sexta-feira, 24 de maio de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Rombo nas contas públicas exige ajuste de despesas

O Globo

Relatório do Tesouro projeta déficit maior em 2024, ainda que haja alta — incerta — nas receitas

Cresceu a projeção do governo para o buraco nas contas públicas até o final do ano. Pelos cálculos do Tesouro, o resultado primário — diferença entre receitas e despesas, sem contar pagamentos de juros — será um déficit de R$ 14,5 bilhões, R$ 5,2 bilhões além da estimativa anterior. Na interpretação das autoridades em Brasília, tudo continua sob controle. Como a regra fiscal permite um déficit de R$ 28,8 bilhões, dizem haver folga.

O discurso benevolente tenta encobrir uma realidade bem mais preocupante. Nunca se pode perder de vista o endividamento e sua trajetória. Em dez anos, a dívida bruta saiu de menos de 60% do PIB para os atuais 74,4%. No ritmo atual, tardará a cair. Quanto mais demorar, piores os efeitos sobre taxa de juros, câmbio e crescimento.

A credibilidade da política fiscal já viveu dias melhores. O arcabouço aprovado em 2023 não completou nem um ano, mas já foi alterado para afrouxar as metas. Mesmo com as mudanças, há dúvidas se as contas fecharão dentro do estipulado pelas regras. Para chegar a dezembro com um déficit de até 0,25% do PIB (os tais R$ 28,8 bilhões), será necessário atingir uma projeção de arrecadação inflada. Entre o primeiro e o segundo bimestre, o Tesouro Nacional elevou a estimativa de receitas primárias federais em R$ 16 bilhões. Ao mesmo tempo, houve aumento de R$ 24,4 bilhões nas despesas primárias, R$ 20,1 bilhões delas obrigatórias.

O cálculo do Tesouro leva em conta o recebimento integral dos dividendos extraordinários da Petrobras. A petroleira reteve R$ 42 bilhões no começo do ano. No mês passado, voltou atrás e aprovou a distribuição de metade aos acionistas, passando R$ 6,4 bilhões à União. Para o secretário do Tesouro, Rogério Ceron, é certo que a segunda metade será paga. Dado o grau de intervenção do Palácio do Planalto na Petrobras, é até provável que Ceron esteja certo nesse item. Mas as demais previsões serão mais difíceis de cumprir.

As receitas são projetadas pelo governo com expectativa de crescimento do PIB de 2,5%, sem levar em conta as consequências negativas das chuvas no Rio Grande do Sul na economia. No quesito das despesas, a tragédia gaúcha e o esforço de reconstrução também terão peso. O discurso oficial de que a ajuda não será comedida e, ao mesmo tempo, zelará pelas finanças públicas é contraditório. Os montantes transferidos ou as renúncias a impostos ficarão fora da meta e dos limites fiscais, mas isso não quer dizer que sairão de um vácuo. Truques contábeis à parte, empurrarão a dívida para cima.

A situação fiscal e as perspectivas são alarmantes e exigem medidas à altura. O déficit estrutural deu um salto no primeiro ano do governo e fechou 2023 em 1,65% do PIB. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem razão quando diz ser preciso “pensar nas condições institucionais”. Seriam bem-vindas mudanças para desengessar o Orçamento. Embora desejável, parece pouco provável que o governo tenha a intenção de abrir essa frente no Congresso em ano com eleições municipais e desafios da magnitude da regulamentação da reforma tributária.

Como medidas para alavancar a arrecadação têm limites, a alternativa à disposição do governo é, com a ajuda do Legislativo, implementar um plano consistente de ajuste de gastos. A ilusão de que a dívida pública ascendente é inofensiva fez o Brasil chegar a um endividamento próximo de 80% do PIB. É preciso acabar com o autoengano.

Desmonte de rota do tráfico do Rio à Amazônia indica caminho para polícia

O Globo

Sucesso depende da integração com outras forças e de investigação das finanças do crime organizado

Foi exemplar a operação Rota do Rio, promovida pela Polícia Civil do Rio de Janeiro contra o tráfico de drogas e armas. O objetivo era desmantelar uma ampla rede de tráfico comandada pelo Comando Vermelho, organização criminosa hegemônica no estado. A rota dos traficantes se estendia até o Amazonas, seguindo o Rio Solimões e conectando Tabatinga, Letícia e Santa Rosa de Yavari, ilha fluvial no lado peruano da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru (dois grandes produtores de drogas).

O alcance da operação pode ser medido pela execução de 113 mandados de busca e apreensão e de quatro prisões em quatro estados: Rio, Minas Gerais, Amazonas e Pará. Só no Rio, a polícia bateu à porta de suspeitos em Copacabana, na Barra da Tijuca, no Recreio dos Bandeirantes e na comunidade do Fallet-Fogueteiro, na região central. Ainda no estado, os policiais cumpriram mandados em Armação dos Búzios e Cabo Frio.

Um desses mandados, de busca e apreensão, foi emitido contra Raimundo Pinheiro da Silva, conhecido como “Chicó”, ex-prefeito de Anamã, município do Amazonas. Ele é suspeito de usar um frigorífico no estado para lavar dinheiro da organização criminosa. A droga ultrapassava a tríplice fronteira com destino a portos no Pará e no Nordeste, depois passava por Minas Gerais até chegar ao Rio, onde era vendida. Parte do dinheiro fazia o caminho de volta.

Para o êxito da operação, foi crucial a integração da Polícia Civil fluminense com serviços de inteligência e outras corporações de fora do estado. Na investigação que durou seis meses, ela contou com o apoio da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (DRCO), do Amazonas, da Subsecretaria de Inteligência local e do Comitê Integrado de Investigação Financeira e Recuperação de Ativos (Cifra), criado no ano passado numa iniciativa promissora para cercar as finanças do crime em âmbito federal. Fazem parte dele Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, representantes das secretarias estaduais da Polícia Civil, do Ministério da Fazenda, do Ministério Público Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

Fica mais uma vez provado que apenas com a troca de informações e a colaboração entre os diversos braços de segurança pública o Estado brasileiro tem condição de derrotar com êxito organizações criminosas que hoje têm ramificações internacionais e estão infiltradas em instituições públicas. A operação também confirma que a tríplice fronteira é ponto de partida de uma importante rota de distribuição de drogas colombianas e peruanas. É fundamental que essa atuação integrada da Polícia Civil se torne um padrão para enfrentar o crime organizado em todas as suas modalidades.

Fed indica que pode demorar para reduzir juros

Valor Econômico

Não é improvável que redução dos juros nos EUA ocorra apenas no próximo ano ou que o Fed faça apenas um corte em 2024

Após quase um ano em que o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) resolveu estacionar os juros em seu mais alto nível em 22 anos (5,5%), o banco ainda não se sente seguro de que a inflação vá de fato caminhar de volta para a meta de 2%. Ao contrário, considera que há riscos significativos de alta dos preços. Desde julho de 2023, as taxas dos fed funds não se movem, em uma espera exasperante para os mercados financeiros ao redor do mundo. O Fed aguardava confirmações seguidas de redução dos índices, mas eles voltaram a subir no primeiro trimestre do ano. O revés indica que será necessário muito mais que um par de notícias positivas para que os juros comecem a ser reduzidos, o que só deverá ocorrer mais no fim do segundo semestre.

O percurso da inflação se mostrou mais acidentado do que parecia. A demora ampliou as dúvidas sobre o grau de aperto já realizado e levou à discussão no Fed sobre se não seria preciso ir além - aumentar novamente os fed funds. O presidente do Fed, Jerome Powell, em entrevista logo após a última reunião do Fomc (o comitê que decide as taxas), disse que essa hipótese era pouco provável. Ela foi, no entanto, discutida.

Muitos participantes da reunião apontaram que os juros altos estavam tendo menos efeitos do que no passado, e esboçaram alguns motivos. Um deles é que a taxa de juros de equilíbrio (a que não restringe nem estimula aumento de preços) pode ser hoje mais alta do que antes. Na reunião de março, nas projeções, a mediana dos juros de longo prazo foi de 2,6%, mas com variação entre 2,4% e 3,8%. Tomando por base os 2,6%, há bom espaço para que os juros caiam: não há tanta margem assim se a ponta do espectro (3,8%) for considerada. Outra hipótese foi a de que o potencial de crescimento da economia se reduziu e é menor do que o esperado - a mediana das estimativas dos membros do Fed é de 1,8%, e o PIB tem crescido bem acima disso nos últimos anos.

Vários participantes da reunião, porém, demonstraram inclinação para elevar os juros caso a inflação suba. Ainda que isto esteja naturalmente no cardápio de qualquer banco central, a simples manutenção de taxas altas por mais tempo, o mantra do Fed há meses, causou forte agitação nos mercados financeiros. Apertos adicionais teriam consequências ainda mais desestabilizadoras. O Fed deve manter-se à espera de resultados melhores que podem demorar a ocorrer.

A piora do início do ano no combate à inflação surpreendeu. O Fed afirma que há um maior equilíbrio no mercado de trabalho entre oferta de mão de obra e oferta de vagas - ainda em desvantagem para os empregadores - e alguma desaceleração nos aumentos de salários. Em março, último dado antes da reunião do banco, o custo do trabalho e o pagamento por hora trabalhada recuaram na comparação anual, mas a média móvel trimestral teve alta pronunciada em relação à média do segundo semestre de 2023.

Com um ritmo econômico ainda forte, as preocupações do Fed concentravam-se na inflação de serviços, mais alta do que seria compatível com uma meta de 2%, situação recorrente nos últimos meses, contrabalançada por uma inflação de bens comportada. Não mais: o Fed detectou aumentos significativos em ambos. A inflação de serviços subiu no trimestre em relação ao anterior, e os preços de bens essenciais aumentaram no período pela primeira vez depois de vários meses.

A economia reduziu seu ritmo no primeiro trimestre, mas esta não deve ser a tônica do ano para o Fed. O banco estima que a demanda privada doméstica, que compreende os gastos de consumo e o investimento fixo privado, aumentou em um nível parecido com os do excelente desempenho do segundo semestre de 2023 - no terceiro trimestre do ano passado o PIB avançou 5,2% e no quarto, 3,4%.

As análises do Fed não consideram explicitamente os relevantes impulsos de uma política fiscal expansiva. O Fed considera que a poupança feita com os auxílios recebidos durante a pandemia se esgotaram para a população de baixa renda, mas isso não aconteceu com a população de média e alta rendas. Além disso, os estímulos fiscais continuaram fortes no governo Biden, o que permitiu que, mesmo com uma taxa de juros alta, houvesse festa nas bolsas - valorização de US$ 8 trilhões em nove meses (Joaquim Levy, Valor, ontem). A transmissão dos juros altos para a economia foi também menos intensa pelas características dos mercados americanos. Estudo do Fed mostrou que grande proporção das taxas das hipotecas imobiliárias e de empréstimos corporativos é fixa (carregam juros baixos do passado) e que as empresas americanas dependem menos de empréstimos bancários do que nos demais países desenvolvidos.

Não é improvável que o Fed empurre a redução dos juros para o ano que vem ou faça apenas um corte na taxa em 2024. Essa é uma restrição externa relevante para o corte de juros no Brasil. A força do dólar tem efeito negativo na inflação, e o diferencial de juros menor tem acelerado a migração de recursos de aplicações alocadas no Brasil para os EUA. Os fatores domésticos, porém, contam muito. Sinais de maior seriedade com a política fiscal poderiam arrefecer a valorização do dólar e, com isso, abrir espaço para mais cortes nos juros.

Governo gera descrença nas próprias previsões

Folha de S. Paulo

Como em 2023, gestão petista vai elevando sua estimativa para o déficit fiscal, mas analistas ainda projetam muito mais

Os danos infligidos pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à política econômica não se limitam ao ímpeto gastador e ao abandono precoce das metas de equilíbrio fiscal. Como se tudo isso não fosse o bastante, o Executivo semeia o descrédito nas próprias projeções orçamentárias.

É o que se vê com o relatório bimestral destinado a reavaliar as receitas e despesas esperadas no ano. Trata-se de procedimento exigido por lei que, além de proporcionar maior transparência na gestão das contas, pode servir para orientar as expectativas dos mercados que formam preços cruciais, como as taxas de juros e de câmbio.

Isso, claro, se os dados ali contidos forem levados a sério —mas essa não parece ser uma preocupação na administração petista.

Em seu primeiro relatório, estimou-se um déficit primário (ou seja, sem contar os gastos com juros) de R$ 107,6 bilhões em 2023. Essa seria uma boa notícia na comparação com R$ 228,1 bilhões previstos no Orçamento do exercício. Na época, o número foi usado para pressionar o Banco Central a acelerar os cortes de juros.

Já eram visíveis, então, prováveis inconsistências nas cifras, e o benefício da dúvida foi se dissipando com o passar dos meses.

A projeção de déficit subiria nos relatórios seguintes, e o resultado final foi um rombo de astronômicos R$ 264,5 bilhões —inflados, é verdade, pelo pagamento de R$ 92 bilhões em precatórios represados por Jair Bolsonaro (PL), mas em qualquer cálculo incompatíveis com a promessa inicial.

Neste 2024, para o qual o governo fixou a meta de equilibrar receitas e despesas, o primeiro relatório de avaliação, publicado em março, previu saldo negativo de R$ 9,3 bilhões. Num roteiro previsível, o número acaba de subir para R$ 14,5 bilhões —fora R$ 13 bilhões em gastos extraordinários com a tragédia gaúcha, corretamente excluídos da meta.

Se tais estimativas merecessem alguma confiança, haveria hoje um ambiente muito mais favorável à queda da inflação e dos juros. Mas, desde antes do desastre climático no Rio Grande do Sul, as projeções independentes mais consensuais apontam para um déficit mais perto de R$ 80 bilhões neste ano.

Nada na conduta do governo indica alguma disposição adicional em conter despesas em busca de um resultado melhor. Ao contrário, um bloqueio preventivo de R$ 2,9 bilhões, irrisório para as dimensões do Orçamento, foi revertido.

Expectativas econômicas decerto são voláteis e falhas, mas não se pode subestimar seu peso nas decisões de investimento que afetam o bem-estar social. Um governo que não leva a sério os próprios números só alimenta incertezas.

Imprensa mais protegida

Folha de S. Paulo

STF reconhece que assédio judicial a jornalistas viola a Constituição Federal

O Supremo Tribunal Federal emitiu na quarta-feira (22) um sinal expressivo em defesa da liberdade de expressão, da imprensa e do direito à informação ao declarar a inconstitucionalidade do chamado assédio judicial a jornalistas.

Por iniciativa da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a corte reconheceu o assédio judicial como "o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa".

Num dos exemplos mais conhecidos dessa prática abusiva, a jornalista Elvira Lobato, após escrever reportagem na Folha sobre o patrimônio empresarial de dirigentes da Igreja Universal do Reino de Deus, enfrentou mais de uma centena de ações judiciais dispersadas por todos os cantos do país.

Não se tratava, por óbvio, de busca legítima de reparação —até porque as peças, dirigidas contra a profissional e contra o veículo, não contestavam as informações do texto, publicado em 2008. O que se pretendia era tão-só intimidar a imprensa, impor os custos processuais e vencer pelo cansaço.

Foi debalde. A advogada Taís Gasparian —que defendeu a Folha e agora assinou a ação da Abraji— ganhou todos os casos, sem exceção. Partiu dela, nessa época, a certeira expressão "assédio judicial", agora consagrada pelo Supremo.

O julgamento ora finalizado pelo STF não há de eliminar as variadas tentativas de silenciar a imprensa e de vilipendiar o acesso à informação, mas pelo menos essa forma específica de assédio restará bastante limitada. Decidiu-se, afinal, que o jornalista poderá reunir todos os processos semelhantes em seu foro de domicílio.

A corte julgou ainda outra ação, esta proposta pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e deliberou que "a responsabilidade civil de jornalistas ou de órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos)".

Cuida-se, em boa hora, na proteção da liberdade de imprensa, que ainda tem a avançar no país.

 Os fantasmas que assombram Haddad

O Estado de S. Paulo

Ministro se queixa dos ‘fantasminhas’ que prejudicam ‘nosso plano de desenvolvimento’, mas, se há espíritos a perturbar o trabalho da equipe econômica, não é no mercado que eles estão

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse ter a impressão de que há um “fantasminha fazendo a cabeça das pessoas e prejudicando o nosso plano de desenvolvimento”. Para ele, vários indicadores macroeconômicos mostram que o Brasil vai bem. “Às vezes me chega um comentário e eu fico pensando de onde está saindo essa informação?”, questionou o ministro, ao participar de audiência na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara na última quarta-feira.

A confirmar as assombrações do ministro, o mercado financeiro teve um dia péssimo para os negócios. Parte desse movimento foi consequência da ata do Federal Reserve, o banco central dos EUA, que sinalizou juros altos por mais tempo e não descartou elevá-los caso a inflação norte-americana volte a subir. Mas é inegável que parte dessa reação se deveu às palavras do próprio ministro, que não poderia ter escolhido forma mais desastrosa para criticar o pessimismo dos investidores.

“As nossas expectativas, que eram consideradas exageradas até outro dia, ‘ah, não vai acontecer o que a Fazenda está dizendo’, por enquanto, estão acontecendo”, afirmou Haddad. “As contas estão mais equilibradas, a inflação totalmente controlada, os núcleos estão rodando abaixo da meta, que é exigentíssima”, acrescentou.

Sabendo como o mercado financeiro funciona, o ministro poderia ter parado por aí, mas não se conteve. “Uma meta (de inflação) para um país com as condições do Brasil, de 3%, é um negócio inimaginável. Desde o regime de metas instituído, quantas vezes o Brasil teve 3% de inflação? Em quantos anos isso aconteceu, nos 25 anos do regime de metas?”, questionou Haddad.

É bem provável que o ministro não tenha se dado conta da gravidade do que dizia naquele momento. Fato é que havia uma expectativa no ar sobre a próxima decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN), quando o colegiado formado por Haddad, pela ministra Simone Tebet e pelo presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, se reunirá para confirmar o alvo da inflação de 2025 e de 2026 e fixar a meta de 2027.

A completar o quadro, a ata do Comitê de Política Monetária (Copom) do BC expôs um racha entre os membros mais antigos e os indicados pelo presidente Lula da Silva. Essa divisão acendeu o alerta de que o governo está incomodado com os juros elevados e poderá mudar os rumos da política monetária em 2025, quando terá maioria entre os integrantes do Copom.

Como se sabe, a Selic é o principal instrumento da autoridade monetária para conduzir a inflação à meta definida pelo CMN. Para o mercado, a declaração de Haddad soou como um recado. Se a meta é “exigentíssima”, é porque está fora do lugar. Para piorar, quem já disse publicamente que a meta estava errada e precisava ser alterada foi ninguém menos que o presidente da República, em abril do ano passado.

Foi o suficiente para estragar o humor dos investidores de vez. A curva futura de juros embicou para cima, o dólar fechou em alta, o Ibovespa encerrou a quarta sessão consecutiva em queda e atingiu o menor nível em quase um mês. Esse cenário assombrado não foi provocado por nenhum “fantasma”, e sim pelo próprio ministro Haddad. Se há espíritos a perturbar o trabalho do ministro, não é no mercado financeiro que eles estão, e sim no entorno de Haddad. O mercado não torce contra o governo, mas tampouco ignora o contexto político em que está inserido.

O que não falta são detratores a atuar contra os objetivos de Haddad de equilibrar as contas, o que necessariamente requer reduzir o gasto público, cortar os subsídios e zerar o déficit primário. A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), desqualificou Simone Tebet depois que esta propôs a correção dos benefícios previdenciários pela inflação, única forma de preservar o arcabouço fiscal. Já seria bastante grave, não fosse o fato de que Gleisi muitas vezes é a porta-voz informal de Lula da Silva.

Portanto, Haddad faria melhor se, em vez de se ocupar de fantasmas, enfrentasse os vivíssimos adversários do equilíbrio fiscal.

São Paulo aponta o caminho das pedras

O Estado de S. Paulo

Enquanto o governo federal acelera sua jornada rumo a uma trajetória fiscal insustentável, o governo paulista apresenta um plano promissor para racionalizar os gastos públicos

O governo do Estado de São Paulo apresentou as diretrizes de um plano para modernizar a administração pública, expandir investimentos, melhorar a qualidade do gasto público e reduzir as despesas correntes.

São medidas interdependentes. A ampliação dos investimentos se dará por iniciativas de qualificação da infraestrutura e melhoria do ambiente de negócios do Estado, por meio de medidas como a reestruturação das agências reguladoras e parcerias com a iniciativa privada. Para viabilizar investimentos públicos, o decreto prevê vendas de ativos imobiliários, medidas de redução de custeio e de pessoal e revisão de programas de governo e benefícios fiscais.

Por enquanto, são apenas diretrizes.

Muito ainda precisará ser detalhado. Cada secretaria precisará elaborar, nos próximos 90 dias, diagnósticos e propostas de otimização dos gastos. Parte das medidas dependerá da aprovação da Assembleia Legislativa. Até por isso o governo evita apresentar uma estimativa total do projeto. Mas só a revisão dos benefícios fiscais concedidos a empresas, hoje na casa de R$ 60 bilhões anuais, pode aumentar a arrecadação em até R$ 20 bilhões por ano.

Não se trata da mera redução do tamanho do Estado ou de simplesmente gastar menos, mas de buscar um Estado eficiente, que gaste bem. Tampouco basta investir, se esse investimento não aumenta a produtividade. Por isso, uma das medidas mais importantes do decreto, com potencial de se transformar em política de Estado, é a implementação de um Sistema de Avaliação da Qualidade do Gasto. O decreto estabelece ainda a criação de um conselho gestor do plano, que revisará mensalmente sua eficácia e poderá propor novas diretrizes e ações.

O plano paulista é praticamente uma foto em negativo do “plano”, por assim dizer, do governo federal para a consolidação fiscal. O governo de São Paulo não esconde esse contraste – ao contrário, enfatiza-o implicitamente já no nome do programa: “São Paulo na Direção Certa”.

De fato, bastou a ministra do Planejamento, Simone Tebet, sugerir medidas no mesmo sentido, como um mecanismo de revisão de gastos ou a desindexação dos benefícios previdenciários do reajuste do salário mínimo, para ser escorraçada pelas bases petistas da malfadada “frente ampla”.

Respondendo à monomania lulopetista por mais gastos, o Ministério da Fazenda foi praticamente reduzido a um “Ministério da Arrecadação”. Mas mesmo esse expediente já começa a fazer água. A cada nova projeção fiscal, fica mais claro que, na composição do Orçamento federal, não só as receitas foram superestimadas e as despesas foram subestimadas, mas os gastos fixos foram criados com base no entusiasmo ou na ilusão de receitas provisórias.

Espaço para aumentar impostos não há. Entre os grandes países emergentes, o Brasil já tem a maior carga tributária. A dívida pública do Brasil também só não é maior que a da Argentina e a do Egito. Pelos critérios de cálculo do FMI, a dívida bruta do setor público brasileiro subiu de 85% do PIB em 2022 para 88% em 2023, enquanto a média dos emergentes é de 68%. A manter essa rota, pelas projeções do FMI a dívida chegará em 2028 a 96% do PIB.

O Brasil conhece esse roteiro. Foi justamente o descontrole fiscal das gestões petistas que precipitou a economia nacional na pior recessão da história moderna. Mas o negacionismo do governo é invencível, e ele ruma obstinado em sua volta ao passado.

Segundo as projeções fiscais da Secretaria do Tesouro, o espaço já marginal para as despesas discricionárias, ou seja, de custeio e investimentos, encolherá aceleradamente até desaparecer em 2030.

Em contraste, São Paulo está mostrando o caminho. É incerto ainda em que medida o governo terá capacidade de articulação para resistir às pressões corporativistas e se terá pulso e habilidade para dirigir a máquina pública nessa direção. O governo ainda precisará detalhar os meios para chegar ao fim desejado – e, como se sabe, o diabo mora nos detalhes. Mas do que se sabe até o momento dessa nova política econômica, São Paulo está, de fato, se orientando na direção certa.

O vaivém das refinarias

O Estado de S. Paulo

Petrobras usa órgão de defesa da concorrência ora para vender, ora para reaver refinarias

A Petrobras, dando sequência à guinada promovida pelo governo Lula em sua estratégia empresarial, pediu e obteve do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) a anulação do compromisso de venda de metade de seu parque de refino, além da transportadora de gás TBG. O acordo, firmado em 2019, no governo Bolsonaro, havia sido desenhado pela própria área técnica da Petrobras, que sugeria a venda para extinguir um questionamento sobre atuação anticoncorrencial.

Poucas horas após a petroleira tornar público o pedido, a Superintendência-Geral do Cade manifestou-se a favor e recomendou voto favorável ao plenário, que aprovou o pedido dois dias depois. Ainda que a Petrobras tenha ressaltado, em comunicado, que as propostas apresentadas foram “fruto de amplo debate técnico” entre ambos, restou a desconfiança de que os interesses do governo de ocasião no controle da empresa prevaleceram, dado que a venda foi aprovada e também revertida com inaudita velocidade.

Desconfiança é o pior sinal a ser emitido por um organismo regulador de mercado. A legislação que criou o Cade estabelece, em seu parágrafo único, que “a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei”. Com isso, impõe, de forma muito clara, que sua atuação deve garantir à sociedade acesso a um mercado de livre concorrência.

Não é – ou não deveria ser – função do Cade atender aos interesses de empresa A, B ou C, sejam eles quais forem, sem antes avaliar em detalhes em que medida esses interesses podem prejudicar o mercado e os consumidores. Dito isso, foi no mínimo questionável que uma reclamação contra a Petrobras feita pela Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom) há cinco anos tenha sido solucionada por um plano produzido pela própria Petrobras.

Na época, a reclamação parecia o que a gestão de Bolsonaro e o seu ministro da Economia, Paulo Guedes, precisavam para justificar a venda e reforçar o caixa, já que o Tesouro é também remunerado na transação. Além do mais, podendo escolher com quais refinarias pretendia permanecer, a companhia, por óbvio, manteve as mais rentáveis, sem objeção do Cade. A pandemia de covid e a insegurança que cercou a decisão fizeram com que apenas três das oito unidades postas à venda fossem de fato privatizadas. Agora, sob a gestão Lula da Silva, a empresa quer voltar atrás mesmo em relação às vendas efetuadas.

Alegando que a alienação das refinarias é um obstáculo ao processo de transição energética, a Petrobras propõe alternativas para garantir a concorrência que partem do pressuposto de que o Cade confia integralmente no bom comportamento da empresa – como o compromisso de fechar contratos com “estrita observância ao direito de concorrência”, divulgar em seu site as diretrizes comerciais e não discriminar refinarias independentes.

Aceitar negócios garantidos pelo fio do bigode não é exatamente o que se espera de um órgão antitruste. Conflitos concorrenciais deveriam ser solucionados com imparcialidade e rigor pelo Cade, e não, como parece ter sido, com resolução terceirizada a uma das partes envolvidas. 

Reflexões sobre o ato de adotar

Correio Braziliense

Dados do CNJ mostram que cerca de 92% das crianças em busca de adoção têm mais de 6 anos de idade, e cerca de 48% do sistema é composto por adolescentes entre 12 e 17 anos

É triste um país que tem uma fila com mais de 35 mil nomes interessados em adotar (adotantes) e cerca de 30 mil crianças em situação de acolhimento. Amanhã (25) é o Dia Nacional da Adoção, mas somente 4 mil bebês e crianças estão efetivamente aptos a  ganhar uma família. 

Além de uma infinidade de papéis que precisam ser preenchidos e uma série de etapas a serem cumpridas para que o processo seja definitivamente concluído, o sistema brasileiro lida com questões comportamentais que fogem ao seu controle. Embora o interesse de pessoas e famílias em adotar uma criança seja nítido, é visível também a incongruência entre as expectativas (exigências) dos candidatos a pais adotivos e o perfil das crianças. 

De acordo com o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a preferência por crianças brancas, com, no máximo, 3 anos de idade, que não tenham laços familiares anteriores conhecidos nem condições de saúde que necessitem de cuidados específicos, acaba se transformando em entrave para que os processos de adoção evoluam. 

Aproximadamente 98% das famílias desejam adotar crianças perfeitamente saudáveis, diz o CNJ, o que reduz imensamente as chances de adoção para quem tem deficiência ou alguma necessidade específica, e aqui incluem-se aqueles com transtorno do espectro autista (TEA), cujo diagnóstico tem crescido bastante nos últimos anos. 

Como resultado, o Brasil tem um número elevadíssimo de crianças e adolescentes ocupando instituições de acolhimento. Dados do CNJ mostram que cerca de 92% das crianças em busca de adoção têm mais de 6 anos de idade, e cerca de 48% do sistema é composto por adolescentes entre 12 e 17 anos. 

Essas estatísticas corroboram a imagem de um Brasil preconceituoso, racista e pouco sensível à causa da adoção, mais especificamente à causa da adoção tardia. A verdade é que faltam campanhas de conscientização, numa tentativa de sensibilizar a sociedade sobre o tema. 

Outra barreira que impede que esse processo funcione é a rejeição dos adotantes quanto a grupos de irmãos. O que costuma ocorrer é a adoção de brasileiros por estrangeiros, muitos deles afeitos a não separar irmãos ou ainda simpáticos às histórias geralmente tristes de crianças e jovens com alguma deficiência. 

Independentemente de raça, gênero, faixa etária ou desenvolvimento cognitivo, a adoção é um ato de amor, de generosidade e desejo. Ensinar à sociedade valores como inclusão, diversidade, igualdade e aceitação do que é diferente precisa ser um exercício diário e não somente debatido entre os agentes que vivenciam essa situação, mas também entre as pessoas que estão no ambiente escolar, as famílias e os entes políticos. Caso contrário, corremos o risco de transformar o ato de adotar em algo frio, mecânico, sem entusiasmo. Por isso, é preciso mudar. É preciso evoluir.

Nenhum comentário: