terça-feira, 28 de outubro de 2025

Taxação progressiva é só o começo do combate à desigualdade, por Pedro Cafardo

Valor Econômico

É preciso enfrentar as distâncias sociais que mantêm o poder, os privilégios na educação e as oportunidades concentrados nas mãos de poucos

Dias atrás, enquanto tentava recompor a base do governo na Câmara, um deputado do PT ligou para um colega do União Brasil e perguntou se ele continuaria votando a favor dos projetos do governo pelo menos na área da economia. Sim, respondeu o deputado, mas com uma ressalva: desde que não fosse aumento de impostos.

Esse diálogo, relatado pela imprensa, mostra que há no país uma visão distorcida sobre tributação. Predomina o discurso de que os impostos servem apenas para esfolar contribuintes.

Sem dúvida, a carga tributária brasileira, cerca de 33% do PIB, é elevada se comparada, por exemplo, com as de outros países da América Latina, que não oferecem benefícios sociais como os brasileiros em saúde, educação, transferência de renda etc. Está, porém, longe de níveis de países desenvolvidos. Nos 27 membros da União Europeia, a carga média é 40%, alcançando quase 50% na França, 40% na Alemanha, 42% na Suécia.

Nas últimas semanas, a Câmara aprovou a isenção de Imposto de Renda para ganhos mensais de até R$ 5 mil. Para compensar a perda de receita, autorizou a tributação mínima da alta renda e de dividendos superiores a R$ 50 mil mensais.

Foi um momento progressista da Câmara, mas em seguida, os mesmos congressistas impediram o corte de despesas tributárias concedidas por meio de isenções a investidores e outros contribuintes de alta renda, além de poupar as bets de maior taxação. A motivação foi política, certamente, mas o discurso, o mesmo: não ao aumento de impostos.

Seria bom que os congressistas brasileiros lessem um livrinho envolvente, sem economês, chamado “Igualdade - Significado e Importância”, que relata diálogo entre o economista francês Thomas Piketty e o sociólogo americano Michael Sandel, professor de Harvard.

Piketty é o aclamado autor de “O Capital no Século XXI” e incansável defensor do combate às desigualdades no mundo. Ele é otimista ao citar um grande avanço na busca da igualdade no século XX. A disparidade de renda é infinitamente menor hoje no mundo do que cem anos atrás, inclusive nos EUA, e principalmente na Europa, por causa da ascensão da social-democracia e do Estado de Bem-estar Social, que Piketty prefere chamar de Estado Social. Mas a questão é que esse processo não pode ser considerado terminado ou congelado, como se impôs a partir dos anos 1980, com o neoliberalismo, porque o nível das desigualdades ainda é enorme. Os 10% mais ricos do mundo recebem 52% da renda global e têm 76% da riqueza. Os 50% mais pobres têm 8,5% da renda e 2% da riqueza. No Brasil, 1% (os mais ricos) detém 28% da renda, e os 50% mais pobres, apenas 10%.

O combate às desigualdades, portanto, poderia merecer mais atenção e reflexão na área política.

É cruel ignorar o papel da tributação na redução das desigualdades e impedir a maior taxação dos super ricos sob o argumento de que isso estimularia a fuga de investimentos ou com o discurso de que o equilíbrio fiscal deveria ser buscado por cortes drásticos de despesas em áreas sociais.

Sim, a desigualdade no mundo é menor hoje do que há 100 anos, mas em nenhum lugar foi fácil obter esse avanço, freado a partir dos anos 1980 pelo neoliberalismo. Sempre houve lutas políticas e mobilização popular, porque a democracia social, no passado, foi considerada “projeto radical”.

Piketty observa que os partidos de centro-esquerda, ao assumirem o poder na Suécia nos anos 1930/1940, colocaram em ministérios trabalhadores que foram taxados de “bárbaros no governo”. O país era profundamente aristocrata. Até a Primeira Guerra Mundial, apenas os 20% mais ricos da população masculina podiam votar e, nesse grupo, dependendo de suas posses, cada pessoa podia ter de 1 a 100 votos.

Friedrich August von Hayek (1899-1992), economista austríaco-britânico ultraliberal, previu que os social-democratas suecos iriam destruir o capitalismo. “Vocês vão acabar como a União Soviética, vão acabar sendo uma ditadura.” Previsão errada: a Suécia é hoje um dos países capitalistas mais ricos e igualitários do mundo.

O Estado Social, sem destruir o capitalismo, foi realidade do século XX não apenas na Suécia, mas também na Alemanha, França, Inglaterra e até nos EUA, que durante décadas adotaram taxações bastante progressivas: alíquota máxima de IR na faixa de 80% a 90%.

A taxação progressiva, para Piketty e Sandel, é uma arma importante para reduzir as desigualdades monetárias, e deve ser vista não como punição, mas como ato de solidariedade que fortalece o Estado e a coesão social. Mas não pode ser a única arma. É preciso enfrentar as distâncias sociais que mantêm o poder, os privilégios na educação e as oportunidades concentrados nas mãos de poucos.

Sem medo de parecer radical ou utópico, o economista francês sugere ser preciso também desmercantilizar a economia em áreas humanas fundamentais como educação, saúde, alimentação, moradia. Ou seja, retirar de setores inteiros o poder da motivação do lucro.

Só educação e saúde representam 25% da economia mundial. Nos EUA, onde saúde opera sob a lógica do lucro, são gastos 20% do PIB nesse setor, com resultados sofríveis em relação aos países europeus que mantêm sistemas sob a lógica do serviço público. Portanto, afirma Piketty, a desmercantilização já deu certo ao longo da história. E se ela se aprofundar, a desigualdade monetária passará a ser quase irrelevante.

 

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