O Globo
Os Estados Unidos apoiam a erradicação da
vida civil em Gaza, enquanto Reino Unido e França desviam o olhar para não
parecer cúmplices. Dos 'países-irmãos' árabes muçulmanos, pouco a esperar
Poucos meses atrás, o poeta palestino Mosab Abu Toha se declarou dilacerado. Preso e libertado pelas forças israelenses na sua Gaza natal em 2023, obteve salvo-conduto para sair do enclave. Bons tempos aqueles em que salvo-condutos ainda eram fornecidos. Do Egito, ele migrou para os Estados Unidos. E foi dessa terra estrangeira que refletiu sobre seu estado d’alma em entrevista ao canal Al-Jazeera. O salto entre o “ontem” e o “agora”, disse, fora brutal. “Imagine estar num abrigo em Gaza com seus pais, irmãos, filhos, sem conseguir proteger nenhum deles. Você é incapaz de prover comida, água, medicamentos, nada. E agora você se vê nos Estados Unidos, justamente o país que financia o genocídio. É desesperador”, resumiu ele.
Nesta semana o poeta de 31 anos recebeu o
prestigioso prêmio Pulitzer por ensaios publicados na revista The New Yorker
sobre os efeitos físicos e emocionais da carnificina em curso. Em paralelo,
também recebeu ameaças de grupos da extrema direita americana que exigem sua
deportação. Acabou cancelando palestras agendadas em diversas universidades do
país.
Mesmo que quisesse ser deportado para seu
chão, Abu Toha não conseguiria. A Faixa de Gaza está selada por terra, mar e
ar. Ninguém entra nem sai desde que o governo israelense de Benjamin Netanyahu,
em 22 de março último, rompeu a trégua acordada numa tentativa extrema de obter
a capitulação do Hamas.
Difícil não ver ironia nas comemorações,
nesta semana, dos 80 anos do final da Segunda Guerra. A vitória das Forças
Aliadas e da União Soviética contra o nazismo não parece ter produzido uma
humanidade menos cínica. Moscou comemora com razão a quase sobre-humana
resistência da antiga Leningrado (hoje São Petersburgo) ao histórico cerco
militar de 872 dias. Hitler havia ordenado que não seria dada a opção de
rendição à cidade. Ela deveria simplesmente cessar de existir, destruída por
bombardeios, fome, doenças, apagamento de vida. Ainda assim, Leningrado
resistiu, defendida até a última unha pelo Exército Vermelho e por uma
população civil comparável à da Faixa de Gaza hoje (mais de 2 milhões).
Estima-se que perto de 1,5 milhão de civis não tenham sobrevivido ao cerco.
Pergunta: para que serve o colossal aparato
militar russo exibido na Praça Vermelha se ninguém, ali, é capaz ou está
interessado em salvar uma única criança a minguar em Gaza?
Também vem à mente o bloqueio de Berlim
Ocidental, já em plena Guerra Fria. Em junho de 1948, os soviéticos
interromperam todo e qualquer trânsito de pessoas, mercadorias, fornecimento de
eletricidade e água à população sob tutela de França, Grã-Bretanha e Estados
Unidos. A medida ordenada por Stálin visava ao isolamento da vida naquele
setor, para obter controle total sobre a cidade dividida. Como é sabido, os
aliados ocidentais reagiram, montaram uma complexa logística aérea e
abasteceram as necessidades dos quase 2,5 milhões de berlinenses ilhados
(novamente, população próxima aos 2,3 milhões de palestinos de Gaza). Durante
321 dias, conseguiram despejar mais de 1,5 milhão de toneladas de suprimentos
aos sitiados. Foram tão eficientes que Stálin desistiu do bloqueio e foi tratar
de ampliar seu império alhures.
Hoje, os Estados Unidos apoiam a erradicação
da vida civil em Gaza, enquanto Reino Unido e França desviam o olhar para não
parecer cúmplices. Dos “países-irmãos” árabes muçulmanos, já se falou aqui —
historicamente, pouco a esperar.
E a ONU? Nada fez no mais longo cerco da
História da guerra moderna — o de Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina,
que durou quase quatro anos da década de 1990. Vivia-se então a desintegração
da antiga Iugoslávia, e a Sérvia pretendia criar uma continuidade territorial
na Bósnia, por meio da limpeza étnica dos muçulmanos. Ao longo do cerco, 64% da
população da cidade não sobreviveu às privações. Sem falar no massacre de
Srebrenica, enclave muçulmano em território sérvio declarado “zona de
segurança” pela ONU, também no âmbito da desintegração iugoslava. Ali, o horror
foi fulminante — durou apenas 11 dias em julho de 1995. O bastante para se
tornar o maior massacre cometido na Europa desde a Segunda Guerra.
É claro que cada matança, bloqueio ou cerco
histórico reflete as dinâmicas militar, política e humanitária de seu tempo.
Não é diferente em Gaza. Mas nem por isso deixa de ser horrendo que continuemos
a assistir calmamente a mais um estrangulamento de povo. Gaza está sozinha no
mundo. Solidariedade não basta para mudar a história.
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