Lei mais dura não bastará para conter
roubo de célula
O Globo
É positivo punir receptadores com mais rigor, mas o essencial é a polícia ser eficiente na investigação
No tempo necessário para ler este texto,
três celulares terão sido roubados ou furtados no Brasil. É um problema
endêmico: 107 aparelhos por hora, quase 1 milhão ao longo de um ano, segundo
dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Dada a quantidade de
informações sensíveis ou vitais que os dispositivos hoje armazenam, é
incalculável o prejuízo causado às vítimas — isso quando não acabam mortas ou
feridas. Roubos acontecem nos bairros nobres e nas periferias, de dia e à
noite, do verão à primavera. Diante desse descalabro, o Ministério da Justiça
planeja enviar ao Congresso um Projeto de Lei que aumenta a pena para
receptadores de aparelhos. A proposta altera o tempo máximo de prisão de seis
para 12 anos, a pena mínima de três anos para quatro anos e facilita os
flagrantes.
As mudanças são bem-vindas. O endurecimento das penas sem dúvida pode funcionar como fator de dissuasão para os criminosos. Mas seria uma ilusão acreditar que apenas mudar a lei resolverá o maior incentivo aos roubos: a impunidade. Sem a polícia investigar e prender as redes de receptadores, de nada adiantará a pena mais dura. Para conter os roubos, policiais civis precisam ser equipados, treinados e cobrados, com base em estatísticas confiáveis e públicas. A taxa de solução de crimes no Brasil é vergonhosa. Menos de 10% dos roubos são esclarecidos, segundo pesquisadores do FBSP. Nos Estados Unidos, a polícia é no mínimo três vezes mais eficiente. Por aqui, o problema maior não é a legislação permissiva que atrapalha o trabalho de uma força policial eficiente. Os dados e fatos disponíveis sugerem o contrário.
Por ser bem documentado, o exemplo dos
homicídios é ilustrativo. A lei é dura, mas a polícia brasileira esclarece
apenas 35% dos crimes, de acordo com a pesquisa Onde Mora a Impunidade?, do
Instituto Sou da Paz. Na Europa, o índice é 92%, na Ásia 72%. A média global é
63%. As discrepâncias entre estados brasileiros mostram que a gestão dos
governadores faz diferença. Sob a observância das mesmas leis e localizadas em
estados de uma mesma região, as polícias civis têm desempenho muito díspares.
No Sudeste, a polícia capixaba esclarece 52% dos homicídios, e a fluminense
apenas 23%. No Nordeste, a paraibana 42%, e a baiana 15%. É verdade que as
áreas mais afetadas pelo crime organizado apresentam maior dificuldade para a
resolução de homicídios. Mas esse já é, em si, um indicador da ineficiência
policial.
Celulares roubados deixam rastros. Cada um
tem um identificador internacional único, um número conhecido como IMEI. Quando
os aparelhos roubados são ligados ainda pelos criminosos ou recolocados no
mercado, o IMEI pode ser localizado pelas empresas de telefonia. Chegar às
revendas ilegais e aos consumidores para depois encontrar os receptadores não é
impossível, como demonstra o caso do Piauí, onde uma operação bem-sucedida
desarticulou revendas de celulares roubados. Mesmo quando os aparelhos são
desmontados para o mercado de peças, a polícia tem condição de encontrar os
criminosos se infiltrando no mercado de consertos. Quadrilhas especializadas em
contrabandear aparelhos para países sem controle do IMEI também podem ser
investigadas. Endurecer a lei é positivo, mas apenas com uma Polícia Civil mais
eficiente na hora de investigar, o Brasil será capaz de reverter a calamidade.
Acordo que modifica Conselho da Eletrobras
satisfaz a capricho de Lula
O Globo
Governo é incapaz de entender insegurança
que causa no mercado ao intervir em empresas privadas
O presidente Luiz
Inácio Lula da
Silva jamais aceitou a privatização da Eletrobras em
2022. Em 2023, a Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com ação no Supremo
Tribunal Federal (STF) contestando uma regra que limitava a 10% dos assentos a
participação de qualquer acionista no Conselho de Administração da empresa. O
governo alegava que, como a União detém pouco mais de 40% do capital votante,
deveria ter direito a representação maior. Na semana passada, por intermediação
do STF, chegou-se a um acordo pelo qual o governo controlará três das dez
cadeiras do Conselho de Administração e uma das cinco do Conselho Fiscal.
O acordo é resultado de um capricho
estatizante de Lula, que resiste a entender a insegurança que causa nos
investidores ao intervir em empresas privadas. Logo depois de assumir, ele
tentou sem sucesso nomear o novo CEO da Vale, privatizada em 1997. Queria
indicar ao posto o ex-ministro Guido Mantega, agora nomeado para o Conselho
Fiscal da Eletrobras. Há, no afã de Lula para tentar controlar ex-estatais, bem
mais que o mero interesse em encontrar sinecuras para quadros petistas.
Persiste no governo a visão equivocada de que o Estado deve intervir na
economia e funcionar como indutor do desenvolvimento, uma nostalgia do tempo em
que o governo destinava investimentos de acordo com o “interesse nacional”. Só
que empresas como Vale ou Embraer só alcançaram a relevância global que têm
depois de privatizadas e dirigidas sem intervenção política.
A Eletrobras poderia ter o mesmo destino,
desde que livre de amarras. Na privatização, a União já manteve uma “golden
share”, que lhe concede poder de veto em assuntos estratégicos. A ideia era
pulverizar o poder dos acionistas, dada a profusão de lobbies e interesses do
setor elétrico. O acordo entre União e Eletrobras pode até aliviar a tensão
derivada do desejo declarado do governo de desfazer a privatização. Mas as
mudanças são desnecessárias e prejudiciais à gestão da empresa.
Ao mesmo tempo, o governo perdeu, ao
permitir que a Eletrobras se livrasse do compromisso de investir na usina
nuclear Angra 3, caso haja a decisão de concluí-la. O investimento necessário
para pôr a usina em funcionamento seria de R$ 23 bilhões — pouco mais que os R$
21 bilhões que custaria manter a obra parada. Para Lula poder indicar mais
conselheiros, o governo retirou esse peso dos ombros da empresa. Ela só manterá
garantias de R$ 6,1 bilhões a financiamentos já concedidos a Angra 3 e
participará do projeto de extensão da vida útil de Angra 1. Como resultado de o
governo assumir Angra 3, parece claro que o país demorará mais a ver a obra
pronta — e sabe-se lá a que custo aos cofres públicos.
Privatizações têm a vantagem de reduzir espaço para os governos abrigarem seus aliados nas estatais, além de libertarem a gestão dessas empresas de interferências políticas indevidas, que resultam com frequência em corrupção. Infelizmente, o governo Lula — seja por ideologia, seja por interesse — se mostra incapaz de compreender essa realidade tão evidente.
Trump testa as instituições americanas como nunca antes
Valo Econômico
Não é de hoje que Trump cruza linhas rumo
ao autoritarismo, mas o desrespeito às instituições vem ganhando escala a cada
semana desde seu retorno ao poder
O presidente Donald Trump elevou, a níveis
nunca vistos, os ataques às instituições que tornaram os Estados Unidos a mais
antiga democracia do mundo. Está deportando imigrantes com visto legal por suas
opiniões, desrespeitando a Primeira Emenda, desobedecendo a juízes federais,
perseguindo desafetos e supostos adversários no Ministério Público e órgãos de
inteligência, impedindo técnicos de entrarem no país por avaliações
discordantes sobre seu governo e, para coroar seus feitos, disse no domingo que
tentará um terceiro mandato, o que exigiria uma mudança inédita na Constituição
americana a respeito. Ele está a caminho de provocar uma crise institucional e,
se sair vencedor em seus embates com a Justiça, ferirá gravemente o sistema de
pesos e contrapesos que caracteriza o país por décadas.
Não é de hoje que Trump cruza linhas rumo
ao autoritarismo, mas o desrespeito às instituições vem ganhando escala a cada
semana desde seu retorno ao poder. Na esfera judicial, o presidente promoveu
uma caça às bruxas no Departamento de Justiça, demitindo procuradores e
investigadores que o processaram. Escritórios de advocacia ligados aos
democratas foram alvos de ordens executivas que limitam contratos com o governo
e o acesso a informações confidenciais. Juízes que bloquearam seus decretos
presidenciais, muitos deles inconstitucionais, têm sido atacados com virulência
- não só por Trump, mas também por seus súditos, como o bilionário Elon Musk.
A pressão sobre as universidades tem
deixado apreensivos alunos, professores e pesquisadores, especialmente
estrangeiros. Ameaçadas pela Casa Branca de perder financiamento para suas
atividades, algumas das principais instituições de ensino superior do país
estão se curvando à ofensiva de Trump para suprimir qualquer protesto contra
Israel, sob uma fantasiosa alegação de combate ao antissemitismo, e para
reverter políticas de diversidade e inclusão. Columbia cedeu e aceitou adotar
uma série de reformas após acordo com o governo, para tentar evitar a perda de
US$ 400 milhões em recursos federais. Outras universidades estão sendo
investigadas e podem sofrer medidas similares. Chegou-se ao absurdo de vetar a
entrada nos EUA de pesquisadores que haviam feito críticas ao presidente
americano, em um ataque frontal à liberdade de expressão.
Trump se vale da premissa, exclusivamente
sua, de que a vitória nas eleições de 2024 lhe concedeu um poder absoluto. A
tese do “mandato eleitoral” foi expressa em audiências com o juiz federal James
Boasberg, que teve ignorada uma ordem para suspender o uso de uma lei do século
XVIII para expulsar, sem o devido processo legal, venezuelanos acusados de
pertencerem a um grupo criminoso, enviados às prisões de El Salvador. Na lógica
autoritária do republicano, o juiz, cujo impeachment foi pedido por Trump em uma
rede social, e todos os outros que tentam impedir suas medidas estariam
impedindo-o de atender aos desejos expressos pelos americanos nas urnas.
A gravidade dos ataques provocou rara
repreensão pública a um ocupante da Casa Branca por parte do presidente da
Suprema Corte. Em carta, John Roberts afirmou que o “impeachment não é uma
resposta apropriada para discordâncias sobre uma decisão judicial”. Trump ainda
não ousou criticar a instância máxima do Judiciário, mas sua conduta
desafiadora tem estimulado uma onda de ameaças a magistrados e joga sombra
sobre o futuro do país. Com um Congresso dividido entre republicanos submissos
e democratas sem rumo, o Judiciário tem sido a única barreira para a blitzkrieg
de decretos com os quais Trump tenta tomar de assalto os poderes em Washington.
Entre acadêmicos e juristas nos EUA, a dúvida não é se Trump descumprirá
abertamente novas decisões judiciais, mas quando isso ocorrerá.
Sem as amarras que impediram parte de suas
ideias mais tresloucadas de avançar no primeiro mandato, Trump agora está
seguindo à risca a cartilha do autoritarismo moderno. Como visto em vários
outros países que tiveram suas democracias atacadas nos últimos anos, trata-se
de deslegitimar e aparelhar instituições que podem ser obstáculos ao governo. A
Justiça tem sido o alvo preferencial de Trump, mas sua ofensiva contra o
“sistema” e as “elites”, das quais sempre fez parte, vai além. Como prometido
na campanha, ele vem usando todos os recursos que têm à disposição em seu
gabinete para atacar universidades, instituições científicas, a imprensa ou
quem quer que ouse desafiá-lo. O republicano agora já fala em tentar um
terceiro mandato, algo vetado pela Constituição.
Trump parece querer governar como um rei. Numa democracia constitucional como os EUA, um presidente não é um soberano incontestável, cuja autoridade está acima de todos e dos demais poderes. Sua visão retrógrada afronta o Estado de Direito e os alicerces que possibilitaram o país se tornar a maior potência econômica e militar do mundo. Se continuar atacando as instituições, como tudo indica, Trump apequenará a América, em vez de torná-la grande de novo.
Maior carga tributária em 15 anos segue
gasto em alta
Folha de S. Paulo
Arrecadação nas três esferas chega a 32,3%
do PIB; já as despesas retomaram trajetória insustentável e atingiram 37,4%
Está longe de ser surpreendente o
recém-divulgado recorde de carga tributária batido no ano passado. Segundo
dados do Tesouro Nacional, a arrecadação de União, estados e municípios
atingiu o
equivalente a 32,3% do Produto Interno Bruto, o maior patamar da série
histórica iniciada em 2010.
À primeira vista, a cifra parece menor que
outras divulgadas no passado recente. Isso se deve, entretanto, a uma mudança
de metodologia: as contribuições para o FGTS e
entidades do Sistema S, de cerca de 1,8% do PIB, foram
excluídas das estatísticas —elas de fato não se destinam aos cofres do governo,
embora não deixem de ser encargos com os quais arcam empresas e trabalhadores.
O aumento substancial da carga ante os
30,3% de 2023 teve o impulso decisivo da política fiscal deliberada pelo
governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), que
escolheu buscar o equilíbrio do Orçamento somente
com elevação de receita, retomando a alta contínua dos gastos.
Nota-se, de fato, que a coleta de tributos
federais avançou 1,5 ponto percentual, para 21,4% do PIB, também o maior nível
da série. Nos estados, o aumento foi de 0,4 ponto, para 8,5%, e nos municípios,
de 0,1 ponto, para 2,4%.
Nas providências da administração petista
para elevar a arrecadação, em geral dependentes de aprovação do Congresso, há a
intenção correta de reduzir privilégios concedidos a setores influentes. É
ilusório, porém, contar com grande margem para expandir de uma carga que, conforme
estudo recente da OCDE, é a maior da América Latina e se aproxima da
média dos países ricos.
Os dados do Tesouro também mostram que os
gastos públicos, depois de um período de controle iniciado em 2016 com o teto
federal inscrito na Constituição,
retomaram a insustentável trajetória de alta nos últimos três anos —incluindo o
último da gestão Jair Bolsonaro (PL).
Medida com critérios que buscam permitir
comparações internacionais, a despesa total do Estado brasileiro atingiu
assombrosos 45,7% do PIB no passado, proporção que, mesmo se vier a passar por
ajustes metodológicos, destoa inteiramente do padrão emergente e só é superada
em poucos países desenvolvidos.
É verdade que parte da anomalia reside nos
desembolsos exorbitantes com juros da
dívida pública, acima de 8% do PIB em 2024. Mas é verdade também que tal volume
se deve à divida e às taxas exacerbadas pelo desequilíbrio orçamentário.
Excluindo os encargos financeiros, o gasto de União, estados e municípios
saltou de 33,6%, em 2021, para 37,4% do produto no ano passado.
A louvável expansão do Bolsa Família e
de programas assemelhados, de 1,2% para 1,7% do PIB, responde por mera fatia do
aumento de despesas. A política social, por toda prioridade que receba, se
baseada apenas em mais gastos, perderá eficácia enquanto o rombo das contas
públicas resultar em inflação e
juros que freiam a geração de empregos.
Protestos em Gaza expõem custo do Hamas
Folha de S. Paulo
Moradores vão às ruas contra o grupo
terrorista; atos alertam para o erro de confundir a causa palestina com
extremismo
Ao longo dos mais de 17 meses de guerra,
a Faixa
de Gaza tornou-se uma ruína fumegante. Cerca de 90% de suas habitações
foram destruídas ou danificadas, obrigando 2,1 milhões de habitantes a seguir
uma vida nômade na própria terra. Nas contas usualmente aceitas dos palestinos,
mais de 50 mil pessoas morreram.
A única parte sensata da avaliação
de Donald
Trump, presidente dos Estados
Unidos, para a região é que ela está inabitável, dada a brutalidade da
guerra empreendida por Israel após
o ataque do Hamas em
7 de outubro de 2023.
O grupo, que comanda Gaza desde 2007,
ainda sustenta alguma forma de governo, mas a destruição de sua cadeia de
comando o enfraqueceu muito. Isso talvez explique a rara janela que se abriu
para o mundo na semana passada, quando centenas de pessoas foram às ruas para
protestar contra os terroristas.
É só a terceira vez que ocorrem
manifestações, sendo que as anteriores pediam melhoria das condições de vida e
fim da corrupção. Desta
vez, foi por "abaixo Hamas", associando o grupo à tragédia que se
abateu por lá.
"Não é fácil pedir ao povo de Gaza
para protestar quando há uma arma apontada para sua cabeça", disse
à Folha o ativista Hamza Abu Howidy, que participou das outras
duas ondas de manifestações, em 2019 e 2023, pelas quais foi preso e torturado
—hoje, está refugiado na Alemanha.
Para ele, os atos mostram uma compreensão
crescente do papel do Hamas, que o ativista vê como ente corrupto e violento,
ao oprimir seus governados sob o manto da defesa da causa palestina.
Com efeito, pesquisas mostram redução do
apoio ao grupo e ao 7 de outubro entre os gazenses.
Os protestos se dão no momento em que Israel rompeu o cessar-fogo vigente
devido à resistência do Hamas em libertar os reféns remanescentes em seu poder.
A
desproporção e a duração da guerra do premiê Binyamin
Netanyahu contribuíram para o discurso de que Israel comete genocídio.
O Hamas entende bem isso —e foi recompensado com forte apoio na esquerda da
política global, do Palácio do Planalto a universidades americanas.
O que os protestos mostram é o equívoco de
confundir a defesa de um Estado palestino com o extremismo do Hamas e de outros
grupos usados pelo Irã em sua busca para obliterar o elemento judaico do Oriente Médio.
A barbárie perpetrada pelo Hamas não
deveria ser respondida com violência desmedida, mas tampouco pode ser relevada.
Desta vez, coube aos moradores de Gaza lembrar o mundo disso.
Para Bolsonaro, somos um país de néscios
O Estado de S. Paulo
O ex-presidente quer que acreditemos que
ter consultado chefes militares sobre medidas de exceção para impedir a posse
de Lula é algo tão inocente e trivial quanto falar de futebol
O ex-presidente Jair Bolsonaro explicitou,
nos últimos dias, qual será sua linha de defesa no processo em que é réu sob
acusação de participar de uma trama para dar um golpe de Estado: apostar que
todos os brasileiros são néscios.
Bolsonaro quer que acreditemos que ter
consultado os chefes militares sobre as medidas de exceção que poderiam ser
tomadas para impedir a posse de seu sucessor legitimamente eleito é algo tão
inocente e trivial quanto falar do calor ou da última rodada do Brasileirão.
Essa linha de defesa, que pode ser lida
como confissão, tornou-se explícita logo depois que o Supremo Tribunal Federal
aceitou a denúncia contra Bolsonaro. O raciocínio é singelo: Bolsonaro diz que
tudo o que discutiu com os comandantes militares dizia respeito a medidas
previstas nas “quatro linhas” da Constituição, o que em sua visão tornaria o
complô, ora vejam, constitucionalmente válido.
Bolsonaro diz que apenas discutiu com os
militares “alternativas políticas para a Nação” logo depois das eleições, como
se houvesse, na Constituição, alguma “alternativa política” à vitória
inquestionável do petista Lula da Silva – que Bolsonaro nunca reconheceu de
fato.
O ex-presidente deixou claro que discutiu
as tais “alternativas” depois que seu partido, o PL, perdeu na Justiça
Eleitoral um recurso em que contestava o resultado das eleições por causa de
alegadas fraudes nas urnas. Ou seja, se houvesse apoio das Forças Armadas a uma
leitura ardilosa da Constituição que avalizasse a manutenção de Bolsonaro no
poder à revelia da vontade dos eleitores, essa “alternativa” seria adotada. Não
há outro modo de interpretar as declarações do ex-presidente: o nome disso é
golpe.
E Bolsonaro tem razão quando declara, em
entrevista à Folha de S.Paulo, que um golpe de Estado não se dá de uma
hora para outra, leva “anos” – pois de fato foram anos e anos, desde ao menos
2018, de uma campanha infernal do bolsonarismo para desacreditar as urnas
eletrônicas e instilar nos eleitores dúvidas sobre a lisura do processo
eleitoral. Foi dessa maneira que os golpistas, Bolsonaro à frente, imaginaram
ter criado o clima para a ruptura caso Lula vencesse a eleição: a inquietação
social estimulada pelo bolsonarismo para desmoralizar as instituições daria
legitimidade à adoção de medidas de exceção – as tais “alternativas políticas”
alegadamente previstas na Constituição, isto é, estado de defesa, estado de
sítio e intervenção militar.
O estado de defesa, conforme o artigo 136
da Constituição, pode ser decretado pelo presidente para “preservar ou
prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública
ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional”,
restringindo-se direitos e dando o poder de prender acusados de “crimes contra
o Estado”. O estado de sítio, por sua vez, é estabelecido quando o estado de
defesa não é suficiente para impor a ordem ou quando há “comoção grave de
repercussão nacional”. Ora, nada naquela época, nem mesmo a bagunça promovida
pelos bolsonaristas diante dos quartéis, sugeria qualquer comoção que
justificasse medidas tão extremas.
Já o artigo 142 da Constituição, também
frequentemente citado por Bolsonaro, é aquele que os bolsonaristas vivem a
invocar para justificar uma intervenção militar, em nome da suposta necessidade
de restabelecer “a lei e a ordem”. Essa intervenção, segundo a interpretação
golpista, deveria ser decidida pelo presidente da República para “assegurar a
garantia dos Poderes constitucionais”, como se as Forças Armadas fossem um
“poder moderador”. É desse modo que os saudosos da ditadura militar interpretam
o artigo 142.
Assim, sem bases factuais para enfrentar
as gravíssimas imputações da Procuradoria-Geral da República, a Bolsonaro
parece não restar opções a não ser se dizer “perseguido político”, sustentar
mentirosamente que o Brasil estaria sob uma “ditadura do Judiciário” e, por
fim, banalizar os ardis que tramou para se aferrar ao poder.
A Bolsonaro deve ser assegurado o direito
à ampla defesa, pilar do mesmo Estado de Direito que ele sempre renegou. Mas se
sua defesa não é outra coisa senão uma cândida confissão, o trabalho do
procurador-geral, Paulo Gonet, será bem mais fácil do que ele poderia imaginar.
A dimensão do ‘cangaço digital’
O Estado de S. Paulo
Febraban revelou que fraudes bancárias
digitais, com cartões e com Pix somaram R$ 12,8 bilhões em 2024; reduzir tal
prejuízo exige maior integração entre entes públicos e privados
Que o crime organizado se imiscui nas mais
diversas atividades econômicas para cometer ilícitos, como desfalques ou
lavagem de dinheiro, por exemplo, não é segredo para ninguém. Relatório recente
da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), porém, dimensiona o tamanho do
prejuízo que o avanço do crime sobre o sistema financeiro vem causando.
De acordo com a Febraban, fraudes
bancárias digitais e golpes com cartões totalizaram R$ 10,1 bilhões no Brasil
no ano passado, 17% a mais do que em 2023. Já golpes envolvendo o Pix
aumentaram 43% em 2024, totalizando R$ 2,7 bilhões, o que coloca o montante de
fraudes eletrônicas (meios digitais, cartões e Pix) em 2024 em R$ 12,8 bilhões.
Para efeito de comparação, a Caixa
Econômica Federal (CEF) encerrou o ano passado com lucro líquido de R$ 14
bilhões, ou seja, os bandidos movimentaram de forma fraudulenta, no ano
passado, um volume próximo ao lucro de um dos principais bancos do País.
Chamada de “cangaço digital”, essa
investida do crime sobre o universo financeiro é “irreversível”, na avaliação
do diretor-geral da Polícia Federal (PF), Andrei Rodrigues. Por isso, a PF
mudou sua abordagem e, em vez de promover investigações focadas em ocorrências
individuais, passou a buscar a origem das fraudes numa tentativa de cortar o
mal pela raiz.
“Não adianta ter um volume imenso de
operações e investigações se ao fim o resultado é insignificante”, afirmou o
diretor-geral da PF, no que tem razão. É alvissareiro, portanto, que a PF tenha
determinado três eixos de atuação contra fraudes digitais: integração entre os
setores público e privado, descapitalização das organizações criminosas e
cooperação internacional.
Na primeira frente, a de integração,
pode-se dizer que há avanços. Desde 2017, PF e Febraban trocam informações com
vistas a facilitar investigações. Mais recentemente, o Ministério da Justiça e
a Febraban fecharam uma parceria chamada Aliança Nacional de Combate a Fraudes
Bancárias e Digitais.
Nos outros eixos, porém, resta muito a
fazer. O secretário nacional de Segurança Pública, Mario Sarrubbo, defende, por
exemplo, que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) seja
reestruturado.
De acordo com ele, um Coaf fortalecido,
trabalhando em conjunto com o sistema financeiro, ajudaria a separar o “joio do
trigo”. O Ministério Público de São Paulo, por exemplo, já identificou a
existência de fintechs de fachada, instituições financeiras que na verdade
atuavam a soldo do Primeiro Comando da Capital (PCC).
Infelizmente, embora a proposta de
Sarrubbo faça todo o sentido, não se vê nenhuma celeridade da parte do poder
público para que uma identificação mais ágil de movimentações suspeitas ocorra.
Propostas adequadas e racionais para o combate à criminalidade não faltam, mas,
infelizmente, enquanto elas não saem do campo das ideias, a bandidagem se
sofistica e se especializa ainda mais.
Do ponto de vista internacional, também
não faltam evidências de cooperação cada vez maior entre bandos criminosos
locais e internacionais. Antenados, os criminosos globais se integram sob a
lógica de cadeias de fornecimento, racionalizando custos, dificultando o
trabalho das polícias e reduzindo a própria exposição.
Mas, enquanto o crime desconhece
fronteiras, as polícias seguem, de um modo geral, trabalhando de forma muito
localizada, se não basicamente provinciana.
Ainda no campo das propostas, o presidente
da Febraban, Issac Sidney, defendeu punições administrativas para indivíduos
que alugam seus CPFs, os famosos laranjas, para que terceiros movimentem
recursos de modo ilegal.
Como se vê, não faltam nem ideias nem
personagens comprometidos com o combate ao “cangaço digital”. Urge, então, que
elas sejam implementadas e que os mecanismos de combate ao crime, que nunca
dorme, sejam constantemente aprimorados e postos em prática.
Do contrário, ideias seguirão sendo apenas
ideias, por melhores que sejam. E mesmo operações contundentes, como a Hydra,
recentemente deflagrada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime
Organizado (Gaeco) e pela PF, serão só uma gota no oceano da criminalidade.
Promessa descumprida
O Estado de S. Paulo
Governo deve mais uma vez ocultar dados de
alfabetização da principal avaliação do País
Pelo segundo ano consecutivo, o Brasil
corre o risco de não ter acesso a dados de alfabetização no Sistema de
Avaliação da Educação Básica (Saeb), principal avaliação usada para mensurar a
qualidade da nossa educação básica. É uma lacuna grave para um governo que
anunciou, com pompa e circunstância, que alfabetizar crianças é uma prioridade
nacional.
Um ofício do Inep, órgão do Ministério da
Educação (MEC) responsável pelas avaliações, indica que, neste ano, publicará
somente os microdados referentes aos exames do 5.º e 9.º anos do ensino
fundamental, e também do 3.º ano do ensino médio de Português e Matemática,
ocultando os resultados das provas aplicadas para alunos do 2.º ano do
fundamental, que avaliam níveis de alfabetização. O ofício, assinado pelo
presidente do Inep, Manuel Palácios, e endereçado à diretora de Avaliação da
Educação Básica do órgão, Hilda Aparecida Linhares da Silva, foi divulgado pelo
jornal Folha de S.Paulo.
Até aqui o MEC não desmentiu nem o ofício
nem a recomendação do Inep. Entre os técnicos há o argumento de que existem
diferenças entre os resultados do Saeb e o indicador “Criança Alfabetizada”,
criado pelo atual governo. Em maio, quando o novo indicador foi divulgado, o
MEC e o presidente Lula da Silva celebraram o fato de que o Brasil atingiu, no
ano passado, a marca de 56% de crianças alfabetizadas na idade adequada,
recuperando o desempenho anterior à pandemia de covid-19, meta estabelecida
pelo ministério por meio do Programa Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.
O novo indicador mostrou um resultado 20 pontos porcentuais maior do que o
desempenho exibido no Saeb de 2021, e 1 ponto porcentual acima da avaliação de
2019.
Embora não haja qualquer razão para
acreditar que a gestão do ministro Camilo Santana tenha decidido esconder
resultados de uma avaliação já aplicada por algum motivo pouco republicano, não
é bom sinal o recuo na promessa de divulgá-los. O compromisso foi anunciado
também no ano passado, quando o MEC resolveu fatiar o anúncio do Saeb. À época,
o ministério tornou conhecido o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(Ideb) de 2023, indicador composto pelo desempenho dos alunos no Saeb e pelas
taxas de aprovação escolar. Antes disso, o governo mostrou o novo indicador de
alfabetização, a partir de avaliações feitas em 2023 pelas redes estaduais. O
próprio ministro sublinhou então que eram metodologias distintas.
De fato são, mas nenhuma diferença, seja de resultado, seja de método, justifica a ocultação de dados específicos que se mostram úteis para mapear a alfabetização das crianças. Embora não seja calculado o Ideb para o 2.º ano do ensino fundamental, alunos dessa série fazem a prova do Saeb e seus resultados refletem a alfabetização das crianças com cerca de sete anos de idade. Não há razão para ocultar qualquer dado, mesmo à guisa de aperfeiçoamento ou ajuste na qualificação das análises. Sobretudo quando mostra o nível de aprendizado dos alunos em Português e Matemática numa etapa especialmente importante da jornada de sua formação.
Gerações ameaçadas pelo machismo
Correio Braziliense
Há gerações de jovens crescendo no Brasil
convencidas de que os homens são superiores às mulheres e presenciando esses
valores sendo colocados em prática
Entre março de 2015 e fevereiro deste ano,
ocorreram 215 feminicídios no Distrito Federal. No último fim de semana, em
menos de 72 horas, mais dois casos foram registrados. Em um deles, os filhos da
vítima testemunharam o pai executar a mãe na madrugada de segunda, no Recanto
das Emas. Hoje, a capital da República abriga 409 órfãos desse crime — 268 são
menores de idade e 141 têm mais de 18 anos —, segundo o balanço mais recente da
Secretaria de Segurança Pública.
Essa perversa realidade não é restrita ao
Distrito Federal. Em todo o país, 92% dos atos de violência contra mulher têm
testemunhas. Nos últimos 12 meses, 21,4 milhões de mulheres foram agredidas das
mais diferentes formas, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, sem qualquer tipo de constrangimento. Amigos ou conhecidos
presenciaram 47,3% dos casos de agressões; filhos, 27%; outros parentes, 12,4%.
A violência testemunhada pelos filhos da
vítima (crianças ou adolescentes) eleva a gravidade do fato. Os danos
emocionais em jovens que presenciam as cenas de violência exigem uma forte rede
de apoio. Além dos impactos individuais, dos emocionais aos socioeconômicos, há
o risco de uma normalização coletiva das práticas de violência. "A criança
ou o adolescente que assiste à morte da mãe pelo pai precisa desse cuidado para
que não se torne um jovem misógino, homicida, feminicida ou entregue-se a uma
depressão severa", alerta a psicóloga Kleytiane da Silva de Oliveira.
A possibilidade de repetição e,
consequentemente, perpetuação das práticas de violência de gênero se torna
ainda mais desafiante em um momento de aumento de crimes do tipo. Diante da
escalada dos casos, em outubro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
sancionou a Lei nº 14.717, que estabelece pensão para os órfãos do
feminicídio. A medida vale para menores de idade que vivem em famílias com
renda mensal per capita de 25% do salário mínimo. É bem-vinda, mas não
suficiente, considerando que os desdobramentos de um feminicídio não são apenas
financeiros.
Da mesma forma, benefícios sociais,
medidas protetivas e aumento da pena para os feminicidas são necessários, mas
não transformam o comportamento dos homens. "Os homens criaram uma
estrutura em que crescem com uma relação de poder e de desmerecimento do gênero
feminino", diz a advogada Andreia Lima Aires, especialista em violência
doméstica intrafamiliar e ex-presidente da Comissão de Violência Doméstica da
OAB-DF, em entrevista ao CB Poder. Para ela, esse comportamento, presenciado,
em muitos casos, desde a infância, "resulta de uma situação histórica do
patriarcado e "até mesmo da objetificação da mulher".
As providências do poder público têm sido insuficientes para conter a ira dos machistas. As políticas públicas também não são capazes de impedir os assassinatos de mulheres, uma vez que os crimes ocorrem, em sua maioria, na casa da vítima. Iniciativas para conter o ímpeto agressivo dos homens não têm êxitos expressivos. Essa frustração poderá ser permanente enquanto não houver uma educação que elimine a falsa concepção de que os homens são superiores às mulheres. Há gerações de jovens crescendo no Brasil convencidas desses valores, os presenciando e os colocando em prática. O combate à violência de gênero não pode fechar os olhos para isso.
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