O Globo
O presidente eleito do Chile, Gabriel
Boric, ouvia música durante a campanha, nem que fosse meia hora, de madrugada,
porque, como disse, “precisa de música”. Gostaria de morar no centro da cidade,
perto do La Moneda, mas não no Palácio. Não tem carro e gosta de andar de
metrô. Durante a campanha, que ele definiu como “de uma intensidade que não se
alcança quando se começa”, Boric conseguiu um tempo, no disputado segundo
turno, para ver dois episódios da série “Get Back", sobre os Beatles. Sua
namorada, Irina, não gosta do papel de “primeira dama”, e prefere continuar
liderando a Frente Feminista. Esses fatos foram narrados em entrevista a
jornalistas da TV Nacional, 72 horas antes da eleição que o consagrou vencedor.
No domingo, ele pulou uma mureta de proteção para chegar mais rápido ao palco
onde falaria para a multidão, que o aguardava gritando “Justiça, verdade, não à
impunidade”.
Os sinais da juventude são uma lufada de ar fresco na política chilena, que precisava muito de renovação. Mas a grande questão que se coloca agora é como o jovem roqueiro, que começou como líder estudantil, poderá entregar os sonhos que estimulou. Ele sabe dessa dificuldade tanto que disse no discurso de vitória: “os tempos não serão fáceis diante das consequências sociais, econômicas e sanitárias da pior pandemia da história”.
Com vibrante retórica, Boric passou por
todos os pontos da campanha. Falou da defesa das mulheres, do feminismo, da
diversidade de orientação sexual, dos povos originários, do meio ambiente, da
liberdade de imprensa, da justiça social e da democracia. “Desestabilizar as
instituições democráticas é o caminho mais curto para o abuso”.
Ao derrotar o candidato José Antonio Kast,
que defendeu a ditadura de Pinochet, e que mimetizava em muitos pontos os
discursos de Bolsonaro e Donald Trump, Gabriel Boric já fez muito.
Colocou o Chile de volta às pautas da atualidade. Ao falar em idioma indígena,
no início do discurso, e se dirigir a “todos os povos que habitam essa terra
que chamamos Chile” ele estava reforçando a visão cultural múltipla que é a que
se deve ter na era da diversidade.
O mercado chileno ontem reagiu mal. A bolsa
abriu em queda e chegou a 6,18%, o dólar teve a mais forte alta desde a crise
de 2008. O curioso é que não existe banco hoje no mundo que não brade que
aderiu aos princípios ESG. Eles foram todos defendidos por Boric. Quando fala
de inclusão, ele está atendendo ao “S” de social, ao focar a questão climática
ele está atendendo ao “E” de meio ambiente (environment), e quando afirma que
negociar com outros grupos políticos é “uma obrigação e uma oportunidade”,
Boric está atendendo ao “G” de governance.
Sobre contas públicas, ele disse que vai
“ampliar os direitos sociais com responsabilidade fiscal, cuidando da
macroeconomia para que não se tenha que retroceder”. Na verdade, a economia
chilena já está em dificuldades, pelo aumento de gastos, pela alta da inflação
— ainda que o índice seja mais baixo que o brasileiro — e pela previsão de
reduzido crescimento em 2022. Corrigir isso será difícil. E seria também se o
candidato vencedor tivesse sido o da direita. José Antonio Kast disse na
campanha, entre outras mentiras, que a ditadura de Pinochet realizava “eleições
democráticas”. O mercado acha mais confiável um defensor de ditadura do que um
reformista de esquerda.
Será difícil governar o Chile, porque Boric
não terá maioria, porque o país está num processo constituinte, porque ele tem
entre suas prioridades uma reforma tributária que elevará os impostos sobre os
mais ricos. O Chile tem uma carga tributária baixa. Boric quer também uma
previdência pública, e isso significa mudar o controverso sistema privatizado
de previdência, implantado no governo Pinochet, que já provocou muitas
distorções.
O fato mais notável nos últimos dois dias é a maneira civilizada que se deu o processo político chileno. Kast reconheceu a derrota, e foi visitar o comitê de campanha do vencedor. Boric agradeceu a todos os contendores, inclusive Kast. O presidente Sebastian Piñera já se reuniu ontem com o presidente eleito e disse que o consultará sobre algumas decisões a serem tomadas até 11 de março, quando ele assumirá como o mais jovem presidente chileno.
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