O Globo
É uma falsa suposição pensar que a política
pode seguir sua carreira solo, ignorando os anseios da sociedade
A democracia no Brasil está morrendo há
alguns anos. Às vezes penso nisso e me pergunto por que não conseguimos deter a
decomposição. Não é um processo linear, houve vitórias no caminho. Mas cresce
aos poucos a consciência de que ela não é imortal. Às vezes, vejo o Estado
brasileiro como um barco solitário que navega no oceano dos interesses da alta
burocracia, sem grandes contatos com a costa, onde vivem as esperanças e os
sonhos cotidianos.
A imagem de um barco desgovernado é muito fortalecida pelo Congresso. Os deputados detêm parte do Orçamento e lutam, de inúmeras formas, para evitar a transparência dos gastos. Determinaram um aumento no número de parlamentares, de 513 para 531, o que significa novos gastos de, no mínimo, R$ 64 milhões anuais.
E nós, o que fizemos? Na verdade, o tema
passou batido. Teve menos repercussão que os projetos que regulam a assistência
médica ou os bebês reborn. Isso não significa que a sociedade tenha lavado as
mãos. Ela se pronunciou num projeto que privatizava áreas do litoral, voltou a
se manifestar no projeto que criminalizava vítimas de estupro. O problema é a
lógica desses clamores. Às vezes surgem, às vezes não. Tudo depende de os temas
terem viralizado. Muitos deles são sérios, mas simplesmente morrem nos algoritmos.
Resta então pensar nos contrapesos. O STF tem
condições de realizar esta tarefa sozinho? No caso das emendas parlamentares,
luta pela transparência desde o início do orçamento secreto. Mas ainda não
venceu neste quesito claramente constitucional: como se gasta o dinheiro
público. Há muitos problemas em depositar todas as fichas no STF. O Judiciário
é vulnerável. Muitos juízes ganham salário acima do teto. Há investigações
sobre venda de sentenças no STJ, inquéritos sobre a Justiça de Tocantins e Mato
Grosso.
Há outro perigo em erigir o STF como
salvador. Depois de sua atuação em defesa da democracia, surgiram inúmeras
denúncias de excessos. Elas repercutem mais na imprensa internacional do que no
Brasil. The Economist e The New York Times já publicaram amplas reportagens
sobre o tema. É difícil imaginar que façam o jogo da extrema direita, pois
claramente não se identificam com ela.
O Supremo, no Brasil, avançou muito na
concessão de prerrogativas aos seus ministros. Podem julgar casos defendidos
por parentes. Podem ser empresários, interferem em nomeações.
O governo mesmo está um pouco espremido entre
essas duas forças que não pode confrontar. Precisa do Supremo e do Congresso. E
ainda está pressionado por denúncias de corrupção no INSS. Nada a esperar de
Lula para deter a engrenagem. É o favorito nas eleições de 2026. Com a força da
grana, o atual Congresso será essencialmente o mesmo.
O que esperar do futuro, nessas
circunstâncias? As revoltas de 2013 moveram o país, e o resultado em 2018 foi a
eleição de um outsider, Jair Bolsonaro. Nem era verdadeiramente outsider. Sua
experiência culminou no orçamento secreto, que ampliou o abismo entre política
e povo. Com um discurso de prosperidade do indivíduo, Pablo Marçal em São Paulo
conseguiu empolgar parte da juventude. Fracassou ao se mostrar completamente
amoral e pouco hábil em política.
Já existe cansaço com tudo que está aí e
também cansaço com quem se apresenta contra tudo o que está aí. É uma falsa
suposição pensar que a política pode seguir sua carreira solo, ignorando os
anseios da sociedade. Mais cedo ou mais tarde pode haver colisão, e temos de
nos preparar, desde agora, para que a democracia não seja atropelada por ela.
Não há outra esperança fora da planície, onde estamos todos. Será preciso
superar a indiferença e visualizar, rapidamente, o abismo, para evitar que o
país caia nele.
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