Valor Econômico
Nos últimos dez anos, os gastos primários trimestrais dos governos subnacionais subiram da média anual de R$ 500 bilhões no período de 2015 a 2021 para R$ 650 bilhões nos três últimos trimestres de 2024
O acompanhamento das contas públicas nacionais tem virado tema rotineiro na pauta de economia dos principais veículos de imprensa. A atenção ao equilíbrio fiscal estrutural é assunto recorrente também nos debates políticos. A cada novo dado divulgado, novas projeções e análises de técnicos especializados são aguardadas ansiosamente para que se tenha um novo norte da solidez fiscal do país. O que se constata é o governo federal contendo gastos, enquanto Estados e municípios aumentam suas despesas. Com isso, apesar de a arrecadação estar crescendo, a fragilidade fiscal não cede. Como veremos adiante, a elevação dos dispêndios dos governos subnacionais é, na verdade, a grande responsável pelo preocupante crescimento da despesa primária pública, com o agravante de trazer grandes problemas também para a gestão fiscal no futuro.
Vamos às evidências. Para começar, tomando
por base o levantamento realizado por meu colega Bráulio Borges, os gastos
primários trimestrais do governo federal nos últimos dez anos (dessazonalizados
e deflacionados pelo deflator do PIB; a base é último trimestre de 2024) têm
girado, em média, em torno de R$ 473 bilhões (extraindo-se do cálculo os dois
trimestres nos quais a pandemia da covid teve seu período mais crítico no ano
de 2020, resultando em gastos extraordinários do governo federal). No dado referente
ao quarto trimestre de 2024, divulgado na última sexta-feira, a despesa
primária incorrida pelo governo federal é de R$ 483 bilhões. Caso se mantenha o
montante nesse patamar, a percepção de descontrole nos gastos primários do
governo central parece por ora descartada.
Ainda em linha com as notícias favoráveis
a um resultado primário fiscal satisfatório, na sexta-feira (28/3) também foi
comunicada a carga tributária brasileira de 2024. O total arrecadado foi de
32,3% do PIB, maior montante já alcançado desde o início da série histórica
iniciada há 15 anos. No caso, houve um acréscimo de 2,06 pontos percentuais do
PIB em relação ao valor atingido em 2023.
Diante da aparente inconsistência na
conduta dos agentes econômicos frente ao “bom” comportamento dos gastos
federais e das receitas públicas, meu colega Manoel Pires colocou sua poderosa
lupa nas contas públicas e detectou o que ele denominou de “descentralização
fiscal silenciosa”. Segundo Pires, ao longo dos últimos anos, uma fatia
crescente do total das receitas públicas vem caindo no caixa dos governos
subnacionais. Na realidade, o aumento da arrecadação dos governos subnacionais
acontece em função de mudanças legislativas que impõem a elevação das
transferências de recursos da União para Estados e municípios - que ocorre via
repasses para o Fundo de Participação dos Estados (FPE), o Fundo de
Participação dos Municípios (FPM) e outros tipos de transferências federais
para governos subnacionais, como royalties e participações especiais (indústria
extrativa-mineral), Fundeb, Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF),
auxílio a Estados e municípios, Lei Kandir e emendas Pix, dinheiro direto para
a conta dos municípios.
Com o aumento da receita, Estados e
municípios passaram a dispor de mais recursos. Por causa disso, segundo
levantamento de Borges, ao longo dos últimos dez anos, os gastos primários
trimestrais (dessazonalizados e deflacionados pelo deflator do PIB; a base é
último trimestre de 2024) dos governos subnacionais apresentaram o seguinte
desempenho: entre 2015 e 2021, ficaram gravitando em torno da média de R$ 500
bilhões por trimestre; a partir daí, começaram a apresentar crescimento
consistente, atingindo nos três últimos trimestres de 2024 o patamar trimestral
de R$ 650 bilhões. Como se vê, tem havido uma apropriação crescente do
Orçamento público por Estados e municípios.
Além do impacto fiscal imediato, a
descentralização fiscal traz novos obstáculos para a estabilização econômica e
a gestão da política fiscal do país. Dentre essas dificuldades, este texto se
concentra em uma política pública especial: os gastos tributários (GTs).
Os GTs são políticas de incentivo fiscal
aplicadas em favor de determinados grupos, sejam setores, empresas ou pessoas,
e realizadas por meio do sistema tributário. No GT, o instrumento é a renúncia
fiscal, e não o gasto público. Nem toda renúncia fiscal ou perda de arrecadação
é considerada GT, já que pode não se tratar de uma política pública visando
beneficiar um grupo específico - isenções nas cobranças de ICMS, que dá
tratamento diferenciado às empresas da região, é exemplo de GT estadual.
Os GTs têm problemas bem conhecidos como
alternativa de política pública no Brasil e no mundo. Um deles é a opacidade,
isto é, a falta de transparência quando comparados com as políticas públicas
convencionais, cujo custo aparece no Orçamento de despesas (sempre muito
detalhado); e na etapa seguinte, têm a visibilidade da execução efetiva do
gasto. No caso do GT, o dinheiro nem sequer entra no Orçamento. Assim, é um
tipo de política pública mais difícil de monitorar e avaliar.
Manoel Pires e Giosvaldo Teixeira Júnior
fizeram um árduo e trabalhoso levantamento do montante dos GTs efetuados pelos
Estados brasileiros, entre 2002 e 2024. A fatia saiu de 1% do PIB em 2002 para
2,4% do PIB em 2024. Pires ressalta, porém, que a elevação dos GTs estaduais
nesse período não é necessariamente crescimento de renúncia fiscal, mas também
melhoria da metodologia de estimação. Ele observa que, no início da série,
vários Estados simplesmente não tinham números e a conta não os incluía. Mesmo
que os percentuais sejam expressivos, tudo leva a crer que esses montantes
representem o limite inferior do real montante dos GTs.
Em suma, a descentralização fiscal é um
tema que deve entrar urgentemente na pauta das Casas Legislativas. As propostas
deveriam contemplar a criação de normas que melhorassem a governança da
política fiscal nesse novo contexto. No caso específico dos GTs, é importante
criar legislações que induzam a maior transparência e motivação para a promoção
dos gastos tributários.
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