Valor Econômico
É preciso enfrentar as distâncias sociais que
mantêm o poder, os privilégios na educação e as oportunidades concentrados nas
mãos de poucos
Dias atrás, enquanto tentava recompor a base
do governo na Câmara, um deputado do PT ligou para um colega do União Brasil e
perguntou se ele continuaria votando a favor dos projetos do governo pelo menos
na área da economia. Sim, respondeu o deputado, mas com uma ressalva: desde que
não fosse aumento de impostos.
Esse diálogo, relatado pela imprensa, mostra
que há no país uma visão distorcida sobre tributação. Predomina o discurso de
que os impostos servem apenas para esfolar contribuintes.
Sem dúvida, a carga tributária brasileira, cerca de 33% do PIB, é elevada se comparada, por exemplo, com as de outros países da América Latina, que não oferecem benefícios sociais como os brasileiros em saúde, educação, transferência de renda etc. Está, porém, longe de níveis de países desenvolvidos. Nos 27 membros da União Europeia, a carga média é 40%, alcançando quase 50% na França, 40% na Alemanha, 42% na Suécia.
Nas últimas semanas, a Câmara aprovou a
isenção de Imposto de Renda para ganhos mensais de até R$ 5 mil. Para compensar
a perda de receita, autorizou a tributação mínima da alta renda e de dividendos
superiores a R$ 50 mil mensais.
Foi um momento progressista da Câmara, mas em
seguida, os mesmos congressistas impediram o corte de despesas tributárias
concedidas por meio de isenções a investidores e outros contribuintes de alta
renda, além de poupar as bets de maior taxação. A motivação foi política,
certamente, mas o discurso, o mesmo: não ao aumento de impostos.
Seria bom que os congressistas brasileiros
lessem um livrinho envolvente, sem economês, chamado “Igualdade - Significado e
Importância”, que relata diálogo entre o economista francês Thomas Piketty e o
sociólogo americano Michael Sandel, professor de Harvard.
Piketty é o aclamado autor de “O Capital no
Século XXI” e incansável defensor do combate às desigualdades no mundo. Ele é
otimista ao citar um grande avanço na busca da igualdade no século XX. A
disparidade de renda é infinitamente menor hoje no mundo do que cem anos atrás,
inclusive nos EUA, e principalmente na Europa, por causa da ascensão da
social-democracia e do Estado de Bem-estar Social, que Piketty prefere chamar
de Estado Social. Mas a questão é que esse processo não pode ser considerado
terminado ou congelado, como se impôs a partir dos anos 1980, com o
neoliberalismo, porque o nível das desigualdades ainda é enorme. Os 10% mais
ricos do mundo recebem 52% da renda global e têm 76% da riqueza. Os 50% mais
pobres têm 8,5% da renda e 2% da riqueza. No Brasil, 1% (os mais ricos) detém
28% da renda, e os 50% mais pobres, apenas 10%.
O combate às desigualdades, portanto, poderia
merecer mais atenção e reflexão na área política.
É cruel ignorar o papel da tributação na
redução das desigualdades e impedir a maior taxação dos super ricos sob o
argumento de que isso estimularia a fuga de investimentos ou com o discurso de
que o equilíbrio fiscal deveria ser buscado por cortes drásticos de despesas em
áreas sociais.
Sim, a desigualdade no mundo é menor hoje do
que há 100 anos, mas em nenhum lugar foi fácil obter esse avanço, freado a
partir dos anos 1980 pelo neoliberalismo. Sempre houve lutas políticas e
mobilização popular, porque a democracia social, no passado, foi considerada
“projeto radical”.
Piketty observa que os partidos de
centro-esquerda, ao assumirem o poder na Suécia nos anos 1930/1940, colocaram
em ministérios trabalhadores que foram taxados de “bárbaros no governo”. O país
era profundamente aristocrata. Até a Primeira Guerra Mundial, apenas os 20%
mais ricos da população masculina podiam votar e, nesse grupo, dependendo de
suas posses, cada pessoa podia ter de 1 a 100 votos.
Friedrich August von Hayek (1899-1992),
economista austríaco-britânico ultraliberal, previu que os social-democratas
suecos iriam destruir o capitalismo. “Vocês vão acabar como a União Soviética,
vão acabar sendo uma ditadura.” Previsão errada: a Suécia é hoje um dos países
capitalistas mais ricos e igualitários do mundo.
O Estado Social, sem destruir o capitalismo,
foi realidade do século XX não apenas na Suécia, mas também na Alemanha,
França, Inglaterra e até nos EUA, que durante décadas adotaram taxações bastante
progressivas: alíquota máxima de IR na faixa de 80% a 90%.
A taxação progressiva, para Piketty e Sandel,
é uma arma importante para reduzir as desigualdades monetárias, e deve ser
vista não como punição, mas como ato de solidariedade que fortalece o Estado e
a coesão social. Mas não pode ser a única arma. É preciso enfrentar as
distâncias sociais que mantêm o poder, os privilégios na educação e as
oportunidades concentrados nas mãos de poucos.
Sem medo de parecer radical ou utópico, o
economista francês sugere ser preciso também desmercantilizar a economia em
áreas humanas fundamentais como educação, saúde, alimentação, moradia. Ou seja,
retirar de setores inteiros o poder da motivação do lucro.
Só educação e saúde representam 25% da
economia mundial. Nos EUA, onde saúde opera sob a lógica do lucro, são gastos
20% do PIB nesse setor, com resultados sofríveis em relação aos países europeus
que mantêm sistemas sob a lógica do serviço público. Portanto, afirma Piketty,
a desmercantilização já deu certo ao longo da história. E se ela se aprofundar,
a desigualdade monetária passará a ser quase irrelevante.

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