Lula deu aula de civilidade em lançamento do PAC
O Globo
Desagravo a governador Cláudio Castro,
vaiado pela plateia, traz recado necessário à democracia
O presidente Luiz Inácio Lula da
Silva pode ser criticado por um sem-número de motivos — do apego a ideias
econômicas equivocadas às práticas políticas retrógradas. Mas, ao longo de sua
história, ele deu inúmeras provas de uma qualidade que o distingue no mundo de
hoje: o respeito à democracia, a crença no diálogo. É uma qualidade essencial
diante de um ambiente conflagrado pela polarização, que tem tornado mais
difícil às instâncias políticas atender às necessidades urgentes do Brasil.
Na última sexta-feira, no lançamento do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Rio de Janeiro, Lula deu uma prova de maturidade política e uma aula de civilidade ao repreender a plateia pela reação agressiva com o governador Cláudio Castro (PL). Adversário político do PT e aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro, Castro era vaiado todas as vezes em que seu nome era mencionado. Chegou a desistir de discursar no evento, apesar de o Rio ser o estado contemplado com mais recursos do PAC (e o escolhido para o lançamento do programa).
Ao subir ao pódio para falar, Lula decidiu
enfrentar a plateia amiga, em geral habituada a seus afagos e aos elogios ao
PT. Fez um desagravo a Castro num tom hoje em dia tão raro na política que
precisa ser reconhecido e valorizado. “A gente vai ter que aprender algumas
lições”, afirmou. “Este ato não é para nós do PT, para nós do governo. Este ato
é para a sociedade brasileira. E nós temos de compor com as pessoas que fazem
parte da sociedade brasileira. O governador do Rio de Janeiro não está aqui
porque quer estar. Está aqui porque nós o convidamos.”
Em seguida, lembrou ao público o óbvio:
democracia é o regime que exige não apenas convívio e respeito à diferença, mas
também que se trabalhe com quem pensa diferente. Para ilustrar seu ponto, Lula
tomou “o exemplo do Arthur Lira que
está aqui, o presidente da Câmara”. “Ele não está aqui como Arthur Lira, está
aqui como presidente de uma instituição”, disse. “O Poder Executivo precisa
mais dela que ela do Poder Executivo.”
Nada mais sensato nem mais necessário que
tal mensagem de união neste momento. Líderes das várias instituições da
República sempre terão ideias divergentes, opiniões distintas sobre as melhores
respostas aos desafios políticos. Isso é da natureza da democracia. Assim como
é da natureza da democracia que essas divergências sejam expostas, debatidas e
resolvidas por meio do diálogo nas instâncias adequadas. Não é porque o outro
pensa diferente de nós que deve ser vaiado, agredido ou eliminado. É porque
pensa diferente de nós que devemos ouvi-lo e tentar entender suas razões. Só
assim será possível chegar a um acordo produtivo para todos.
Seria mais fácil para o Brasil e para todo
o planeta, hoje tomados por debates estéreis entre grupos ideologicamente
antagônicos que almejam à destruição mútua, se outros políticos entendessem
isso e tivessem a atitude civilizada expressa na mensagem de convívio de Lula.
Nas palavras dele: “É esse comportamento que nós temos de ter, para a gente poder
consolidar o processo democrático neste país. É a convivência democrática na
adversidade”. Impossível ser mais claro. Nem mais oportuno.
Britânicos se arrependem do Brexit, e não
se vislumbra novo rumo do país
O Globo
Enquanto mesmos problemas dos vizinhos
persistem, surgiram outros como resultado do divórcio da UE
Não foi por falta de aviso. Sete anos após
o plebiscito que aprovou a saída do Reino Unido da
União Europeia (UE), sob o discurso isolacionista de que assim o país teria
novamente seu destino nas próprias mãos, a maioria dos britânicos gostaria de
voltar a fazer parte do bloco. Os 52% a favor do Brexit no plebiscito de 2016
já não eram uma maioria sólida, mas hoje
apenas um terço, 33%, insiste que o divórcio da UE foi uma decisão acertada,
contra a opinião de 55%, segundo o Instituto YouGov. De acordo
com a Redfield & Wilton for UK, dos que apoiaram o Brexit no plebiscito,
36% mudariam o voto se houvesse outra consulta popular.
Consumada a separação, os discursos ficaram
para trás, e os britânicos tiveram de enfrentar os efeitos do Brexit no
cotidiano. De um lado, as agruras enfrentadas pelos demais países do continente
— como inflação ou influxo de migrantes ilegais — não arrefeceram. De outro,
surgiram problemas autoinfligidos pelo próprio Brexit, como a falta de mão de
obra. Escasseiam braços na lavoura para as colheitas. Oficinas mecânicas em
Londres só têm horário disponível para setembro — a quem tem pressa, aconselha-se
chamar o serviço de emergência do seguro. Alguns levaram um ano e meio para
registrar seu animal doméstico na clínica veterinária mais próxima de casa,
devido à dificuldade de substituir funcionários estrangeiros que tiveram de
voltar para o continente por causa do Brexit.
A saída da UE não provocou apenas falta de
produtos nas prateleiras dos supermercados e de combustíveis nos postos. Também
afetou os preços. A vida ficou mais cara. Em junho a inflação anual ficou em
6,4%, apenas 0,1 ponto percentual abaixo de maio, quando atingiu o patamar mais
elevado desde novembro de 1991. Em julho, 2,4 milhões de famílias deixaram de
pagar pelo menos uma conta. Acrescentem-se a isso as filas de checagem de
passaporte para as viagens de férias de verão no continente e as dificuldades burocráticas
de exportadores e importadores para fechar seus negócios, o oposto do que
prometiam os partidários do Brexit.
Um estudo estima que o Reino Unido perde €
100 bilhões por ano com o Brexit. Os danos se refletem na baixa taxa de
crescimento. No primeiro trimestre, a economia cresceu 0,1%, mesma taxa do
trimestre anterior. No início do ano, a economia britânica ainda estava 0,5%
abaixo do nível de 2019, antes da pandemia, enquanto a americana estava 5,3%
acima, a italiana 2,4% e a francesa 1,3%.
No plano político, o Partido Conservador,
há 14 anos no poder, deverá pagar o preço nas eleições do ano que vem. A volta
à UE é considerada hoje alternativa descartada, tantas as complicações. Não há
qualquer simpatia europeia para receber o Reino Unido, por mais que pesquisas
mostrem arrependimento na população. Os britânicos continuarão a arcar com os
custos do isolamento, enquanto o país fica sem rumo definido na integração
global.
Ajustar a reforma
Folha de S. Paulo
Proposta sensata do MEC busca preservar
objetivos centrais do novo ensino médio
O Ministério da Educação anunciou que
pretende apresentar até o início de setembro um projeto de
lei com mudanças na grade curricular do novo ensino médio.
As medidas incluem a ampliação da carga
horária dedicada à parte comum (disciplinas tradicionais como português e
matemática) e a redução da quantidade dos chamados itinerários formativos, que
passariam de cinco para dois.
Não se trata de inovação ambiciosa —o que é
bem-vindo. A intenção do MEC é resolver o básico, e são muitas as
circunstâncias em que o poder público não deve ter a pretensão de reinventar a
roda.
A crise do ensino médio combina preconceito
ideológico com problemas técnicos na implementação da reforma aprovada no
governo de Michel Temer (MDB).
Associações de alunos e professores mais
identificados com a esquerda nunca aceitaram a medida, porque ela veio de uma
gestão não só vista como direitista mas também acusada de golpismo. Pouco
importa que as discussões que resultaram na reforma tenham começado em governos
do PT. Esses grupos exigiam a revogação total.
Ceder a essa demanda teria sido um erro, já
que a premissa básica da remodelação —ampliar a autonomia dos alunos para que
desenhem suas próprias trajetórias a fim de tornar o curso mais atraente e,
assim, reduzir a evasão escolar— permanece válida.
As alterações, no entanto, eram de grande
alcance, e as redes não
estavam preparadas para implementá-las. O resultado foram situações
caóticas, que demandavam uma intervenção do MEC.
A reforma prevê 60% da carga horária para o
currículo comum e 40% para os itinerários. Contudo poucas unidades de ensino
conseguiam oferecer ao corpo discente todas as trajetórias optativas previstas.
Fazê-lo, afinal, demandaria mais professores e maior infraestrutura
(laboratórios, salas de aula, material didático).
Na prática, portanto, a oferta acaba
limitada e repleta de improvisos. Como consequência, a autonomia dos alunos, um
dos objetivos da reforma, não foi ampliada.
Em alguns casos, estudantes passaram a ter
menos aulas das disciplinas básicas, o que os deixava em desvantagem nos
processos de seleção para universidades.
A recalibragem com a qual o MEC agora acena
é sensata. O currículo
comum passaria a 80% da carga horária, e o diversificado, para 20%. Os
itinerários seriam apenas dois: humanas e exatas/biológicas.
Ainda há uma infinidade de detalhes a
acertar, mas espera-se que, com a nova alteração, as redes consigam se
reorganizar e, no futuro, possam oferecer um currículo de fato diversificado,
com mais opções para os estudantes.
Alternância preciosa
Folha de S. Paulo
Com troca de governo, fecha-se o cerco
sobre Bolsonaro, mas deve-se seguir a lei
Torna-se mais claro, a cada novo dia, que
Jair Bolsonaro (PL) de fato contava com a impunidade na hipótese de ser
reeleito presidente. É difícil identificar outra explicação razoável para a
desfaçatez com que ele e aliados atacaram as instituições democráticas e
escarneceram da coisa pública.
No episódio mais recente, investigações da
Polícia Federal indicam que Bolsonaro se
valeu da estrutura do governo federal para negociar bens preciosos recebidos de
autoridades estrangeiras.
Entre os suspeitos de participar da
falcatrua está Frederick Wassef, o advogado de Bolsonaro notabilizado após o
policial aposentado Fabrício Queiroz ter sido preso na sua propriedade em
Atibaia (SP).
Além dele, são alvo das apurações Osmar
Crivelatti, tenente do Exército que atuou na ajudância de ordens da
Presidência, e Mauro Lourena Cid, general da reserva e pai de Mauro Cid, também
ex-ajudante de ordens e personagem recorrente nas tramas bolsonaristas.
Coube ao tenente-coronel Cid, como se sabe,
armazenar em seu celular um arsenal de teorias heterodoxas que justificariam
uma possível intervenção militar depois da eleição vencida por Lula (PT).
Em outra frente, Silvinei Vasques,
ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, é investigado sob suspeita de
ter utilizado a corporação para interferir no segundo turno das eleições de
2022.
Apura-se ainda se a deputada federal Carla
Zambelli (PL-SP) se conectou a um famigerado hacker para, entre outras
finalidades, prejudicar o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal
Federal.
Todos esses, para não citar rol ainda mais
extenso de aliados do ex-presidente, tornaram-se alvo da PF neste ano —e é
pouco provável que encontrassem destino semelhante num eventual segundo mandato
de Bolsonaro.
Colhem-se, dessa forma, alguns dos
benefícios da alternância de poder: o aparelhamento das instituições de Estado
se desfaz com a chegada de um novo grupo político e, ao menos na teoria, elas
operam durante certo tempo sob a lógica pura da administração pública.
Disso decorre que as investigações, bem como as determinações judiciais, precisam de máximo rigor ao seguir a lei, para que de nenhum modo se confundam com um revanchismo rasteiro. Prisões mal fundamentadas como a de Silvinei Vasques, por exemplo, em nada ajudam na recuperação do vigor democrático brasileiro.
Os mais vulneráveis entre os vulneráveis
O Estado de S. Paulo
A pobreza no Brasil está concentrada nas
crianças e, conforme o Banco Mundial, o sistema fiscal é parte do problema. Se
o País quiser um futuro melhor, precisa reverter essa lógica
A população brasileira está envelhecendo, e
nas próximas gerações começará a encolher. Os cidadãos em idade ativa
diminuirão crescentemente e serão cada vez mais sobrecarregados, por exemplo,
pela sustentação da Previdência de um contingente de idosos cada vez maior e
mais longevo. Se não por mais nada, essa perspectiva econômica deveria motivar
o País a promover políticas de incentivo à natalidade. Contudo, não só não há
iniciativas substanciais nesse sentido, como o Brasil, que já é um dos países
mais desiguais do mundo, concentra sua pobreza nas crianças.
A proporção de cidadãos em vulnerabilidade
decresce conforme a idade. Entre os brasileiros com até 14 anos (22% da
população), cerca de 10% vivem com até US$ 1,90 por dia e 20% com até US$ 3,20,
enquanto entre os idosos (15% da população) esse porcentual é, respectivamente,
algo em torno de 2% e 4%. Essa desproporção se reflete em todas as outras
dimensões de vulnerabilidade, como alimentação, moradia ou saneamento.
Não se trata de um fenômeno novo no Brasil
nem incomum no resto do mundo. O dado novo, levantado pelo Banco Mundial, é que
o sistema fiscal brasileiro reduz a pobreza dos mais velhos, mas, ao mesmo tempo,
agrava a dos mais novos.
O estudo mostra que as políticas fiscais
aliviam a pobreza de um modo geral, reduzindo a pobreza extrema em 5,9 pontos
porcentuais e a moderada em 0,6 ponto. Isso porque, ainda que os impostos
indiretos tenham um efeito regressivo, aumentando a pobreza em 6,1 pontos
porcentuais, esse impacto é amplamente compensado por programas sociais, como
as pensões rurais, o Abono Salarial, o Benefício de Prestação Continuada e,
sobretudo, o Bolsa Família.
Ocorre que na clivagem por idade há uma
inversão. O impacto das políticas fiscais reduz as taxas de pobreza entre os
idosos de 37,6% para 14,8%, enquanto entre as crianças ele as amplia de 54,2%
para 56,6%. Assim, a presença de um idoso em uma família pobre tende a elevar a
renda familiar, enquanto a de uma criança gera o efeito oposto.
Essa iniquidade sistêmica é tanto mais
perniciosa quando se considera que o impacto da pobreza sobre as crianças (em
processo de desenvolvimento físico e psíquico) é muito maior e mais duradouro
(por vezes irremediável) do que entre os adultos. Inversamente, benefícios
focalizados em crianças têm um potencial muito maior de reduzir a pobreza. E a
literatura científica mostra que, quanto menor a idade em que o investimento é
feito, maior é a taxa de retorno. Afinal, é mais fácil compensar as
desvantagens de crianças pequenas do que tentar remediar essas desvantagens ao
longo dos anos.
Nesse contexto, o aumento substancial do
Bolsa Família e a retomada de um adicional para os filhos (R$ 150 até 7 anos e
R$ 50 até 18 anos) foram medidas extremamente sadias. Ainda assim, famílias com
filhos são desfavorecidas. Enquanto um casal sem filhos recebe R$ 300 por
cabeça, um casal com uma criança e um adolescente, por exemplo, recebe R$ 200
por cabeça.
De resto, mesmo um programa de
transferência de renda bastante robusto, progressivo e focalizado nos
vulneráveis, como o Bolsa Família, pode ser uma condição necessária para
promover a emancipação de crianças em alta vulnerabilidade, mas não é
suficiente. Como a pobreza não é só monetária, é multidimensional, é preciso
combinar transferências de renda com políticas complementares, desenhadas
especificamente para os ciclos de vida, como é o caso, atualmente, do Programa
Criança Feliz, para a primeira infância.
Priorizar crianças nas políticas sociais
não é só um imperativo moral, dada a sua condição de total dependência do mundo
adulto, mas econômico: sem investimento em capital humano no presente, não
haverá capital material no futuro. Desde um passado imemorial, o Brasil se mostra
muito competente em promover desigualdades e muito incompetente em promover o
desenvolvimento infantil. Ao fim, são só duas peças da mesma armadilha. Se o
Brasil não for capaz de reverter esse círculo vicioso, pode até continuar a se
crer o “país do futuro”, mas esse futuro será cada vez mais pobre.
O alto custo das benesses na reforma
O Estado de S. Paulo
Não fossem as exceções incluídas na reforma
tributária, o novo imposto poderia ser de 20% em vez de 27%. Cabe ao Senado
revê-las e trabalhar pela menor alíquota possível
Um estudo do Ministério da Fazenda estimou
que a alíquota padrão do futuro Imposto sobre Valor Agregado (IVA) poderá
variar de 25,45% a 27%. O cálculo leva em conta os termos do texto da reforma
tributária aprovado pela Câmara dos Deputados. O porcentual colocaria o Brasil
ao lado da Hungria na constrangedora liderança do ranking dos países com o
maior IVA sobre o consumo de bens e serviços, de acordo com a Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A priori, esta seria uma notícia trágica,
que daria razão aos que criticam a reforma. Mas ela traz uma oportunidade única
de o País enfrentar um tema tão relevante para estimular o investimento e o
crescimento. Em primeiro lugar, o País já tem a maior carga sobre consumo: ela
é de 34,4%, considerando PIS, Cofins e ICMS. Essa tributação, sem dúvida alguma
elevada, reflete as escolhas de um País que arrecada muito, mas gasta ainda
mais.
Em segundo lugar, o texto que passou pela
Câmara, que deu base ao estudo, não é definitivo. A alíquota final do tributo
ainda pode mudar. Pode ser maior, se o Senado optar por aumentar o rol de
setores privilegiados pelo imposto reduzido, ou menor, se os senadores
enfrentarem o tema com a seriedade e o rigor que ele requer.
O estudo do Ministério da Fazenda foi apresentado
a pedido do relator da reforma do Senado, Eduardo Braga (MDB-AM). O porcentual
não está no texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) – e é bom que não
esteja, para proteger a Carta Magna. Tal definição ficará para um projeto de
lei complementar, etapa posterior à apreciação da PEC.
Para o relator, no entanto, o Senado,
enquanto Casa da Federação, não poderia aprovar a reforma às cegas, sem ter
conhecimento sobre as alíquotas de um imposto que substituirá outros cinco,
entre os quais aquele que é a maior fonte de receitas dos Estados.
Agora conhecido, o estudo tem muitas
virtudes. Com transparência, ele revela que as bondades que os deputados
concederam a alguns setores têm um custo, o que não deveria causar surpresa.
Afinal, uma vez que a neutralidade é uma premissa da reforma e o atual nível de
arrecadação terá de ser mantido, se alguns pagarem menos, outros terão de
desembolsar mais para compensar as benesses alheias.
Se apenas as exceções originalmente
previstas na proposta tivessem sido mantidas, como o Simples Nacional e a Zona
Franca de Manaus, o IVA poderia variar de 20,7% a 22%, já consideradas as
perdas com sonegação e elisão fiscal. Os deputados, no entanto, optaram por
incluir novos setores entre aqueles que terão tratamento especial, como
agronegócio, saúde e educação; além disso, ampliaram o benefício a que eles
teriam direito de 50% para 60% da alíquota cheia.
A Câmara decidiu ainda zerar o imposto de
metade dos itens da cesta básica, quando poderia ter garantido esse direito
apenas às famílias vulneráveis cadastradas em programas sociais. Qual a
necessidade de conceder alíquota zero aos alimentos consumidos pela população
de maior renda?
Até bares foram contemplados com a alíquota
reduzida. Sem juízo de valor, a medida desrespeita o espírito da reforma. As
bebidas alcoólicas estão justamente entre os produtos sobre os quais deverá
incidir um imposto seletivo, ou seja, majorado, para desestimular o consumo.
Foi com esse tipo de manobra – decisões políticas sem qualquer justificativa
minimamente técnica para ampará-las – que o sistema tributário brasileiro se
tornou um dos mais complexos do mundo.
A reforma em tramitação no Senado é a
melhor chance de o País deixar para trás um sistema confuso, injusto e
regressivo, que só beneficia quem faz uso de brechas legais e interpretações
jurídicas peculiares para pagar menos imposto do que deveria. Os ganhos diretos
e indiretos que a aprovação da proposta trará em termos de simplificação,
transparência, equanimidade e produtividade são inestimáveis. O Senado deve
reconhecê-los, sem perder a chance que tem em suas mãos para corrigir o texto e
retirar todas as suas distorções. Só assim as alíquotas poderão ser menores.
Arquipélago Gulag 2.0
O Estado de S. Paulo
O suplício de Alexei Navalny escancara a
brutalidade – e o nervosismo – crescente de Putin
Se havia dúvida de que Vladimir Putin não
hesitará em esmagar qualquer dissidência sob sua máquina de propaganda nem em
cometer crimes e usar força letal contra seu próprio povo para perseguir suas
ambições, ela foi incinerada pela guerra na Ucrânia. Nada simboliza mais esses
horrores que o martírio de Alexei Navalny.
Navalny se notabilizou por publicar
materiais sobre corrupção e organizar protestos por meio de sua Fundação
Anticorrupção. Após ser envenenado em 2020, violou sua condicional para ser
socorrido em Berlim, e em 2021 voltou à Rússia sabendo que seria detido. Um
julgamento farsesco o condenou a nove anos por fraude. Agora, foi sentenciado a
mais 19 anos por acusações de “extremismo” que em qualquer tribunal
independente nem sequer seriam aceitas. Colaboradores relatam que ele está há meses
confinado numa solitária. Sua última condenação o enviará a um “regime
especial” numa colônia penal onde ficará ainda mais isolado.
Navalny é só a ponta do iceberg. Todas as
atividades de sua fundação foram criminalizadas desde 2011. Diversos membros
foram ou estão para ser condenados a penas até maiores. Mesmo seus advogados se
tornaram alvos. Segundo a Anistia Internacional, até 20 mil russos sofreram
represália por protestar contra a guerra. Muitos respondem a “combos” de
acusação que aglutinam de infrações administrativas a desinformação e traição.
Segundo o grupo Memorial de direitos humanos – dirigido por Oleg Orlov, também
julgado por “desacreditar” as Forças Armadas –, o número de casos lembra a era
Brejnev, nos anos 60 e 70, mas a brutalidade se assemelha ao “tempo de Stalin”.
Navalny não tem ilusões. “O número não
importa”, disse nas redes sociais, através de interlocutores com acesso a seu
perfil. “Entendo perfeitamente bem que, como muitos prisioneiros políticos,
estou cumprindo uma prisão perpétua – onde a perpetuidade é medida pela duração
da minha vida ou da vida deste regime.”
Como ele, outros ativistas estão decididos
a ficar na Rússia, mesmo ante a perspectiva certa de imolação. Uma das razões,
disse a advogada de direitos humanos Maria Eismont, é que nas cortes russas
“você pode dizer abertamente coisas que estão, há muito tempo, proibidas em
outros lugares”.
Com sua capacidade de negociação com o
Kremlin no nível mais baixo desde a guerra fria, não resta ao Ocidente senão
denunciar ostensivamente os crimes de Putin para tentar sensibilizar o povo
russo. Mesmo autocratas precisam de uma fachada de legitimidade, e a comunidade
internacional, especialmente políticos, diplomatas, ONGs e a imprensa, deveria
usar toda oportunidade à mão para marretar a fachada podre de Putin. A escalada
da selvageria é já um sinal de desespero.
“Vocês estão sendo forçados a entregar sem luta a sua Rússia a uma gangue de traidores, ladrões e canalhas que tomaram o poder”, disse Navalny a seus compatriotas. O mundo civilizado não deveria poupar esforços para dar voz aos russos dispostos a sacrificar suas vidas para livrar seu país, a Ucrânia e, no limite, todo o planeta das garras dessa gangue.
América Latina e o crime organizado
Correio Braziliense
Para onde quer que se olhe, os índices de
homicídios na guerra urbana não param de subir. E, agora, o descalabro avança
sobre a política, colocando em risco a democracia
A violência na América Latina se banalizou
por completo. O assassinato de Fernando Villavicencio, candidato à Presidência
da República no Equador, na última quarta-feira, foi apenas mais um capítulo
das tragédias que têm se repetido em toda a região, tomada pelo crime
organizado e pelo narcotráfico. Para onde quer que se olhe, os índices de
homicídios na guerra urbana não param de subir. E, agora, o descalabro avança
sobre a política, colocando em risco a democracia. As eleições equatorianas
estão mantidas para 20 de agosto, e o país decretou Estado de exceção.
Villavicencio foi o terceiro político
assassinado no Equador neste ano. No mês passado, o candidato ao Legislativo
Rider Sánchez foi morto na cidade de Quinindé, a noroeste do país. Em
fevereiro, Omar Menéndez teve a vida ceifada a tiros um dia antes das eleições
em que saiu vitorioso, com 46,2% dos votos, para prefeito de Puerto López.
Esses crimes coincidem com o salto impressionante nos indicadores de violência
no país. Em 2017, o Equador chegou a ter o menor número de homicídios por 100
mil habitantes: 5,8. Agora, esse índice subiu para 36, próximo de países em
guerra.
Ao sul da América Latina, a Argentina vive
o mesmo fenômeno de descontrole da violência às vésperas de eleições. Três
mortes nos últimos dias colocaram o tema nos debates dos presidenciáveis,
estimulando discursos populistas, em especial da extrema-direita. A menina
Morena Domínguez, 11 anos, morreu depois de ter a mochila roubada na porta da
escola por dois motoqueiros. O manifestante de esquerda Facundo Morales, 47,
teve um mal súbito ao ser detido pela polícia em uma manifestação. O médico
Juan Carlos Cruz, 52, faleceu ao ser baleado quando ladrões roubavam o carro
dele.
A Argentina sempre foi uma das nações mais
seguras da região. Mas políticas equivocadas, que empurraram o país para a mais
grave crise econômica de sua história, com 40% da população na pobreza, mudaram
a realidade dos argentinos. A taxa de homicídio no país vizinho alcançou 4,2
homicídios por 100 mil habitantes, ainda bem distante do índice brasileiro, de
19,5. O clima de insegurança perturba os eleitores, que apontam o tema como o
mais importante depois da inflação galopante. A região metropolitana de Buenos
Aires concentra quase 40% dos crimes.
Dados recentes do Fórum de Segurança
Pública mostram que o número de homicídios no Brasil caiu ao menor nível em uma
década. Porém, quase 50 mil pessoas ainda são vítimas de armas de fogo todos os
anos. Crimes como estupros e feminicídios batem recorde. Jovens negros são os
que mais morrem nessa guerra diária. Entre setembro de 2020, às vésperas de
eleições municipais, e 2 de outubro de 2022, primeiro turno do pleito
presidencial, foram identificados 523 casos de violência política, sendo 54
assassinatos de candidatos a cargos eletivos e de pessoas com mandatos. Cinco
anos se passaram, e até hoje não se sabe, efetivamente, quem mandou matar a
vereadora Marielle Franco e o motorista dela, Anderson Gomes.
A luta contra a violência na América Latina
tornou-se mais do que urgente. Exige uma ação coordenada de todos os países da
região para combater o narcotráfico e as organizações criminosas que têm se
mostrado, em alguns países, fortes o suficiente para enfrentar os poderes
constituídos na tentativa de fazer valer seus interesses. A ramificação desses
grupos é tão ampla que ações isoladas de nada adiantarão. Ou os governos se
unem, ou o Estado paralelo passará a dar as cartas, corrompendo os que têm o
poder da caneta, o Judiciário e aqueles que fazem as leis.
O enfrentamento não poderá se restringir a
medidas na área de segurança. Passa por políticas eficientes e inclusivas na
economia, de forma que os jovens que se sentem excluídos não sejam cooptados
pelo crime. Essa não pode ser uma guerra perdida, pois as consequências serão
pesadas para todos.
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