terça-feira, 1 de abril de 2025

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

Lei mais dura não bastará para conter roubo de célula

O Globo

É positivo punir receptadores com mais rigor, mas o essencial é a polícia ser eficiente na investigação

No tempo necessário para ler este texto, três celulares terão sido roubados ou furtados no Brasil. É um problema endêmico: 107 aparelhos por hora, quase 1 milhão ao longo de um ano, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Dada a quantidade de informações sensíveis ou vitais que os dispositivos hoje armazenam, é incalculável o prejuízo causado às vítimas — isso quando não acabam mortas ou feridas. Roubos acontecem nos bairros nobres e nas periferias, de dia e à noite, do verão à primavera. Diante desse descalabro, o Ministério da Justiça planeja enviar ao Congresso um Projeto de Lei que aumenta a pena para receptadores de aparelhos. A proposta altera o tempo máximo de prisão de seis para 12 anos, a pena mínima de três anos para quatro anos e facilita os flagrantes.

As mudanças são bem-vindas. O endurecimento das penas sem dúvida pode funcionar como fator de dissuasão para os criminosos. Mas seria uma ilusão acreditar que apenas mudar a lei resolverá o maior incentivo aos roubos: a impunidade. Sem a polícia investigar e prender as redes de receptadores, de nada adiantará a pena mais dura. Para conter os roubos, policiais civis precisam ser equipados, treinados e cobrados, com base em estatísticas confiáveis e públicas. A taxa de solução de crimes no Brasil é vergonhosa. Menos de 10% dos roubos são esclarecidos, segundo pesquisadores do FBSP. Nos Estados Unidos, a polícia é no mínimo três vezes mais eficiente. Por aqui, o problema maior não é a legislação permissiva que atrapalha o trabalho de uma força policial eficiente. Os dados e fatos disponíveis sugerem o contrário.

Por ser bem documentado, o exemplo dos homicídios é ilustrativo. A lei é dura, mas a polícia brasileira esclarece apenas 35% dos crimes, de acordo com a pesquisa Onde Mora a Impunidade?, do Instituto Sou da Paz. Na Europa, o índice é 92%, na Ásia 72%. A média global é 63%. As discrepâncias entre estados brasileiros mostram que a gestão dos governadores faz diferença. Sob a observância das mesmas leis e localizadas em estados de uma mesma região, as polícias civis têm desempenho muito díspares. No Sudeste, a polícia capixaba esclarece 52% dos homicídios, e a fluminense apenas 23%. No Nordeste, a paraibana 42%, e a baiana 15%. É verdade que as áreas mais afetadas pelo crime organizado apresentam maior dificuldade para a resolução de homicídios. Mas esse já é, em si, um indicador da ineficiência policial.

Celulares roubados deixam rastros. Cada um tem um identificador internacional único, um número conhecido como IMEI. Quando os aparelhos roubados são ligados ainda pelos criminosos ou recolocados no mercado, o IMEI pode ser localizado pelas empresas de telefonia. Chegar às revendas ilegais e aos consumidores para depois encontrar os receptadores não é impossível, como demonstra o caso do Piauí, onde uma operação bem-sucedida desarticulou revendas de celulares roubados. Mesmo quando os aparelhos são desmontados para o mercado de peças, a polícia tem condição de encontrar os criminosos se infiltrando no mercado de consertos. Quadrilhas especializadas em contrabandear aparelhos para países sem controle do IMEI também podem ser investigadas. Endurecer a lei é positivo, mas apenas com uma Polícia Civil mais eficiente na hora de investigar, o Brasil será capaz de reverter a calamidade.

Acordo que modifica Conselho da Eletrobras satisfaz a capricho de Lula

O Globo

Governo é incapaz de entender insegurança que causa no mercado ao intervir em empresas privadas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva jamais aceitou a privatização da Eletrobras em 2022. Em 2023, a Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contestando uma regra que limitava a 10% dos assentos a participação de qualquer acionista no Conselho de Administração da empresa. O governo alegava que, como a União detém pouco mais de 40% do capital votante, deveria ter direito a representação maior. Na semana passada, por intermediação do STF, chegou-se a um acordo pelo qual o governo controlará três das dez cadeiras do Conselho de Administração e uma das cinco do Conselho Fiscal.

O acordo é resultado de um capricho estatizante de Lula, que resiste a entender a insegurança que causa nos investidores ao intervir em empresas privadas. Logo depois de assumir, ele tentou sem sucesso nomear o novo CEO da Vale, privatizada em 1997. Queria indicar ao posto o ex-ministro Guido Mantega, agora nomeado para o Conselho Fiscal da Eletrobras. Há, no afã de Lula para tentar controlar ex-estatais, bem mais que o mero interesse em encontrar sinecuras para quadros petistas. Persiste no governo a visão equivocada de que o Estado deve intervir na economia e funcionar como indutor do desenvolvimento, uma nostalgia do tempo em que o governo destinava investimentos de acordo com o “interesse nacional”. Só que empresas como Vale ou Embraer só alcançaram a relevância global que têm depois de privatizadas e dirigidas sem intervenção política.

A Eletrobras poderia ter o mesmo destino, desde que livre de amarras. Na privatização, a União já manteve uma “golden share”, que lhe concede poder de veto em assuntos estratégicos. A ideia era pulverizar o poder dos acionistas, dada a profusão de lobbies e interesses do setor elétrico. O acordo entre União e Eletrobras pode até aliviar a tensão derivada do desejo declarado do governo de desfazer a privatização. Mas as mudanças são desnecessárias e prejudiciais à gestão da empresa.

Ao mesmo tempo, o governo perdeu, ao permitir que a Eletrobras se livrasse do compromisso de investir na usina nuclear Angra 3, caso haja a decisão de concluí-la. O investimento necessário para pôr a usina em funcionamento seria de R$ 23 bilhões — pouco mais que os R$ 21 bilhões que custaria manter a obra parada. Para Lula poder indicar mais conselheiros, o governo retirou esse peso dos ombros da empresa. Ela só manterá garantias de R$ 6,1 bilhões a financiamentos já concedidos a Angra 3 e participará do projeto de extensão da vida útil de Angra 1. Como resultado de o governo assumir Angra 3, parece claro que o país demorará mais a ver a obra pronta — e sabe-se lá a que custo aos cofres públicos.

Privatizações têm a vantagem de reduzir espaço para os governos abrigarem seus aliados nas estatais, além de libertarem a gestão dessas empresas de interferências políticas indevidas, que resultam com frequência em corrupção. Infelizmente, o governo Lula — seja por ideologia, seja por interesse — se mostra incapaz de compreender essa realidade tão evidente.

Trump testa as instituições americanas como nunca antes

Valo Econômico

Não é de hoje que Trump cruza linhas rumo ao autoritarismo, mas o desrespeito às instituições vem ganhando escala a cada semana desde seu retorno ao poder

O presidente Donald Trump elevou, a níveis nunca vistos, os ataques às instituições que tornaram os Estados Unidos a mais antiga democracia do mundo. Está deportando imigrantes com visto legal por suas opiniões, desrespeitando a Primeira Emenda, desobedecendo a juízes federais, perseguindo desafetos e supostos adversários no Ministério Público e órgãos de inteligência, impedindo técnicos de entrarem no país por avaliações discordantes sobre seu governo e, para coroar seus feitos, disse no domingo que tentará um terceiro mandato, o que exigiria uma mudança inédita na Constituição americana a respeito. Ele está a caminho de provocar uma crise institucional e, se sair vencedor em seus embates com a Justiça, ferirá gravemente o sistema de pesos e contrapesos que caracteriza o país por décadas.

Não é de hoje que Trump cruza linhas rumo ao autoritarismo, mas o desrespeito às instituições vem ganhando escala a cada semana desde seu retorno ao poder. Na esfera judicial, o presidente promoveu uma caça às bruxas no Departamento de Justiça, demitindo procuradores e investigadores que o processaram. Escritórios de advocacia ligados aos democratas foram alvos de ordens executivas que limitam contratos com o governo e o acesso a informações confidenciais. Juízes que bloquearam seus decretos presidenciais, muitos deles inconstitucionais, têm sido atacados com virulência - não só por Trump, mas também por seus súditos, como o bilionário Elon Musk.

A pressão sobre as universidades tem deixado apreensivos alunos, professores e pesquisadores, especialmente estrangeiros. Ameaçadas pela Casa Branca de perder financiamento para suas atividades, algumas das principais instituições de ensino superior do país estão se curvando à ofensiva de Trump para suprimir qualquer protesto contra Israel, sob uma fantasiosa alegação de combate ao antissemitismo, e para reverter políticas de diversidade e inclusão. Columbia cedeu e aceitou adotar uma série de reformas após acordo com o governo, para tentar evitar a perda de US$ 400 milhões em recursos federais. Outras universidades estão sendo investigadas e podem sofrer medidas similares. Chegou-se ao absurdo de vetar a entrada nos EUA de pesquisadores que haviam feito críticas ao presidente americano, em um ataque frontal à liberdade de expressão.

Trump se vale da premissa, exclusivamente sua, de que a vitória nas eleições de 2024 lhe concedeu um poder absoluto. A tese do “mandato eleitoral” foi expressa em audiências com o juiz federal James Boasberg, que teve ignorada uma ordem para suspender o uso de uma lei do século XVIII para expulsar, sem o devido processo legal, venezuelanos acusados de pertencerem a um grupo criminoso, enviados às prisões de El Salvador. Na lógica autoritária do republicano, o juiz, cujo impeachment foi pedido por Trump em uma rede social, e todos os outros que tentam impedir suas medidas estariam impedindo-o de atender aos desejos expressos pelos americanos nas urnas.

A gravidade dos ataques provocou rara repreensão pública a um ocupante da Casa Branca por parte do presidente da Suprema Corte. Em carta, John Roberts afirmou que o “impeachment não é uma resposta apropriada para discordâncias sobre uma decisão judicial”. Trump ainda não ousou criticar a instância máxima do Judiciário, mas sua conduta desafiadora tem estimulado uma onda de ameaças a magistrados e joga sombra sobre o futuro do país. Com um Congresso dividido entre republicanos submissos e democratas sem rumo, o Judiciário tem sido a única barreira para a blitzkrieg de decretos com os quais Trump tenta tomar de assalto os poderes em Washington. Entre acadêmicos e juristas nos EUA, a dúvida não é se Trump descumprirá abertamente novas decisões judiciais, mas quando isso ocorrerá.

Sem as amarras que impediram parte de suas ideias mais tresloucadas de avançar no primeiro mandato, Trump agora está seguindo à risca a cartilha do autoritarismo moderno. Como visto em vários outros países que tiveram suas democracias atacadas nos últimos anos, trata-se de deslegitimar e aparelhar instituições que podem ser obstáculos ao governo. A Justiça tem sido o alvo preferencial de Trump, mas sua ofensiva contra o “sistema” e as “elites”, das quais sempre fez parte, vai além. Como prometido na campanha, ele vem usando todos os recursos que têm à disposição em seu gabinete para atacar universidades, instituições científicas, a imprensa ou quem quer que ouse desafiá-lo. O republicano agora já fala em tentar um terceiro mandato, algo vetado pela Constituição.

Trump parece querer governar como um rei. Numa democracia constitucional como os EUA, um presidente não é um soberano incontestável, cuja autoridade está acima de todos e dos demais poderes. Sua visão retrógrada afronta o Estado de Direito e os alicerces que possibilitaram o país se tornar a maior potência econômica e militar do mundo. Se continuar atacando as instituições, como tudo indica, Trump apequenará a América, em vez de torná-la grande de novo.

Maior carga tributária em 15 anos segue gasto em alta

Folha de S. Paulo

Arrecadação nas três esferas chega a 32,3% do PIB; já as despesas retomaram trajetória insustentável e atingiram 37,4%

Está longe de ser surpreendente o recém-divulgado recorde de carga tributária batido no ano passado. Segundo dados do Tesouro Nacional, a arrecadação de União, estados e municípios atingiu o equivalente a 32,3% do Produto Interno Bruto, o maior patamar da série histórica iniciada em 2010.

À primeira vista, a cifra parece menor que outras divulgadas no passado recente. Isso se deve, entretanto, a uma mudança de metodologia: as contribuições para o FGTS e entidades do Sistema S, de cerca de 1,8% do PIB, foram excluídas das estatísticas —elas de fato não se destinam aos cofres do governo, embora não deixem de ser encargos com os quais arcam empresas e trabalhadores.

O aumento substancial da carga ante os 30,3% de 2023 teve o impulso decisivo da política fiscal deliberada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que escolheu buscar o equilíbrio do Orçamento somente com elevação de receita, retomando a alta contínua dos gastos.

Nota-se, de fato, que a coleta de tributos federais avançou 1,5 ponto percentual, para 21,4% do PIB, também o maior nível da série. Nos estados, o aumento foi de 0,4 ponto, para 8,5%, e nos municípios, de 0,1 ponto, para 2,4%.

Nas providências da administração petista para elevar a arrecadação, em geral dependentes de aprovação do Congresso, há a intenção correta de reduzir privilégios concedidos a setores influentes. É ilusório, porém, contar com grande margem para expandir de uma carga que, conforme estudo recente da OCDE, é a maior da América Latina e se aproxima da média dos países ricos.

Os dados do Tesouro também mostram que os gastos públicos, depois de um período de controle iniciado em 2016 com o teto federal inscrito na Constituição, retomaram a insustentável trajetória de alta nos últimos três anos —incluindo o último da gestão Jair Bolsonaro (PL).

Medida com critérios que buscam permitir comparações internacionais, a despesa total do Estado brasileiro atingiu assombrosos 45,7% do PIB no passado, proporção que, mesmo se vier a passar por ajustes metodológicos, destoa inteiramente do padrão emergente e só é superada em poucos países desenvolvidos.

É verdade que parte da anomalia reside nos desembolsos exorbitantes com juros da dívida pública, acima de 8% do PIB em 2024. Mas é verdade também que tal volume se deve à divida e às taxas exacerbadas pelo desequilíbrio orçamentário. Excluindo os encargos financeiros, o gasto de União, estados e municípios saltou de 33,6%, em 2021, para 37,4% do produto no ano passado.

A louvável expansão do Bolsa Família e de programas assemelhados, de 1,2% para 1,7% do PIB, responde por mera fatia do aumento de despesas. A política social, por toda prioridade que receba, se baseada apenas em mais gastos, perderá eficácia enquanto o rombo das contas públicas resultar em inflação e juros que freiam a geração de empregos.

Protestos em Gaza expõem custo do Hamas

Folha de S. Paulo

Moradores vão às ruas contra o grupo terrorista; atos alertam para o erro de confundir a causa palestina com extremismo

Ao longo dos mais de 17 meses de guerra, a Faixa de Gaza tornou-se uma ruína fumegante. Cerca de 90% de suas habitações foram destruídas ou danificadas, obrigando 2,1 milhões de habitantes a seguir uma vida nômade na própria terra. Nas contas usualmente aceitas dos palestinos, mais de 50 mil pessoas morreram.

A única parte sensata da avaliação de Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, para a região é que ela está inabitável, dada a brutalidade da guerra empreendida por Israel após o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023.

O grupo, que comanda Gaza desde 2007, ainda sustenta alguma forma de governo, mas a destruição de sua cadeia de comando o enfraqueceu muito. Isso talvez explique a rara janela que se abriu para o mundo na semana passada, quando centenas de pessoas foram às ruas para protestar contra os terroristas.

É só a terceira vez que ocorrem manifestações, sendo que as anteriores pediam melhoria das condições de vida e fim da corrupção. Desta vez, foi por "abaixo Hamas", associando o grupo à tragédia que se abateu por lá.

"Não é fácil pedir ao povo de Gaza para protestar quando há uma arma apontada para sua cabeça", disse à Folha o ativista Hamza Abu Howidy, que participou das outras duas ondas de manifestações, em 2019 e 2023, pelas quais foi preso e torturado —hoje, está refugiado na Alemanha.

Para ele, os atos mostram uma compreensão crescente do papel do Hamas, que o ativista vê como ente corrupto e violento, ao oprimir seus governados sob o manto da defesa da causa palestina.

Com efeito, pesquisas mostram redução do apoio ao grupo e ao 7 de outubro entre os gazenses.
Os protestos se dão no momento em que Israel rompeu o cessar-fogo vigente devido à resistência do Hamas em libertar os reféns remanescentes em seu poder.

A desproporção e a duração da guerra do premiê Binyamin Netanyahu contribuíram para o discurso de que Israel comete genocídio. O Hamas entende bem isso —e foi recompensado com forte apoio na esquerda da política global, do Palácio do Planalto a universidades americanas.

O que os protestos mostram é o equívoco de confundir a defesa de um Estado palestino com o extremismo do Hamas e de outros grupos usados pelo Irã em sua busca para obliterar o elemento judaico do Oriente Médio.

A barbárie perpetrada pelo Hamas não deveria ser respondida com violência desmedida, mas tampouco pode ser relevada. Desta vez, coube aos moradores de Gaza lembrar o mundo disso.

Para Bolsonaro, somos um país de néscios

O Estado de S. Paulo

O ex-presidente quer que acreditemos que ter consultado chefes militares sobre medidas de exceção para impedir a posse de Lula é algo tão inocente e trivial quanto falar de futebol

O ex-presidente Jair Bolsonaro explicitou, nos últimos dias, qual será sua linha de defesa no processo em que é réu sob acusação de participar de uma trama para dar um golpe de Estado: apostar que todos os brasileiros são néscios.

Bolsonaro quer que acreditemos que ter consultado os chefes militares sobre as medidas de exceção que poderiam ser tomadas para impedir a posse de seu sucessor legitimamente eleito é algo tão inocente e trivial quanto falar do calor ou da última rodada do Brasileirão.

Essa linha de defesa, que pode ser lida como confissão, tornou-se explícita logo depois que o Supremo Tribunal Federal aceitou a denúncia contra Bolsonaro. O raciocínio é singelo: Bolsonaro diz que tudo o que discutiu com os comandantes militares dizia respeito a medidas previstas nas “quatro linhas” da Constituição, o que em sua visão tornaria o complô, ora vejam, constitucionalmente válido.

Bolsonaro diz que apenas discutiu com os militares “alternativas políticas para a Nação” logo depois das eleições, como se houvesse, na Constituição, alguma “alternativa política” à vitória inquestionável do petista Lula da Silva – que Bolsonaro nunca reconheceu de fato.

O ex-presidente deixou claro que discutiu as tais “alternativas” depois que seu partido, o PL, perdeu na Justiça Eleitoral um recurso em que contestava o resultado das eleições por causa de alegadas fraudes nas urnas. Ou seja, se houvesse apoio das Forças Armadas a uma leitura ardilosa da Constituição que avalizasse a manutenção de Bolsonaro no poder à revelia da vontade dos eleitores, essa “alternativa” seria adotada. Não há outro modo de interpretar as declarações do ex-presidente: o nome disso é golpe.

E Bolsonaro tem razão quando declara, em entrevista à Folha de S.Paulo, que um golpe de Estado não se dá de uma hora para outra, leva “anos” – pois de fato foram anos e anos, desde ao menos 2018, de uma campanha infernal do bolsonarismo para desacreditar as urnas eletrônicas e instilar nos eleitores dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral. Foi dessa maneira que os golpistas, Bolsonaro à frente, imaginaram ter criado o clima para a ruptura caso Lula vencesse a eleição: a inquietação social estimulada pelo bolsonarismo para desmoralizar as instituições daria legitimidade à adoção de medidas de exceção – as tais “alternativas políticas” alegadamente previstas na Constituição, isto é, estado de defesa, estado de sítio e intervenção militar.

O estado de defesa, conforme o artigo 136 da Constituição, pode ser decretado pelo presidente para “preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional”, restringindo-se direitos e dando o poder de prender acusados de “crimes contra o Estado”. O estado de sítio, por sua vez, é estabelecido quando o estado de defesa não é suficiente para impor a ordem ou quando há “comoção grave de repercussão nacional”. Ora, nada naquela época, nem mesmo a bagunça promovida pelos bolsonaristas diante dos quartéis, sugeria qualquer comoção que justificasse medidas tão extremas.

Já o artigo 142 da Constituição, também frequentemente citado por Bolsonaro, é aquele que os bolsonaristas vivem a invocar para justificar uma intervenção militar, em nome da suposta necessidade de restabelecer “a lei e a ordem”. Essa intervenção, segundo a interpretação golpista, deveria ser decidida pelo presidente da República para “assegurar a garantia dos Poderes constitucionais”, como se as Forças Armadas fossem um “poder moderador”. É desse modo que os saudosos da ditadura militar interpretam o artigo 142.

Assim, sem bases factuais para enfrentar as gravíssimas imputações da Procuradoria-Geral da República, a Bolsonaro parece não restar opções a não ser se dizer “perseguido político”, sustentar mentirosamente que o Brasil estaria sob uma “ditadura do Judiciário” e, por fim, banalizar os ardis que tramou para se aferrar ao poder.

A Bolsonaro deve ser assegurado o direito à ampla defesa, pilar do mesmo Estado de Direito que ele sempre renegou. Mas se sua defesa não é outra coisa senão uma cândida confissão, o trabalho do procurador-geral, Paulo Gonet, será bem mais fácil do que ele poderia imaginar.

A dimensão do ‘cangaço digital’

O Estado de S. Paulo

Febraban revelou que fraudes bancárias digitais, com cartões e com Pix somaram R$ 12,8 bilhões em 2024; reduzir tal prejuízo exige maior integração entre entes públicos e privados

Que o crime organizado se imiscui nas mais diversas atividades econômicas para cometer ilícitos, como desfalques ou lavagem de dinheiro, por exemplo, não é segredo para ninguém. Relatório recente da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), porém, dimensiona o tamanho do prejuízo que o avanço do crime sobre o sistema financeiro vem causando.

De acordo com a Febraban, fraudes bancárias digitais e golpes com cartões totalizaram R$ 10,1 bilhões no Brasil no ano passado, 17% a mais do que em 2023. Já golpes envolvendo o Pix aumentaram 43% em 2024, totalizando R$ 2,7 bilhões, o que coloca o montante de fraudes eletrônicas (meios digitais, cartões e Pix) em 2024 em R$ 12,8 bilhões.

Para efeito de comparação, a Caixa Econômica Federal (CEF) encerrou o ano passado com lucro líquido de R$ 14 bilhões, ou seja, os bandidos movimentaram de forma fraudulenta, no ano passado, um volume próximo ao lucro de um dos principais bancos do País.

Chamada de “cangaço digital”, essa investida do crime sobre o universo financeiro é “irreversível”, na avaliação do diretor-geral da Polícia Federal (PF), Andrei Rodrigues. Por isso, a PF mudou sua abordagem e, em vez de promover investigações focadas em ocorrências individuais, passou a buscar a origem das fraudes numa tentativa de cortar o mal pela raiz.

“Não adianta ter um volume imenso de operações e investigações se ao fim o resultado é insignificante”, afirmou o diretor-geral da PF, no que tem razão. É alvissareiro, portanto, que a PF tenha determinado três eixos de atuação contra fraudes digitais: integração entre os setores público e privado, descapitalização das organizações criminosas e cooperação internacional.

Na primeira frente, a de integração, pode-se dizer que há avanços. Desde 2017, PF e Febraban trocam informações com vistas a facilitar investigações. Mais recentemente, o Ministério da Justiça e a Febraban fecharam uma parceria chamada Aliança Nacional de Combate a Fraudes Bancárias e Digitais.

Nos outros eixos, porém, resta muito a fazer. O secretário nacional de Segurança Pública, Mario Sarrubbo, defende, por exemplo, que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) seja reestruturado.

De acordo com ele, um Coaf fortalecido, trabalhando em conjunto com o sistema financeiro, ajudaria a separar o “joio do trigo”. O Ministério Público de São Paulo, por exemplo, já identificou a existência de fintechs de fachada, instituições financeiras que na verdade atuavam a soldo do Primeiro Comando da Capital (PCC).

Infelizmente, embora a proposta de Sarrubbo faça todo o sentido, não se vê nenhuma celeridade da parte do poder público para que uma identificação mais ágil de movimentações suspeitas ocorra. Propostas adequadas e racionais para o combate à criminalidade não faltam, mas, infelizmente, enquanto elas não saem do campo das ideias, a bandidagem se sofistica e se especializa ainda mais.

Do ponto de vista internacional, também não faltam evidências de cooperação cada vez maior entre bandos criminosos locais e internacionais. Antenados, os criminosos globais se integram sob a lógica de cadeias de fornecimento, racionalizando custos, dificultando o trabalho das polícias e reduzindo a própria exposição.

Mas, enquanto o crime desconhece fronteiras, as polícias seguem, de um modo geral, trabalhando de forma muito localizada, se não basicamente provinciana.

Ainda no campo das propostas, o presidente da Febraban, Issac Sidney, defendeu punições administrativas para indivíduos que alugam seus CPFs, os famosos laranjas, para que terceiros movimentem recursos de modo ilegal.

Como se vê, não faltam nem ideias nem personagens comprometidos com o combate ao “cangaço digital”. Urge, então, que elas sejam implementadas e que os mecanismos de combate ao crime, que nunca dorme, sejam constantemente aprimorados e postos em prática.

Do contrário, ideias seguirão sendo apenas ideias, por melhores que sejam. E mesmo operações contundentes, como a Hydra, recentemente deflagrada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e pela PF, serão só uma gota no oceano da criminalidade.

Promessa descumprida

O Estado de S. Paulo

Governo deve mais uma vez ocultar dados de alfabetização da principal avaliação do País

Pelo segundo ano consecutivo, o Brasil corre o risco de não ter acesso a dados de alfabetização no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), principal avaliação usada para mensurar a qualidade da nossa educação básica. É uma lacuna grave para um governo que anunciou, com pompa e circunstância, que alfabetizar crianças é uma prioridade nacional.

Um ofício do Inep, órgão do Ministério da Educação (MEC) responsável pelas avaliações, indica que, neste ano, publicará somente os microdados referentes aos exames do 5.º e 9.º anos do ensino fundamental, e também do 3.º ano do ensino médio de Português e Matemática, ocultando os resultados das provas aplicadas para alunos do 2.º ano do fundamental, que avaliam níveis de alfabetização. O ofício, assinado pelo presidente do Inep, Manuel Palácios, e endereçado à diretora de Avaliação da Educação Básica do órgão, Hilda Aparecida Linhares da Silva, foi divulgado pelo jornal Folha de S.Paulo.

Até aqui o MEC não desmentiu nem o ofício nem a recomendação do Inep. Entre os técnicos há o argumento de que existem diferenças entre os resultados do Saeb e o indicador “Criança Alfabetizada”, criado pelo atual governo. Em maio, quando o novo indicador foi divulgado, o MEC e o presidente Lula da Silva celebraram o fato de que o Brasil atingiu, no ano passado, a marca de 56% de crianças alfabetizadas na idade adequada, recuperando o desempenho anterior à pandemia de covid-19, meta estabelecida pelo ministério por meio do Programa Compromisso Nacional Criança Alfabetizada. O novo indicador mostrou um resultado 20 pontos porcentuais maior do que o desempenho exibido no Saeb de 2021, e 1 ponto porcentual acima da avaliação de 2019.

Embora não haja qualquer razão para acreditar que a gestão do ministro Camilo Santana tenha decidido esconder resultados de uma avaliação já aplicada por algum motivo pouco republicano, não é bom sinal o recuo na promessa de divulgá-los. O compromisso foi anunciado também no ano passado, quando o MEC resolveu fatiar o anúncio do Saeb. À época, o ministério tornou conhecido o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2023, indicador composto pelo desempenho dos alunos no Saeb e pelas taxas de aprovação escolar. Antes disso, o governo mostrou o novo indicador de alfabetização, a partir de avaliações feitas em 2023 pelas redes estaduais. O próprio ministro sublinhou então que eram metodologias distintas.

De fato são, mas nenhuma diferença, seja de resultado, seja de método, justifica a ocultação de dados específicos que se mostram úteis para mapear a alfabetização das crianças. Embora não seja calculado o Ideb para o 2.º ano do ensino fundamental, alunos dessa série fazem a prova do Saeb e seus resultados refletem a alfabetização das crianças com cerca de sete anos de idade. Não há razão para ocultar qualquer dado, mesmo à guisa de aperfeiçoamento ou ajuste na qualificação das análises. Sobretudo quando mostra o nível de aprendizado dos alunos em Português e Matemática numa etapa especialmente importante da jornada de sua formação.

Gerações ameaçadas pelo machismo

Correio Braziliense

Há gerações de jovens crescendo no Brasil convencidas de que os homens são superiores às mulheres e presenciando esses valores sendo colocados em prática

Entre março de 2015 e fevereiro deste ano, ocorreram 215 feminicídios no Distrito Federal. No último fim de semana, em menos de 72 horas, mais dois casos foram registrados. Em um deles, os filhos da vítima testemunharam o pai executar a mãe na madrugada de segunda, no Recanto das Emas. Hoje, a capital da República abriga 409 órfãos desse crime — 268 são menores de idade e 141 têm mais de 18 anos —, segundo o balanço mais recente da Secretaria de Segurança Pública.

Essa perversa realidade não é restrita ao Distrito Federal. Em todo o país, 92% dos atos de violência contra mulher têm testemunhas. Nos últimos 12 meses, 21,4 milhões de mulheres foram agredidas das mais diferentes formas, de acordo com o  Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sem qualquer tipo de constrangimento. Amigos ou conhecidos presenciaram 47,3% dos casos de agressões; filhos, 27%; outros parentes, 12,4%.

A violência testemunhada pelos filhos da vítima (crianças ou adolescentes) eleva a gravidade do fato. Os danos emocionais em jovens que presenciam as cenas de violência exigem uma forte rede de apoio. Além dos impactos individuais, dos emocionais aos socioeconômicos, há o risco de uma normalização coletiva das práticas de violência. "A criança ou o adolescente que assiste à morte da mãe pelo pai precisa desse cuidado para que não se torne um jovem misógino, homicida, feminicida ou entregue-se a uma depressão severa", alerta a psicóloga Kleytiane da Silva de Oliveira.

A possibilidade de repetição e, consequentemente, perpetuação das práticas de violência de gênero se torna ainda mais desafiante em um momento de aumento de crimes do tipo. Diante da escalada dos casos, em outubro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 14.717, que estabelece  pensão para os órfãos do feminicídio. A medida vale para menores de idade que vivem em famílias com renda mensal per capita de 25% do salário mínimo. É bem-vinda,  mas não suficiente, considerando que os desdobramentos de um feminicídio não são apenas financeiros.

Da mesma forma, benefícios sociais, medidas protetivas e aumento da pena para os feminicidas são necessários, mas não transformam o comportamento dos homens. "Os homens criaram uma estrutura em que crescem com uma relação de poder e de desmerecimento do gênero feminino", diz a advogada Andreia Lima Aires, especialista em violência doméstica intrafamiliar e ex-presidente da Comissão de Violência Doméstica da OAB-DF, em entrevista ao CB Poder. Para ela, esse comportamento, presenciado, em muitos casos, desde a infância, "resulta de uma situação histórica do patriarcado e "até mesmo da objetificação da mulher".

As providências do poder público têm sido insuficientes para conter a ira dos machistas. As políticas públicas também não são capazes de impedir os assassinatos de mulheres, uma vez que os crimes ocorrem, em sua maioria, na casa da vítima. Iniciativas para conter o ímpeto agressivo dos homens não têm êxitos expressivos. Essa  frustração poderá ser permanente enquanto não houver uma educação que elimine a falsa concepção de que os homens são superiores às mulheres. Há gerações de jovens crescendo no Brasil convencidas desses valores, os presenciando e os colocando em prática. O combate à violência de gênero não pode fechar os olhos para isso. 

Nenhum comentário: