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“Se você não é igual a mim, não tem direito a existir”, vocifera o igualitarismo de manada
As trumpadas de
Donald Trump expõem, “a céu aberto”, as pérfidas soluções
engendradas pelo liberal-fascismo. Essa visão do mundo, aparentemente
contraditória, infesta o pensamento (sic) das camadas enriquecidas – e também
das empobrecidas e ressentidas – que se esbatem na sociedade americana.
O economista Thomas Ferguson bateu pesado:
“Os eleitores percebem a farsa. Perderam a confiança no sistema e se cansaram
de ambos os partidos, alimentados pelo dinheiro. Ao final da Presidência de
Obama, a participação eleitoral havia caído para o nível mais baixo em
décadas”.
Em nuestra América, o ultraliberal-fascismo viceja nas mãos do presidente argentino, Javier Milei. Recentemente, Milei vergastou o Estado: “O Estado é a representação do Maligno na Terra. Cada vez que o Estado avança há mais pobreza, mais calamidades, miséria”.
Certamente, Milei ignora Thomas Hobbes. No
Leviatã, Hobbes dispara sua artilharia contra os princípios do
liberal-fascismo:
“Uma vez que a Condição Humana é a da Guerra
de uns contra os outros, cada qual governado por sua própria Razão, e não
havendo algo que o homem possa lançar mão para ajudá-lo a preservar a própria
vida contra os inimigos, todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio.
Assim, perdurando esse Direito de cada um sobre todas as coisas, não poderá
haver segurança para ninguém (por mais forte e sábio que seja)”.
A sociabilidade moderna move-se entre a
inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a pluralidade
dos indivíduos. A história dessas sociedades trouxe o mercado como instância
dominante da sociabilidade, o que supõe o “indivíduo livre”, cujas ações
egoístas ameaçam, para o bem e para o mal, a estabilidade do conjunto. Essa
forma peculiar de sociabilidade torna difíceis a compreensão e a mediação do
conflito entre a reprodução da sociedade e a construção da autonomia
individual, relação contraditória que só pode ser mediada precariamente pela
política e pelo direito. Para assumir a condição de sujeitos de direitos e
deveres, os indivíduos são constrangidos a abdicar de sua moral particularista.
O Direito, ou seja, o sistema de regras
positivas emanadas dos poderes do Estado e legitimados pelo sufrágio universal
deve punir rigorosamente quem se aventurar à violação da norma abstrata. Mas a
mediação do Estado é precária, sugere Giorgio Agamben, pois a soberania é um
frágil compromisso entre a natureza e a razão, o direito e a violência.
Hanna Arendt, nas Origens do Totalitarismo,
abordou as transformações sociais e políticas na sociedade de massa às vésperas
do morticínio nazista.
A economia dos monopólios promoveu a
substituição da empresa individual pela coletivização da propriedade privada e,
ao mesmo tempo, a “individualização do trabalho”, engendrada pelas novas
modalidades tecnológicas e organizacionais da grande empresa. A isto se juntou
a conversão ao regime salarial das profissões outrora conhecidas como liberais.
A operação impessoal das forças econômicas produziu, em simultâneo, o declínio
do homem público e a ascensão do “homem massa, cuja principal característica
não é a brutalidade ou a rudeza, mas o seu isolamento e sua falta de relações
sociais normais”.
Trata-se da abolição do sentimento de
pertinência a uma classe social, sem a supressão das relações de
dominação. “As massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada,
cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas
quando se pertencia a uma classe. O ‘pecado original’ da acumulação primitiva
de capital exigiu novos pecados para manter o sistema em funcionamento e foi
eficaz para persuadir a burguesia alemã a abandonar as coibições da tradição
ocidental. Foi esse fato que a levou a tirar a máscara da hipocrisia e a
confessar abertamente seu parentesco com a escória.” Na visão de Arendt, a
escória independe da situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até
os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos
movimentos da ralé”.
Arendt ocupou-se, sobretudo, da emergência do
nazismo e do stalinismo como fenômenos do igualitarismo totalitário que
vocifera: “Se você não é igual a mim, não tem direito a existir”. Esse
igualitarismo de manada pressupõe paradoxalmente a superioridade de um modo de
ser sobre outros e culmina nas tentativas de apagar pela força as diferenças de
posição social e de estilos de vida. Igualitários-bolsonaristas que desfilam
suas ignorâncias nas passeatas da Avenida Paulista.
Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.
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