O Estado de S. Paulo
Afirma-se a visão de que o Brasil é incapaz
de controlar o seu território, pondo em perigo, por questões ambientais, a
própria humanidade.
O assassinato de um indigenista e de um
jornalista no Vale do Javari, nas condições mais indignas e cruéis, mostra uma
faceta cada vez mais visível do Estado brasileiro: sua ausência em várias
fatias do território nacional. São as favelas, cujos símbolos são as cariocas,
dominadas pelo narcotráfico e pelas milícias; são as zonas rurais, em particular
indígenas e ambientais de conservação, nas quais reinam a desordem pública, a
violência e o desprezo pela condição humana. Um Estado que perde controle de
seu território termina por abdicar de sua soberania.
Os assassinatos expuseram uma terra sem lei, um faroeste amazônico, no qual esparsas forças de policiamento são incapazes de agir. Se o Estado deixa de cumprir com suas funções básicas, alguma outra “entidade” vem a ocupar o seu lugar. Não existe espaço vazio, na medida em que as pessoas lá continuam a viver e a sobreviver, assim como os mais diferentes interesses particulares, lícitos e ilícitos. Em particular, onde o Estado se ausenta, o crime e a violência preenchem o seu espaço.
Note-se que, no caso em questão, se trata
de uma terra indígena já demarcada, onde, em princípio, não deveriam existir
disputas por território. Legalmente, o problema estaria resolvido, mas ele vai
muito além, pois põe em pauta a existência ou não do Estado nessas regiões. De
nada adiantam decisões judiciais, se não há forças policiais e, se for o caso,
militares para implementá-las. Num país “mal” habituado pelo ativismo jurídico,
onde juízes, desembargadores e ministros emitem opiniões, frequentemente à
revelia da Constituição, embora amparados em “interpretações”, a dura realidade
se impõe.
O território indígena em pauta, de extensão
comparável a um Estado médio brasileiro, não é um santuário imune a invasores.
O sonho e a decisão judicial nada podem quando outros grupos sociais se impõem
pela força. Não se trata de uma disputa entre indígenas e agricultores que se
combateriam pelas mesmas terras, mas de um enfrentamento entres diferentes
atores que agem à margem da lei. E o fazem porque não há Estado. No mapa, o
desenho geográfico é harmônico, na realidade essas demarcações se apagam.
Na região, dentro e fora dos territórios
indígenas, grupos de narcotraficantes vêm agindo impunemente. São grandes
cartéis internacionais e várias organizações criminosas nacionais, que viram na
ausência de Estado uma oportunidade de ouro para o desenvolvimento de seus
negócios. Uma vez que estamos diante de uma zona fronteiriça, tendo limites com
Peru e Colômbia, a internacionalização do tráfico de drogas é, em muito,
favorecida. Observe-se que se trata de uma questão tanto de soberania interna quanto
externa. Acrescentem-se, ademais, o garimpo, a pesca e a caça ilegais, que
terminam proliferando pela ausência de políticas sociais para a região. Uma
pesca de manejo, por exemplo, poderia ser a solução, se o Estado estivesse ali
presente.
O motivo do crime foi fútil, pois, segundo
as informações, os assassinos teriam agido por terem sido descobertos no
exercício da pesca ilegal. Numa terra sem Estado, a violência toma o lugar da
solução pacífica de conflitos. As fotos dos criminosos mostram que são maltrapilhos,
pertencentes a comunidades ribeirinhas, elas mesmas produtos da miscigenação
racial, e vivendo como podem no maior desamparo. Um dos criminosos, denominado
“Pelado”, deve estar igualmente pelado de tudo, inclusive de condições dignas
de vida. O outro, “dos Santos”, apesar do apelido, não deve veicular nenhuma
santidade, estranho aos mais básicos mandamentos religiosos e humanos.
O crime ganhou grande repercussão
internacional, causando enorme dano à reputação do País. Externamente, aparece
como um Estado pária, avesso à conservação ambiental e à proteção de seus povos
nativos e, também, de suas populações ribeirinhas, que vivem nas margens dos
rios e nos limites dos territórios indígenas. Ou seja, afirma-se a visão de que
o Brasil é incapaz de controlar o seu território, pondo em perigo, por questões
ambientais, a própria humanidade. Por mais equivocada que possa ser essa visão,
ela se torna a percepção mesma da opinião pública internacional, vindo a
influenciar diretamente os líderes políticos dos países mais importantes. Vale
a percepção que eles adquirem, e a nossa só tem piorado nos últimos anos,
graças às diatribes e às irresponsabilidades do atual presidente. Ao agir dessa
forma, ele joga contra a soberania nacional que diz defender.
Urge que o Estado brasileiro se reaproprie
de seu território, faça valer suas leis, seja na imensidão amazônica, seja nas
favelas. Que utilize forças policiais e militares, coordenadamente, sem
rivalidades corporativas e sem justificativas “financeiras”. Se não o fizer,
outros serão tentados a fazê-lo, podendo ser o narcotráfico ou forças de outros
países, impondo, inclusive, sanções financeiras ou de exportação de nossos
produtos. A questão, aqui, se chama soberania nacional.
*Professor de filosofia na UFRGS.
Um comentário:
O Brasil está entregue às baratas.Coitada das baratas,quem dera!
Postar um comentário