segunda-feira, 20 de junho de 2022

Armando Castelar Pinheiro*: Inadimplência em alta?

Valor Econômico

Saldo de crédito para empresas e famílias no país cresceu 6,3% ao ano, apesar do PIB ter avançado só 1% ao ano

Estes dias li um interessante relatório do Deutsche Bank (DB) sobre para onde devem ir as taxas de inadimplência de títulos de dívida corporativa nos EUA e na Europa nos próximos anos (“The end of the ultra-low default world...?”, por Jim Reid e Karthik Nagalingam). Na visão do DB, essas vão subir bastante a partir de 2023, ainda que sem chegar aos níveis observados em crises como a de 2008-09, caindo depois para um patamar acima do observado nos dois últimos decênios. Nos EUA, a taxa de inadimplência para papéis sem grau de investimento subiria de perto de 1% atualmente para 5% no final de 2023 e 10% em 2024. A médio prazo retornaria para um intervalo de 3% a 5%.

O argumento por trás dessa previsão é essencialmente macroeconômico, visto que o diagnóstico sobre as empresas é relativamente positivo. Assim, os autores argumentam que, apesar de essas estarem gerando fluxos razoáveis de caixa, o que permitiria honrar o pagamento dos juros, a deterioração da atividade, o aperto das condições financeiras e a alta de custos, com salários pressionados pelo mercado de trabalho muito aquecido, vão acabar elevando a inadimplência.

O DB tem uma visão mais pessimista que a média sobre as perspectivas da economia americana no próximo par de anos. A aposta de Reid é que o Fed terá de elevar a taxa dos Fed funds ano que vem até 5%, contra uma taxa precificada no mercado futuro de 3,724% para julho de 2023. Obviamente, isso vai encarecer a rolagem das dívidas, que também ficará mais complicada se, como prevê o DB, os EUA entrarem em recessão na segunda metade do próximo ano. Registre-se que há analistas prevendo recessão nos EUA já no fim de 2022. Tudo isso elevaria a aversão ao risco e tornaria especialmente difícil a rolagem de títulos de maior risco.

Mais interessantes, porém, são os argumentos de porque as taxas de juros e de inadimplência dos títulos de dívida corporativa não devem retornar aos baixos níveis dos últimos vinte anos.

O primeiro é que as taxas reais de juros de política monetária e as pagas pelos títulos públicos não devem voltar aos patamares muito baixos e mesmo negativos dos últimos 20 anos. De fato, entre 2002 e 2021, a taxa do Fed funds, descontada a inflação, foi negativa todos os anos exceto pelo triênio 2006-08, ficando na média em -1% ao ano. Nos 20 anos anteriores, em contraste, ela foi em média de +3,2%. Dificilmente o Fed, o Banco Central Europeu e outros BCs conseguirão trazer uma inflação tão alta e disseminada como se tem hoje para perto da meta sem manter taxas reais de juros positivas durante um bom tempo.

O segundo é que os bancos centrais devem parar de injetar liquidez e acumular ativos. Do final de 2004 até o presente, os ativos totais dos bancos centrais dos EUA, da Área do Euro e do Japão saltaram do equivalente a US$ 2,9 trilhões para US$ 23 trilhões. Esses US$ 20 trilhões a mais foram usados principalmente para comprar títulos públicos, deixando pouca alternativa para os investidores que não os títulos corporativos, quando os próprios BCs não faziam isso.

O Fed já encerrou seu programa de compra de papéis, pelo menos por ora, e deu início a um processo relativamente ambicioso de venda de ativos. O BCE já anunciou que encerrará as compras de títulos. Resta ver por quanto tempo o Banco do Japão conseguirá manter sua versão desse programa.

Também importante nesse processo foi o acúmulo de reservas internacionais pelos países em desenvolvimento, outro fator que alimentou a demanda por títulos públicos americanos e europeus. As sanções impostas à Rússia e o acirramento das tensões entre os EUA e a China devem ajudar a desacelerar ou mesmo colocar um freio a esse processo.

Assim, a tendência é que nos próximos anos as empresas enfrentem maior competição dos governos no financiamento de suas dívidas.

O terceiro argumento é que as recessões devem se tornar mais frequentes, colocando um fim ao padrão de ciclos de expansão atipicamente longos. Isso vai estressar mais as finanças corporativas e elevar o risco e os spreads de seus títulos de dívida.

Esse cenário não difere muito do que se espera para o Brasil. Até mais do que nos EUA, os juros devem estar em patamar elevado em 2023: o BC promete pelo menos mais uma alta da Selic e depois manter os juros altos por um bom tempo. E, com os juros mais altos nos EUA, e com a maior aversão ao risco, o financiamento externo das empresas brasileiras também ficará mais caro. Nosso risco país, de fato, já subiu com força nos últimos 12 meses e deve subir mais em 2023.

Tudo isso complicará a vida de quem carrega dívidas, cujo estoque tem aumentado bastante. Na média dos últimos quatro anos, o saldo de crédito concedido a empresas e famílias no Brasil cresceu em média 6,3% ao ano, já descontada a inflação. Isso apesar de o PIB ter crescido apenas 1% ao ano. Ajudou o fato de, nesse período, a taxa Selic real ter sido em média de -1,1% ao ano, uma realidade que está mudando dramaticamente. Também por aqui, portanto, a inadimplência pode subir nos próximos anos.

*Armando Castelar Pinheiro é professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador-associado do FGV Ibre

 

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