Estudiosos contestam a fama 'maquiavélica' do florentino e o apresentam como um defensor do povo contra os 'Grandes'
Por Ruan de Sousa Gabriel / O Globo
Caso mudar o mundo esteja entre as suas
resoluções de ano, vale a pena estudar obra de um diplomata florentino que, num
livrinho chamado “O príncipe”, afirmou que um governante precisa estar disposto
a “atuar contra a palavra dada, contra a caridade, contra a humanidade, contra
a religião” se quiser conquistar e manter o poder: Nicolau Maquiavel
(1469-1527). De cara, essa sugestão causa algum estranhamento. Afinal, “O
príncipe” deu origem ao adjetivo “maquiavélico” (pérfido, ardiloso). No
entanto, em “Maquiavel, a democracia e o Brasil” (Estação Liberdade), o
professor do Departamento de Filosofia da USP e ex-ministro da Educação Renato Janine
Ribeiro escreve que o “Secretário Florentino” é “uma boa
inspiração para quem quer mudar o mundo”.
E ele não está sozinho em sua defesa do
maquiavelismo. Nos últimos meses, chegaram às livrarias títulos que destacam a
originalidade do pensamento de Maquiavel e contestam sua fama de mau. Não só o
autor de “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio” não é nenhum professor
de tiranos — ele nunca disse que os fins justificam os meios —, como também
oferece valiosas lições de liderança e até de democracia.
Ou melhor: de republicanismo. Estudiosos enxergam em Maquiavel um herdeiro de uma tradição que remonta à filosofia grega e foi renovada pelos chamados humanistas cívicos nos primórdios da Modernidade, período em que viveu o autor. O velho Nicolau, quem diria, era um defensor do “governo largo” ou “misto”, o qual, diferentemente da monarquia e da aristocracia, assegura os direitos dos “Grandes” e também do povo.
Autor de “Maquiavelianas: lições de
política republicana” (Editora 34), Sérgio Cardoso afirma que o florentino tem
um bocado a ensinar sobre democracia porque reconhece que a divisão social é
uma realidade inultrapassável. Em “O príncipe”, ele escreveu que “em toda
Cidade”, encontram-se dois “humores distintos”: o do povo, que deseja não ser
comandado e oprimido pelos “Grandes”, e o dos “Grandes”, que desejam comandar e
oprimir o povo (e acumular riquezas, é claro).
— Para Maquiavel, as instituições são
republicanas na medida em que são capazes de trazer o humor popular para a cena
política. Ele propõe uma democracia que não é meramente formal ao mostrar que é
a pressão popular, o conflito entre o povo e os Grandes, que dá força às leis.
Assim, ele nos ajuda a pensar o que hoje chamamos de movimentos sociais — diz
Cardoso, que também é professor do Departamento de Filosofia da USP.
Campanha difamatória
Por que, então, maquiavélico se tornou
sinônimo de diabólico? Na Inglaterra do século XVII, “Old Nick” virou até um
dos nomes do coisa-ruim! Ribeiro explica: Maquiavel irritou as elites ao revelar
a natureza pouco decente do poder. Não à toa, “O príncipe” foi proibido pela
Igreja Católica. Cardoso lembra que os protestantes franceses fizeram a caveira
do autor ainda no século XVI. Os chamados huguenotes se opunham à importação da
cultura florentina por Franciso I e à rainha Catarina de Médici, filha da
nobreza toscana e acusada de ser um “Maquiavel de saias” (ela é por vezes
responsabilizada pelo massacre dos protestantes na infame Noite de São
Bartolomeu, em 1572).
No século XX, porém, Maquiavel foi
reabilitado por pensadores como o italiano Antonio Gramsci, os franceses Maurice Merleau-Ponty e Claude
Lefort (que formou uma geração de maquiavelianos brasileiros) e os ingleses
John Popock e Quentin Skinner. Professor da Fundação Escola de Sociologia e
Política de São Paulo, Aldo Fornazieri explica que a crise
das ideologias (do liberalismo ao marxismo),
no final do século XX, e da própria democracia, nas últimas duas décadas, levou
estudiosos a revistar Maquiavel num esforço para reanimar a política
democrática. Além de não ocultar a divisão social, o florentino defendia que as
boas leis nasciam justamente dos conflitos entre os “Grandes” e o povo.
— Na democracia liberal, as elites dominam
o sistema político e servem-se eleitoralmente das massas, mas perdem a
legitimidade ao chegar ao poder por não terem contato real com o povo. O
conceito maquiaveliano de república implica participação e controle popular do
poder — diz o autor de “Liderança e poder” (Contracorrente), no qual escreve
que não há nada mais contrário a Maquiavel do que “governar contra o povo”. — A
leitura de “O príncipe” é fundamental para entender como se processam as
mudanças políticas. É uma teoria da liderança política que qualifica o que é um
líder virtuoso, algo de que o mundo carece atualmente.
Obra mais controversa de Maquiavel, “O
príncipe” ensina como governantes dotados de virtù são capazes de
driblar a fortuna (o acaso, as circunstâncias) e se agarrar ao poder — nem que
para isso atentem contra a virtude cristã. Mas virtù (que vem
de vir, varão), não é sinônimo de vício. Muito pelo contrário. Fornazieri
a descreve “a disposição para lutar pela liberdade, pela vida, por justiça,
pelo grupo, pela comunidade, pela pátria”. Já Ribeiro afirma que virtù é
“a ação humana planejada, consequente, com vistas a resultados”.
Em seu livro, o ex-ministro da Educação
questiona se os presidentes do Brasil desde a redemocratização governaram
com virtù ou ao sabor dos vendavais da fortuna. Só Lula passou
na prova: chegou ao poder e lá se manteve pela própria virtù. Fernando
Henrique Cardoso conquistou o poder graças à fortuna (o Plano
Real e a indicação do então presidente Itamar Franco avalizaram sua
candidatura), mas teve a virtù de “conseguir a aliança das classes
antes chamadas ‘conservadoras’, em torno de um projeto que incluía, ainda que
modestamente, programas sociais”. Já Bolsonaro se
elegeu favorecido pela fortuna (o humor popular rejeitava a política
tradicional), mas sua falta de virtù o privou de um segundo mandato.
O príncipe, no entanto, não deve usar
a virtù apenas para permanecer o poder, mas sobretudo para agir, para
implementar mudanças que contemplem o humor popular. É essa, diz Ribeiro, a
principal lição que a política brasileira pode tirar de Maquiavel.
— O Brasil precisa de muita mudança. Saímos
do mapa da fome, mas voltamos. Nossos valores democráticos se mostraram muito
frágeis — afirma Ribeiro, lembrando que, numa república, não só o príncipe, mas
também o povo deve demonstrar virtù. — Seja o governo de esquerda ou de
direita, a sociedade brasileira precisa assumir os valores da Constituição. Nos
últimos anos, terceirizamos nossa democracia, como se a resistência a um golpe
dependesse só dos EUA ou dos militares e não do povo. O que diferencia a
democracia e de outros regimes é a virtù do povo.
Serviço:
"Maquiavel, a democracia e o
Brasil"
Autor: Renato Janine Ribeiro. Editora: Estação
Liberdade/ Edições Sesc São Paulo. Páginas: 160. Preço: R$
52.
"Maquiavelianas": lições de
política republicana.
Autor: Sérgio Cardoso. Editora: 34. Páginas: 312. Preço: R$
71.
"Liderança e poder"
Autor: Aldo Fornazieri. Editora: Contracorrente. Páginas: 200. Preço: R$ 88.
2 comentários:
Bom dia Ruan.
Seu texto me trouxe os excelentes, talvez 5, professores que tive.
Aprendi a dicernir com eles.
Muito prazer, acabo de conhecer mais um deles.
Legal,gostei do artigo.
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