Supremo acertou ao acabar com o orçamento secreto
O Globo
Cabe ao Congresso estabelecer mecanismos
mais transparentes para alocar os recursos públicos
Fez bem o Supremo Tribunal Federal (STF) ao
proibir ontem o mecanismo orçamentário que permitiu aos
presidentes da Câmara e do Senado destinar nos últimos três anos perto de R$ 55
bilhões em dinheiro do contribuinte a projetos escolhidos pelos parlamentares
sem transparência nem critério técnico. Ao limitar drasticamente o uso das
emendas do relator-geral, identificadas nas leis orçamentárias pela sigla RP9 e
conhecidas pelo apelido “orçamento secreto”, o Supremo libera os R$ 19,4
bilhões previstos para elas no Orçamento de 2023 e lança sobre o Legislativo o
dever de estabelecer e seguir regras mais republicanas e transparentes no uso
do dinheiro público.
Com o fim das RP9s, passam a valer na distribuição das verbas a parlamentares apenas os critérios já vigentes para as emendas individuais e de bancada: distribuição igualitária e impositiva (o Executivo é obrigado a executar os pagamentos). Deixam de valer as regras do Projeto aprovado às pressas no Parlamento na sexta-feira passada, na tentativa de atrair votos recalcitrantes do Supremo para manter as emendas do relator.
É verdade que tal Projeto representava um
avanço sobre a situação anterior ao impor que todas as emendas fossem
associadas ao nome do parlamentar que patrocina os projetos. Mesmo assim, ainda
deixava a alocação de 20% das verbas nas mãos dos presidentes da Câmara, do
Senado e do relator-geral do Orçamento. Isso significaria, em 2023, cerca de R$
1,45 bilhão distribuído segundo o alvitre exclusivo do presidente de cada uma
das Casas Legislativas, valor superior ao orçamento de 14 ministérios, só
superado pelas verbas destinadas à Defesa, Infraestrutura, Educação e Saúde.
As mudanças não convenceram o
ministro Ricardo
Lewandowski, que suspendera a votação na semana passada para que se
aguardassem as providências que o Congresso tomaria a respeito. Lewandowski
acabou acompanhando o voto da relatora, ministra Rosa Weber, que restringe o
uso das RP9s apenas a ajustes e correções técnicas pontuais, vedando a criação
de novas despesas. Ao justificar a inconstitucionalidade do mecanismo, ela
argumentou que as RP9s concentram poder na mão de um grupo restrito de
parlamentares, abrindo espaço a barganhas políticas inaceitáveis com o dinheiro
público.
O fim do orçamento secreto não acaba,
porém, com o problema de fundo que propiciou sua criação: a dificuldade de
encontrar um método eficaz para o Executivo negociar apoio a seus projetos no
Congresso num regime de alta fragmentação partidária, em que grande parte das
legendas está mais interessada em verbas e cargos no governo do que em
ideologia ou discussões programáticas.
A redução gradual dessa pulverização, como
resultado da minirreforma política de 2017, contribuirá para aprimorar a
relação entre os Poderes. Mesmo assim, ainda cabe aos legisladores estabelecer
mecanismos por meio dos quais o dinheiro dos impostos possa ser destinado de
acordo com necessidades tecnicamente justificadas, de modo transparente,
preservando o papel do Legislativo ao confeccionar o Orçamento, mas também o do
Executivo ao executá-lo.
Suspensão de jornalistas revela limites da
gestão Musk no Twitter
O Globo
Bilionário mostrou ter tanto apreço pela
liberdade de expressão quanto aqueles a quem acusara de censura
Elon Musk assumiu
o Twitter defendendo
a liberdade de expressão de modo absoluto. Eliminou equipes que monitoravam
desinformação até sobre vacinas, desbloqueou contas banidas — como a do
ex-presidente Donald Trump — e acusou a gestão anterior de perseguir a direita
e os republicanos. Para comprovar, repassou aos jornalistas Matt Taibbi e Bari
Weiss documentos do Twitter registrando discussões internas travadas em 2020
para restringir a difusão de conteúdos repercutindo reportagens sobre negócios
suspeitos de Hunter Biden, filho do então candidato Joe Biden. As informações,
extraídas de um laptop que Hunter mandara ao conserto, levaram a pedido de
investigação. Musk, que se diz partidário dos republicanos, afirma que havia na
empresa censura e influência perniciosa de democratas.
Pois o Twittergate foi eclipsado quando o
próprio Musk mandou suspender contas de jornalistas de veículos como New York
Times, Washington Post e CNN, acusados de veicular informações que poderiam
levar a seu “assassinato”. Uma das contas suspensas usava dados de rotas aéreas
para acompanhar seu jato em tempo real. Musk alegou que, ao compartilharem o
trajeto do avião e outros dados pessoais, os jornalistas punham em risco a vida
dele e de sua família (disse que um carro com seu filho fora perseguido). Determinou
ainda que o Twitter bloqueie toda “informação ao vivo” de localização. Diante
da reação contrária até entre aqueles que costumam defendê-lo — caso da
jornalista Bari Weiss —, voltou atrás no fim de semana e mandou restaurar as
contas dos jornalistas suspensos.
É louvável a preocupação do bilionário com
a segurança, mas a localização de voos é informação pública, e a divulgação
dificilmente representa ameaça. A resposta foi exagerada e desnecessária. O
objetivo implícito era intimidar quem manifesta opiniões críticas ou incômodas
a Musk, que revelou ter um apreço seletivo pela liberdade de expressão, como
criticara na gestão anterior. Felizmente a pressão o fez recuar.
Embora a proteção à liberdade de expressão
deva ser abrangente, existem situações em que se justifica suspender contas ou
reduzir a circulação de informações nocivas. O episódio todo mostra mais uma
vez que não dá para decidir o que pode circular nas redes sociais com base em
idiossincrasias das plataformas digitais ou de seus donos. Nos Estados Unidos e
no Brasil, deveria haver arcabouço jurídico mais eficaz.
As plataformas deveriam ser obrigadas a ter uma política pública, nos limites que a lei definir para a liberdade de informação e de expressão. Deveria também haver transparência na moderação, com fundamentação explícita das decisões e possibilidade de recurso. O Projeto de Lei das Fake News, parado na Câmara, traz uma resposta adequada ao desafio. Sem legislação estabelecendo as obrigações das redes sociais, sempre haverá espaço para arbítrio, seja das empresas ávidas por agradar a seus donos, seja do Judiciário, cioso por conter a desinformação, mas inclinado, na ausência de regras claras e eficazes, a também incorrer em exageros.
STF na barafunda
Folha de S. Paulo
Liminar prolonga casuísmo no Auxílio
Brasil; plenário derruba emendas de relator
Jair Bolsonaro (PL) e o Congresso
promoveram, por razões eleitoreiras, enorme desorganização no Orçamento
federal. A equipe de transição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pretende, na
prática, agravar o desequilíbrio das contas públicas com a ampliação de
despesas sem lastro. Agora, também o Judiciário se meteu na barafunda.
Em decisão monocrática proferida no domingo
(18), o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, estabeleceu que
desembolsos necessários para manter o Auxílio Brasil (ou Bolsa Família) de R$
600 mensais podem ser
excluídos no próximo ano do teto de gastos inscrito na Constituição.
A canetada de Gilmar pode até indicar uma
saída imediata para viabilizar um programa fundamental. Deveria ser
desnecessário, porém, apontar os riscos de um magistrado interferir de modo
discricionário em questões de política pública debatidas no Parlamento.
Cumpre recordar que a implantação do
Auxílio Brasil, versão ampliada do Bolsa Família, foi desde o início objeto de
sucessivas gambiarras legislativas e fiscais.
No final do ano passado, uma emenda
constitucional adiou pagamentos de dívidas impostas pela Justiça à União —um
calote, em português mais claro— e elevou o limite de gastos para que o
programa, aposta eleitoral de Bolsonaro, coubesse no Orçamento.
Abandonou-se o que restava de compostura em
julho deste ano, quando o governo contou com a quase totalidade do Congresso
para decretar um fictício "estado de emergência" que autorizou a
elevação temporária do auxílio de R$ 400 para R$ 600, fora do teto.
A decisão dominical, solitária e provisória
de Gilmar prolonga o improviso e o casuísmo. O impacto ainda parece difícil de
estimar, mas especula-se que a medida tenha facilitado a vida de Lula, ora
envolvido em difíceis negociações com o centrão da Câmara pela famigerada PEC
da Gastança.
Nesse mesmo contexto, ainda se avaliam as
consequências políticas do julgamento
do Supremo que considerou inconstitucionais as emendas de relator —este,
ao menos, mais claramente assentado em aspectos jurídicos, embora também
adentrando no terreno perigoso das relações entre forças eleitas de Executivo e
Legislativo.
No que diz respeito à política pública, o
Auxílio Brasil precisa estar inserido em um Orçamento sustentável, compatível
com a capacidade de arrecadação e de crédito do governo. Deve, também, eliminar
as distorções já identificadas que hoje aumentam seus custos.
Do contrário, os ardis legais, discursos
messiânicos, conchavos e regabofes de Brasília só reproduzirão a surrada fórmula
de distribuir dinheiro obtido com endividamento público, que será cobrado
depois, com juros, dos mais pobres.
Ordem nas PMs
Folha de S. Paulo
Câmara tira polêmicas de lei que rege
corporações, mas ignora controle de abusos
O projeto da Lei Orgânica
da Polícia Militar, aprovado na Câmara dos Deputados na última quarta-feira (14),
é uma demanda justificada e antiga das PMs por mais segurança jurídica, e a
discussão sobre o tema é bem-vinda.
As regras das corporações ainda são regidas
por um decreto-lei de 1969, e o projeto que enfim avançou foi proposto em um
longínquo 2001 pelo governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Mais recentemente, contudo, a tramitação do
texto foi usada por seguidores de Jair Bolsonaro (PL) para angariar apoio a
propostas temerárias —afinal, as forças de segurança sempre estiveram entre as
bases políticas do presidente.
Na principal delas, sugeriu-se que a
escolha do comandante estadual da PM se desse a partir de uma lista tríplice
feita por oficiais com mandato fixo, o que na prática esvaziaria parte do poder
dos governadores sobre a instituição.
Os deputados acertaram ao barrar esse
ponto, mas o que sobrou ao final foi um diploma com poucas novidades e vários
penduricalhos corporativistas. Perdeu-se a oportunidade de aprimorar as regras
do trabalho policial e propor modelos de reestruturação das polícias —falha que
ainda pode ser corrigida no Senado Federal.
Ademais, caberá ao Executivo federal
definir por decreto termos da lei como segurança pública e poder de polícia. Um
retrocesso, já que tal especificação merece debate legislativo extenso.
Um ponto preocupante e contraditório foi a
autorização para policiais irem armados a manifestações políticas fora do
expediente. Forças policiais na ativa deveriam se abster de envolvimento em
movimentos do tipo, como o próprio projeto aprovado estabelece.
Já a expansão da Justiça Militar nos
estados e a manutenção de sua competência para o julgamento de crimes militares
praticados contra civis, felizmente, não prosperou. Se aprovada, o Brasil
reforçaria que caminha na contramão de países da região que ou extinguiram ou
reformaram a Justiça Militar.
No país onde 6.145
pessoas foram mortas em 2021 por intervenções policiais, número em
queda pela primeira vez desde 2013, é inadmissível que não tenha avançado o
debate sobre controle externo e protocolos para uso da força.
Espera-se que essa e outras questões sejam debatidas com profundidade, em ambiente mais sereno.
Gritante inconstitucionalidade
O Estado de S. Paulo.
Com a derrubada do orçamento secreto pelo
STF, é tempo de restaurar as relações institucionais e as funções de cada um
dos Poderes, embaralhadas no confuso governo Bolsonaro
Com a derrubada do orçamento secreto, é
tempo de restaurar as relações institucionais.
Por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal
(STF) decidiu declarar a inconstitucionalidade do orçamento secreto. Revelado
pelo Estadão em maio de 2021 e veementemente negado pelo governo federal à
época, o esquema garantiu estabilidade política a Jair Bolsonaro no Congresso.
Parlamentares blindaram o presidente contra pedidos de impeachment e, em troca,
asseguraram recursos para suas bases por meio das bilionárias emendas de
relator.
A decisão do STF ganha enorme relevância no
momento em que o governo eleito precisa de autorização do Legislativo para
aprovar ajustes no Orçamento. A proposta enviada pelo atual Executivo ao
Congresso não reservou verba para manter em R$ 600 o piso do Auxílio Brasil,
que será renomeado como Bolsa Família, e cortou em 60% a verba de programas
como o Farmácia Popular. Reservou, no entanto, R$ 19,4 bilhões para o pagamento
das emendas de relator – distribuídas por critérios obscuros pelos presidentes
da Câmara, Arthur Lira (PPAL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sem
qualquer vinculação com políticas públicas e sem que a sociedade pudesse sequer
identificar o parlamentar que fez a indicação.
Na liminar concedida no fim do ano passado,
quando suspendeu a execução das emendas de relator, a ministra Rosa Weber
declarou que elas eram um instrumento incompatível com os princípios da
publicidade e da impessoalidade dos atos da administração pública e com o
regime de transparência no uso dos recursos financeiros do Estado. Ao proclamar
o voto definitivo sobre o caso, na semana passada, a presidente do STF reiterou
seu posicionamento. Disse que o mecanismo configurava um “verdadeiro regime de
exceção ao orçamento da União, em burla à transparência e à distribuição
isonômica de recursos públicos”, e funcionava de maneira “incompatível com a
ordem constitucional, democrática e republicana”.
A contundência da ministra não deixou
espaço para dúvidas sobre a inconstitucionalidade do orçamento secreto. Chama a
atenção, portanto, que o plenário do STF tenha derrubado o dispositivo por
apenas um voto, o que mostra o quanto a luta política contaminou o Supremo.
Acompanharam Rosa Weber os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz
Fux, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. Já André Mendonça, Nunes Marques,
Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes divergiram da ministra,
cobrando transparência e publicidade nas emendas como contrapartida para sua
manutenção.
Três dias antes, na tentativa de
influenciar os votos remanescentes dos ministros, o Congresso aprovou um
conjunto de normas para distribuição das emendas. A nova regra estabelecia uma
divisão conforme o tamanho das bancadas dos partidos, com divulgação dos nomes
dos parlamentares que fizessem as indicações e alocação de metade da verba em
saúde, educação e assistência social. Os termos da resolução são o maior reconhecimento,
por parte da Câmara e do Senado, de que o orçamento secreto vinha, de fato,
funcionando à margem da legalidade.
Diante do gigantismo que as emendas
assumiram, as consequências do julgamento são imprevisíveis, mas devem alterar
a dinâmica das relações entre os Poderes que vigorou no governo Bolsonaro.
Lideranças veem influência do presidente eleito Lula da Silva no voto do
ministro Ricardo Lewandowski, com quem contavam para manter o mecanismo vivo, e
prometem revidar.
Lula ainda precisa dos deputados para
aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, mas uma liminar
concedida pelo ministro Gilmar Mendes abriu caminho para financiar o piso do
Bolsa Família por meio de crédito extraordinário. É menos do que ele queria,
mas certamente soluciona sua demanda mais urgente e abre espaço para
negociações posteriores sob novas bases.
Sejam quais forem os próximos capítulos
dessa novela, é tempo de restaurar as relações institucionais e as funções de
cada um dos Poderes após o confuso governo de Bolsonaro. A elaboração do
Orçamento é função do Executivo. Ao Legislativo, cabe aprovar a peça
orçamentária e propor correções, além de fiscalizar o uso dos recursos e
avaliar sua execução e aplicação. Para ambos, vale o princípio da transparência,
como determina a Constituição.
Discurso e realidade da Lava Jato
O Estado de S. Paulo.
Além de escancarar a precariedade dos
métodos da Lava Jato, a revogação da prisão de Sérgio Cabral lembra que, na
República, o caminho é a lei, e não extravagâncias messiânicas
Durante muito tempo, a Lava Jato foi
apresentada como uma robusta e implacável operação policial contra grandes
esquemas de corrupção operados por políticos e empresários. O discurso tinha
ares encantadores. Depois de várias operações anteriores frustradas, finalmente
Polícia Federal, Ministério Público Federal e Poder Judiciário tinham aprendido
a lição e estavam agora fazendo um trabalho investigativo da forma mais séria e
rigorosa possível. Não havia como dar errado.
Nos últimos anos, a divergência desse
discurso com a realidade foi exposta diversas vezes, a começar pela
interpretação amplíssima que a 13.ª Vara Federal de Curitiba deu a respeito de
sua própria competência, o que acarretou várias nulidades. Mais recentemente, a
utilização da Lava Jato para fins político-partidários pelo ex-procurador
Deltan Dallagnol e pelo exjuiz Sérgio Moro – que se valeu de sua atuação no
caso até para eleger a mulher como deputada federal por São Paulo – evidenciou
uma nuvem pouco republicana sobre a famosa operação. “A contradição é notória”,
dissemos neste espaço sobre o uso eleitoreiro da Lava Jato (E o lavajatismo
chegou lá, 10/10/2022). “Uma operação estatal cujo objetivo era apurar
diferentes modalidades de desvio de recursos públicos para fins particulares –
pessoais ou partidários – tornou-se ela mesma instrumento para promover
objetivos particulares: a eleição de ex-funcionários públicos e seus parentes.”
Agora, mais uma camada da realidade da Lava
Jato foi exposta. No dia 16 de dezembro, na conclusão do julgamento pela 2.ª
Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de um habeas corpus impetrado em favor
de Sérgio Cabral, o País se deu conta de que o ex-governador do Rio de Janeiro
estava preso simplesmente em razão de uma ordem de prisão preventiva decretada
pela 13.ª Vara Federal de Curitiba em novembro de 2016 por fatos ocorridos em
2008 e 2009. Ora, uma prisão nesses moldes é ilegal.
A prisão preventiva tem finalidades e
requisitos precisos. Como estabeleceu o Congresso na legislação processual,
essa medida restritiva não pode ser utilizada como “antecipação de cumprimento
de pena”, tampouco é “decorrência imediata de investigação criminal ou da
apresentação ou recebimento de denúncia”. Ao decretar uma prisão preventiva, a
decisão judicial “deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e
existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a
aplicação da medida adotada”. Fatos ocorridos há mais de 10 anos não servem
para justificar uma prisão preventiva. Por isso, ao revogar a prisão de Sérgio
Cabral, a 2.ª Turma do STF agiu corretamente. Fechar os olhos à ilegalidade de
uma prisão preventiva que vinha se prolongando indefinidamente no tempo seria
descumprir, de forma contundente, a Constituição.
No julgamento do habeas corpus, os
ministros do Supremo salientaram que não estavam avaliando “o mérito das
denúncias” contra Sérgio Cabral nem era um “juízo de valor sobre a gravidade
dos fatos supostamente praticados pelo acusado”. O tema era outro. Tratava-se
tão somente de verificar a legalidade de uma prisão preventiva que durava mais
de seis anos. A Lava Jato não passou no teste.
A revogação da prisão do ex-governador do
Rio de Janeiro é muito simbólica. Até mesmo aquele que era apontado como o
único político atualmente preso pela Lava Jato estava na prisão em função de
uma ordem inequivocamente ilegal. Ou seja, a alegada robustez da operação era,
na realidade, uma tremenda precariedade, rigorosamente incapaz de produzir a
consequência tão prometida à população: a devida responsabilização dos culpados
pelos escândalos revelados.
A cada novo capítulo da história da Lava
Jato, a lição republicana tornase mais cristalina. É uma grande enganação achar
que se defende a lei, que se combate a criminalidade ou que se reduz a
impunidade com órgãos públicos atuando fora da lei. Não serve rigorosamente
para nada. O caminho é a lei, e não as extravagâncias messiânicas de quem se
considera acima do Estado.
Os desafios da biodiversidade
O Estado de S. Paulo.
Conferência da ONU estabelece metas que
dependem do equilíbrio entre preservação e produtividade
A 15.ª conferência sobre biodiversidade da
ONU – irmã da conferência sobre o clima, também chamada COP – pactuou colocar
30% do planeta sob proteção até 2030. A meta é comparável à do Acordo de Paris
de limitar o aquecimento global a 1,5°C na era industrial. Hoje, 17% das terras
e 8% dos mares estão sob proteção.
Entre os desafios ambientais, a
biodiversidade vinha sendo negligenciada em comparação ao aquecimento global.
Mas ambos estão relacionados. O desmatamento que destrói ecossistemas prejudica
a absorção de carbono, acelerando as mudanças climáticas, que, por sua vez,
prejudicam a biodiversidade.
De ecossistemas sadios dependem o consumo
de água, peixes, carne, madeira, a polinização de plantas nativas ou
cultivadas, insumos para medicamentos, o controle de pestes, além de usos
recreacionais. Mas, nos últimos 50 anos, cerca de 60% desses “serviços
ecossistêmicos” foram degradados.
Além da meta de proteção, a COP estabeleceu
outros três compromissos: criar um fundo para países em desenvolvimento de US$
20 bilhões anuais até 2025; obrigar os negócios a reportar sua dependência da
biodiversidade; e reduzir US$ 500 milhões por ano de subsídios para
empreendimentos nocivos à natureza.
Ainda assim, o mundo está distante dos US$
384 bilhões anuais que a ONU considera necessários. Uma das soluções é a
criação de créditos de biodiversidade similares aos créditos de carbono. Um dos
desafios é estabelecer consensos sobre as métricas.
Tal como nas políticas climáticas, as
políticas de biodiversidade precisam equacionar relações de custo-benefício
otimizadas entre a responsabilidade ambiental e a social. Reduções mal
planejadas de combustíveis fósseis e terras agricultáveis podem encarecer
demais os preços da energia e dos alimentos, com efeitos sociais desastrosos.
Recursos naturais e humanos são limitados,
e é preciso inteligência para empregá-los. Nas políticas climáticas,
frequentemente se gasta muito subsidiando energias limpas custosas e
ineficazes, e muito pouco em pesquisa para tornar essas energias tão baratas e
eficazes quanto as fósseis.
Em relação à biodiversidade, militantes
ambientalistas frequentemente advogam a agricultura orgânica em detrimento de
fertilizantes, tratores, transgênicos e pesticidas. Mas graças a eles é
possível produzir hoje o que se produzia há 50 anos utilizando 70% menos de
terra. Se há efeitos colaterais danosos, é preciso reduzi-los. Mas o fato é que
é preciso mais, não menos tecnologia.
Por isso, tão importante quanto investir em reservas e reflorestamento é investir em pesquisa e desenvolvimento de sistemas agrícolas que permitam produzir mais com menos terras. Esse “crescimento com encolhimento” é o caminho. Além dos benefícios à natureza, inovações agrícolas podem baratear os alimentos, reduzindo a fome e a desnutrição. Para concretizar esse “ganha-ganha”, o maior desafio das próximas COPS será encontrar equações otimizadas entre o quanto se investe em preservação florestal e o quanto se investe em produtividade agrícola.
Estados fazem acordo com União enquanto
elevam ICMS
Valor Econômico
Uma solução coerente para essas disputas só
virá com reforma tributária, e há boas chances de que ela seja aprovada em 2023
Pelo arranjo federativo brasileiro, os
Estados parecem ter poucas responsabilidades em relação à União. Causa
frequente de atritos, invariavelmente mediados pelo Judiciário, que com
frequência os favorece, Estados e municípios podem descumprir acordos com a
União, mesmo que formalmente ratificados, têm ampla independência na gestão
econômica pública, mas é costumeiro que aleguem hipossuficiência quando a conta
de dívidas líquidas e certas lhes é cobrada. Isso ficou mais uma vez claro após
as estripulias eleitoreiras do presidente Jair Bolsonaro, que, em acordo com o
Legislativo, reduziu o ICMS de bens essenciais à alíquota modal (17%-18%),
cortando preços de combustíveis e diminuindo a inflação.
Os Estados reagiram à ação de baixar os
preços de combustíveis na marra e, em várias frentes, os resultados começam a
aparecer agora, com um acordo intermediado pelo Supremo Tribunal Federal
sacramentado na semana passada. A solução arbitrada é precária e a definitiva
só virá por meio de uma reforma tributária, para a qual os entes federativos
mostraram-se dispostos durante a tramitação de dois projetos sobre o assunto no
Legislativo. O ministro Paulo Guedes não se interessou por nenhum deles, mas
sim pela volta de um imposto sobre transações financeiras. Maduros para ir à
votação, os projetos aguardam uma decisão política do novo governo, que já
colocou a reforma tributária como uma de suas urgentes prioridades.
O imbróglio atual começou com Bolsonaro
demitindo dois presidentes da Petrobras até que a estatal segurasse os preços
dos combustíveis. A União os desonerou totalmente dos impostos federais. O
Legislativo deu sua contribuição, aceitando proposta do Executivo de reduzir o
ICMS dos produtos essenciais - gasolina, etanol, gás, telecomunicações e
transportes - à aliquota modal dos Estados, então entre 17% e 18%, quando esses
itens tinham alíquotas abusivas de até mais de 30% em algumas unidades da
Federação. A União prometeu compensar os Estados pelas perdas que
ultrapassassem 5% da arrecadação, sem definir como - e essa definição ainda
está em aberto, pelo acordo selado no STF.
Os Estados, por meio de transferências
bilionárias recebidas em função da pandemia, em 2021, e do crescimento da
inflação em 2022, tiveram ótima arrecadação, e vários deles, em ano eleitoral,
reajustaram salários dos servidores e ampliaram investimentos. Diante da
redução do ICMS, porém, não deixaram de recorrer ao STF, que muitas vezes os
socorreu com decisões casuísticas. Um dos casos mais flagrantes foi o de
impedir que as contragarantias dadas ao Tesouro para empréstimos recebidos pelo
Estado do Rio de Janeiro fossem executadas mesmo diante da inadimplência de
pagamentos de compromissos sob aval, cujos credores foram e estão sendo
ressarcidos pela União.
A saída arbitrada pelo STF é paradoxal. O
próprio tribunal decidiu, em ações envolvendo Piauí, Pernambuco, Acre, Santa
Catarina e Distrito Federal, que as alíquotas incidentes sobre energia elétrica
e serviços de telecomunicação, considerados essenciais, não poderiam ser
maiores do que as que recaem sobre as operações em geral. O STF ajuizou que a
decisão passaria a ter efeitos a partir de 2024.
Agora, o STF agiu de forma diferente. O
ministro Gilmar Mendes fechou acordo que reconhece que a União terá de compensar
os Estados por perdas de uma decisão que já foi tomada pelo tribunal e passará
a vigorar no ano seguinte, embora como isso será feito ainda esteja em aberto.
O Congresso estipulou que a compensação ocorreria a partir de perdas de 5% das
receitas totais.
Enquanto a negociação ocorria, porém, o STF
concedeu liminares a meia dúzia de Estados para que deixassem de pagar dívidas
com a União, diante exatamente da perda de arrecadação que a redução do ICMS
acarretaria. Os Estados, por sua parte, não se fizeram de rogados, utilizando
expedientes que o governo Bolsonaro utilizou. Assim como a União furou o teto
sempre que precisou, pelo menos 9 governos estaduais decidiram que, se perdem
receitas com bens essenciais à aliquota modal de 17%, é preciso então aumentá-la.
A manobra foi aprovada pelas Assembleias Legislativas.
Estados e União concordaram que GLP, gás de
cozinha e diesel são bens essenciais. O caso da gasolina será estudado. Uma
solução coerente para essas disputas, no entanto, só virá com reforma tributária
que institua um Imposto sobre Valor Agregado cobrado no destino. Há boas
chances de que ela seja aprovada em 2023.
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