apeoesp), Maria Izabel Noronha, que
é deputada estadual pelo PT e faz oposição ao governo Doria, o projeto promove
um “desmonte do serviço público”. Também critica a revogação do “direito” de os
servidores terem “pelo menos seis faltas anuais”. E convocou uma paralisação
dos docentes para a próxima quinta-feira, pedindo ainda que os docentes
pressionem os deputados estaduais, “sobretudo da base do governo”, em suas
residências, para rejeitar o projeto.
Os argumentos da Apeoesp não são minimamente convincentes. Afinal, todo governo tem o dever de tornar a máquina administrativa mais eficiente e de impedir que ela seja capturada pelos setores articulados do funcionalismo, em detrimento dos cidadãos-contribuintes. E também tem a obrigação de fazer o que estiver ao seu alcance para aumentar os níveis de aprendizagem na escola pública. Nesse sentido, o governo paulista está no caminho certo.
A decisão do Senado
Folha de S. Paulo
Exame de indicação ao STF deve levar em
conta ataque de Bolsonaro a instituições
Noticia-se que ministros e aliados tentam
dissuadir Jair Bolsonaro do plano, bravateado à moda do pior populismo, de
pedir o impeachment de dois ministros do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto
Barroso e Alexandre de Moraes.
Calcula-se em Brasília que o arroubo
presidencial, mais uma vez, não dará em nada —ou, mais precisamente, dará
apenas em tensão política e institucional, o que não deixa de ser um êxito na
cruzada antidemocrática do mandatário.
Desta vez, arrastou-se para o conflito
estéril o Senado Federal, ao qual compete a decisão sobre o impedimento de
ministros do STF por eventuais crimes de responsabilidade. A ofensiva, por si
só, pode se desfazer com uma canetada do
presidente da Casa; os senadores, entretanto, terão deliberações
mais espinhosas pela frente.
Bolsonaro não pretende mais do que insuflar
seus seguidores contra os dois magistrados —Barroso, ora à frente da Justiça
Eleitoral, por ter contestado as mistificações lançadas contra as urnas
eletrônicas e a lisura de pleitos passados; Moraes, por conduzir inquérito, de
fato heterodoxo, que mira ataques de bolsonaristas à democracia.
Resta evidente que a cúpula do Judiciário
reage a ataques patrocinados pelo presidente da República desde o ano passado,
quando a mais alta autoridade do país participou de atos com bandeiras
golpistas. Reage, ademais, à omissão
renitente do procurador-geral, Augusto Aras, diante dos desmandos.
É nesse contexto que o Senado examinará o
segundo indicado por Bolsonaro ao Supremo, seu ex-auxiliar André Mendonça, além
da recondução do próprio Aras ao comando do Ministério Público.
Fazê-lo de modo meramente protocolar, como
tem sido a praxe histórica, será contribuir para a degradação das instituições.
No primeiro caso, trata-se de posto a ser
ocupado até a aposentadoria compulsória, aos 75 anos —e há o precedente de
Kassio Nunes Marques, a outra escolha do atual governo para a corte, onde dá
mostras sucessivas de alinhamento aos interesses do Planalto.
Mendonça, 48, quando ministro da Justiça,
buscava agradar ao chefe com tentativas de usar a Lei de Segurança Nacional,
herança da ditadura militar, contra críticos do governo. Além da subserviência,
a condição de pastor presbiteriano pesou em sua indicação.
Não será surpresa se os senadores optarem
pela estratégia menos conflituosa de retardar o
trâmite do processo, no qual o postulante precisa passar por
sabatina e receber a aprovação da maioria da Casa. Trata-se de expediente com
prazo exíguo de validade, porém.
Logo será necessária uma atitude mais clara
ante Bolsonaro —que não faz segredo de suas intenções.
Retomada com máscara
Folha de S. Paulo
Volta de atividades em SP torna ainda mais
essencial o comportamento responsável
Com o relativo arrefecimento da pandemia e
após quase um ano e meio de restrições, compete ao administrador público a
tarefa de encontrar um ponto de equilíbrio entre as recomendações mais
draconianas de especialistas e o compreensível anseio da população e dos
agentes econômicos por um retorno à normalidade.
A manutenção de controles muito rígidos,
num momento em que a vacinação avança e o número de óbitos cai, pode provocar
aflição e desânimo no público, além de agravar os danos sociais.
Já um relaxamento geral tende a suscitar a
sensação triunfalista de que a pandemia está vencida e resultar num repique de
infecções e mortes, com a consequente retomada das restrições, como se vê em
algumas partes do mundo.
O governo paulista começa, nesta terça
(17), uma tentativa de encontrar um meio-termo —não sem
divergências no colegiado de especialistas que assessora a gestão,
agora reduzido de 21 para 7 membros.
Conforme anunciado pelo governador João
Doria (PSDB), foram abolidas as limitações de horário e de lotação para
estabelecimentos, à exceção de aglomerações em casas noturnas e espetáculos.
A decisão se ampara na redução do número de
hospitalizados e no progresso da imunização. Os menos de 9.000 pacientes hoje
internados representam o mais baixo patamar desde novembro de 2020.
A vacinação já atinge com ao menos uma dose
71% dos paulistas, índice semelhante aos de Reino Unido e França, conquanto
apenas 30% estejam plenamente protegidos, ante 60% e 53% nos outros dois casos,
respectivamente.
Porém não pode ser tratado como detalhe o
fato de que ainda são registradas cerca de 8.000 novas infecções e 250 mortes
por dia. Tampouco deve ser ignorado o avanço da variante delta, mais
contagiosa.
Assim, é acertada a decisão estadual de
manter, ao menos até o fim do ano, a obrigatoriedade do uso de máscaras, a mais
eficiente medida de prevenção fora a vacina.
A importância cabal do equipamento
recomenda um incremento da fiscalização nos estabelecimentos e nas ruas, assim
como demanda campanha de conscientização. Deveria ser considerada ainda a
distribuição gratuita da proteção em locais de grande circulação.
Por fundamentais que sejam as obrigações do
poder público, cabe aos cidadãos também agir com responsabilidade. Só assim se
evitará um retrocesso prejudicial a todos.
Uma derrota anunciada dos EUA no
Afeganistão
Valor Econômico
Agora o Talibã pode promover um retrocesso
em toda a linha, embora existam motivos para que não façam isso e para que o
pragmatismo penetre o manto do fanatismo
O resultado da aventura americana no
Afeganistão foi semelhante às congêneres anteriores: fracasso. Vinte anos após
a invasão do país e a expulsão em poucos meses dos sunitas radicais do Talibã,
que abrigavam a Al Qaeda de Osama bin Laden, a saída programada das tropas e a
ocupação a jato do território pelos talibãs rememoraram coreografias de outras
intervenções malsucedidas. Apesar das semelhanças, o xadrez geopolítico é hoje
diferente de quando os EUA se perderam no pântano vietnamita e mesmo de quando
foram colher o fracasso nas montanhas afegãs em 2001. A coleção de derrotas é
obra bipartidária, de republicanos e democratas.
O retorno súbito do Talibã, após o completo
domínio do território sem grandes batalhas - com a rendição de tropas pagas,
armadas e sustentadas pelos EUA - foi mais um dos muitos atos da calamitosa
política externa do presidente Donald Trump. Trump retirou o chão de seus
aliados em Cabul ao negociar à revelia deles um acordo de paz com o Talibã em
2020 e estabelecer um prazo para a retirada das tropas americanas. Ele concluiu
de forma errada uma aventura que também começou mal na gestão do republicano
George W. Bush. O intuito era eliminar a Al Qaeda do mapa e seus protetores, os
talibãs. O auge da escalada, no entanto, foi obra de Barack Obama quando, em
2009, 110 mil soldados foram enviados ao país, abrindo caminho para a
perseguição a Bin Laden, morto em maio de 2011.
Pouco havia a fazer depois disso no
Afeganistão, mas o governo americano pretendia exportar a democracia, seu
slogan para intervenções mundo afora. Patrocinou um governo local na esperança
que ele fosse capaz de se sustentar e administrar o país. Duas décadas depois,
ruiu como castelo de cartas.
Os aliados americanos, como frequentemente
acontece, não eram exatamente populares e muito menos honestos. Foram membros
de uma elite vista como corrupta, em um país onde viceja a milionária rede
clandestina do tráfico de ópio, que também nutre o Talibã. Ocorreu também com o
governo fantoche de Van Thieu, no Vietnã do Sul, corrupto, despótico e odiado
pela maioria. O medo ao reinado de terror do Talibã, que se abateu
principalmente sobre as mulheres, não tornou os sucessivos governos apoiados
pelos EUA populares ou respeitados.
Os EUA gastaram perto de US$ 1 trilhão no
Afeganistão, mas uma parcela ínfima foi destinada à melhoria econômica e social
de um país miserável. Dos US$ 946 bilhões, US$ 925 bilhões foram para cobrir os
gastos das próprias tropas americanas e dos militares afegãos e apenas US$ 21
bilhões para ajuda econômica, pouco mais de US$ 1 bilhão para cada ano de
permanência (ver artigo de Jeffrey Sachs na página ao lado).
Houve um período de liberdades democráticas
e algum desenvolvimento, insuficientes, porém, para vencer a batalha pelo apoio
dos afegãos. Agora o Talibã pode promover um retrocesso em toda a linha, embora
existam motivos para que não façam isso e para que o pragmatismo penetre o
manto do fanatismo. O principal deles é que o mundo mudou. A guerra fria, que
moveu ideologicamente a guerra no Vietnã, terminou. Bin Laden está morto, a Al
Qaeda não se levantou, o Exército Islâmico (EI, outro habitante das redondezas)
foi derrotado, e o inimigo preferencial dos EUA é distinto - a China, que
saudou o novo governo e usou a retirada americana como prova de traições a que
os EUA submetem seus aliados.
Abrigar terroristas que atacam os EUA, como
bin Laden deixou o Talibã duas décadas fora do poder, um preço talvez alto para
se pagar de novo. A China, aliada de primeira hora, não quer problemas em suas
fronteira com o Afeganistão - perto dela “reeduca” muçulmanos uigures em
Xinjiang. O Talibã tem apoio da Arábia Saudita, aliada dos EUA.
É prematuro dizer qual rumo seguirá o
Talibã. As primeiras indicações, dadas em entrevistas pelos porta-vozes do
grupo, apontam em direção de alguma descompressão em relação aos costumes, as
mulheres e não perseguição aos afegãos que apoiaram o regime derrubado de
Ashraf Ghani. Por outro lado, será difícil romper com os velhos amigos, como Al
Qaeda e EI.
Biden, que como vice de Obama foi contra o
envio de tropas ao país, poderia ter planejado e escalonado a retirada. Ao
fazê-la de forma abrupta, provocando o caos, trouxe para si parte do ônus do
fracasso de uma desventura que nem ele nem seu partido iniciaram. Seu
diagnóstico, porém, foi correto: os EUA jamais venceriam uma guerra no
Afeganistão.
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