sábado, 19 de julho de 2025

Peripécias do liberal-fascismo - Luiz Gonzaga Belluzzo

CartaCapital

“Se você não é igual a mim, não tem direito a existir”, vocifera o igualitarismo de manada

As trumpadas de Donald Trump expõem, “a céu aberto”, as pérfidas soluções engendradas pelo liberal-fascismo. Essa visão do mundo, aparentemente contraditória, infesta o pensamento (sic) das camadas enriquecidas – e também das empobrecidas e ressentidas – que se esbatem na sociedade americana.

O economista Thomas Ferguson bateu pesado: “Os eleitores percebem a farsa. Perderam a confiança no sistema e se cansaram de ambos os partidos, alimentados pelo dinheiro. Ao final da Presidência de Obama, a participação eleitoral havia caído para o nível mais baixo em décadas”.

Em nuestra América, o ultraliberal-fascismo viceja nas mãos do presidente argentino, Javier Milei. Recentemente, Milei vergastou o Estado: “O Estado é a representação do Maligno na Terra. Cada vez que o Estado avança há mais pobreza, mais calamidades, miséria”.

Certamente, Milei ignora Thomas Hobbes. No Leviatã, Hobbes dispara sua artilharia contra os princípios do liberal-fascismo:

“Uma vez que a Condição Humana é a da Guerra de uns contra os outros, cada qual governado por sua própria Razão, e não havendo algo que o homem possa lançar mão para ajudá-lo a preservar a própria vida contra os inimigos, todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio. Assim, perdurando esse Direito de cada um sobre todas as coisas, não poderá haver segurança para ninguém (por mais forte e sábio que seja)”.

A sociabilidade moderna move-se entre a inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a ­pluralidade­ dos indivíduos. A história dessas sociedades trouxe o mercado como instância dominante da sociabilidade, o que supõe o “indivíduo livre”, cujas ações egoístas ameaçam, para o bem e para o mal, a estabilidade do conjunto. Essa forma peculiar de sociabilidade torna difíceis a compreensão e a mediação do conflito entre a reprodução da sociedade e a construção da autonomia individual, relação contraditória que só pode ser mediada precariamente pela política e pelo direito. Para assumir a condição de sujeitos de direitos e deveres, os indivíduos são constrangidos a abdicar de sua moral particularista.

O Direito, ou seja, o sistema de regras positivas emanadas dos poderes do Estado e legitimados pelo sufrágio universal deve punir rigorosamente quem se aventurar à violação da norma abstrata. Mas a mediação do Estado é precária, sugere Giorgio Agamben, pois a soberania é um frágil compromisso entre a natureza e a razão, o direito e a violência.

Hanna Arendt, nas Origens do Totalitarismo, abordou as transformações sociais e políticas na sociedade de massa às vésperas do morticínio nazista.

A economia dos monopólios promoveu a substituição da empresa individual pela coletivização da propriedade privada e, ao mesmo tempo, a “individualização do trabalho”, engendrada pelas novas modalidades tecnológicas e organizacionais da grande empresa. A isto se juntou a conversão ao regime salarial das profissões outrora conhecidas como liberais. A operação impessoal das forças econômicas produziu, em simultâneo, o declínio do homem público e a ascensão do “homem massa, cuja principal característica não é a brutalidade ou a rudeza, mas o seu isolamento e sua falta de relações sociais normais”.

Trata-se da abolição do sentimento de pertinência a uma classe social, sem a supressão das relações de dominação.  “As massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe. O ‘pecado original’ da acumulação primitiva de capital exigiu novos pecados para manter o sistema em funcionamento e foi eficaz para persuadir a burguesia alemã a abandonar as coibições da tradição ocidental. Foi esse fato que a levou a tirar a máscara da hipocrisia e a confessar abertamente seu parentesco com a escória.” Na visão de Arendt, a escória independe da situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos da ralé”.

Arendt ocupou-se, sobretudo, da emergência do nazismo e do stalinismo como fenômenos do igualitarismo totalitário que vocifera: “Se você não é igual a mim, não tem direito a existir”. Esse igualitarismo de manada pressupõe paradoxalmente a superioridade de um modo de ser sobre outros e culmina nas tentativas de apagar pela força as diferenças de posição social e de estilos de vida. Igualitários-bolsonaristas que desfilam suas ignorâncias nas passeatas da Avenida Paulista. 

Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.

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