CartaCapital
As facções criminosas estão mais poderosas e
não vão desaparecer com a execução de seus integrantes, como aposta o
governador do Rio
A violência é a maior preocupação dos brasileiros em diversas pesquisas. Por trás do medo está o crime organizado. O PCC, de São Paulo, e o Comando Vermelho, do Rio, são as maiores entre 88 facções mapeadas pelo Ministério da Justiça. Grupos do gênero espalham-se nas ruas e nos negócios, estão por trás de muitos dos 40 mil assassinatos anuais e ajudam a, digamos, girar a roda da economia. A um ano das eleições, a população vê em cena dois modelos para enfrentar o problema. Um é do governo Lula, cristalizado em operações da Polícia Federal de agosto que atingiram o mercado financeiro e tomaram 1,2 bilhão de reais do PCC. Sem disparar um único tiro. É a aposta na inteligência. O outro é o do governador Cláudio Castro, do Rio, que prefere o confronto e acaba de liderar a maior chacina policial da história do Brasil, graças a uma violenta incursão no quartel-general do CV. Certos governadores direitistas apoiam a solução “tiro, porrada e bomba” e viajaram ao Rio para parabenizar Castro pela matança.
A operação nos Complexos da Penha e do Alemão
provocou 121 mortes, na última contagem do governo fluminense antes da
conclusão desta reportagem, em 30 de outubro, número superior aos 111 mortos do
Massacre do Carandiru, em 1992, em São Paulo. Castro terá de dar um número
definitivo de mortos em 3 de novembro ao juiz Alexandre de Moraes, do Supremo
Tribunal Federal. Outros dois esclarecimentos cobrados pela Corte, a pedido do
Conselho Nacional de Direitos Humanos: qual a justificativa formal da
carnificina e qual o tamanho prévio da força que seria usada?
A Operação Policial superou a trágica marca
do massacre do Carandiru e tornou-se a mais letal do País
Foi “terrorismo de Estado”, na visão do
jurista Walter Maierovitch, desembargador aposentado, e cabe falar em
impeachment de Castro. O governador sente-se vitorioso. Considera a operação um
“sucesso” e diz que, de vítima, ali, só havia os quatro policiais mortos. Em
tese, o plano era cumprir mandados de prisão contra 100 acusados de tráfico,
alguns dos quais estavam escondidos no QG do CV para fugir da Justiça de outros
estados.
Castro mentiu no dia da chacina. Declarou ter
pedido ajuda ao governo federal. Mais tarde reconheceu que não foi bem assim.
Houve requisições de carros blindados ao longo dos anos, mas nada específico
para a Operação Contenção, de 28 de outubro. Brasília sempre respondeu que,
antes de ceder os veículos, teria de ouvir do Rio a admissão de incapacidade de
lidar com a situação e um apelo pela decretação de Garantia da Lei e da Ordem,
a GLO. Na prática, significaria o Rio abrir mão de autoridade e sair de cena
para o governo Lula assumir o leme via Forças Armadas.
O assunto “GLO” foi discutido por auxiliares
presidenciais no dia da matança e prevaleceu a visão de que Lula não deveria
entrar de cabeça no caso, por haver risco de que a crise caísse no seu colo. A
popularidade do petista melhorou, mas não há gordura para queimar. O crime, em
especial o organizado, é um problema real no País, o PT inclusive fará em
dezembro um seminário sobre segurança pública e dará prioridade ao tema no
programa de governo de 2026. Além do mais, em viagem recente à Ásia, Lula tinha
dado uma declaração mal formulada sobre traficantes serem “vítimas” dos usuários
de drogas. O comentário era a propósito da investida de Donald Trump no Caribe
contra o tráfico. O senador Flávio Bolsonaro quer que o norte-americano mande
os marines para a Baía de Guanabara.
Castro mentiu ao acusar o Governo Federal de
recusar ajuda. O pedido de GLO jamais foi apresentado
Ministros de Lula foram cuidadosos ao
comentar o horror no Rio. Nada de condenação veemente da letalidade policial.
Inclusive, por não se saber inicialmente ao certo a identidade dos corpos,
quase metade dos quais retirada de uma mata pelos próprios moradores dos
complexos do Alemão e da Penha. Em 2010, a comunidade tinha visto uma invasão
policial e militar, combinada pelo governo Lula de então e o governador da
época, Sérgio Cabral. Era o início das UPPs, iniciativa destinada a tirar
traficantes do controle de favelas e permitir a oferta posterior de serviços
públicos e de emprego para a comunidade. Uma semana de ação terminou com 39
cadáveres. Não foram mais, pois os traficantes fugiram pela mata. Essa mata foi
deliberadamente usada pela PM fluminense agora. O plano foi empurrar os
traficantes para ela, onde a polícia estava pronta para metralhar.
“Não podemos aceitar que o crime organizado
continue destruindo famílias, oprimindo moradores e espalhando drogas e violência
pelas cidades. Precisamos de um trabalho coordenado que atinja a espinha dorsal
do tráfico sem colocar policiais, crianças e famílias inocentes em risco”,
escreveu Lula no ex-Twitter. “Foi exatamente o que fizemos em agosto na maior
operação contra o crime organizado da história do País.” Essa visão foi
apresentada também em um vídeo publicitário que o governo colocou nas redes
sociais. Segundo o vídeo, matar criminosos não resolve o problema, pois logo
haverá outros para assumir os negócios. Não parece que o CV tenha perdido o
controle do QG atacado pela polícia.
“Medir força armada com o tráfico é um erro
conceitual e estratégico repetido há décadas”, afirma o sociólogo José Cláudio
Souza Alves, da Universidade Federal Rural Fluminense, um estudioso do crime
organizado no Rio. “É palanque eleitoral do governador, para dizer que bandido
bom é bandido morto.” O deputado Glauber Braga, do PSOL do Rio, lembra que
Castro fez o mesmo ao preparar a reeleição. Promoveu, em 2021 e 2022, as duas
maiores chacinas policiais do Rio até então: a do Jacarezinho (28 mortos) e a
da Vila Cruzeiro (22). O governador quer disputar o Senado, a menos que fique
inelegível no Tribunal Superior Eleitoral em julgamento marcado para 4 de
novembro. E faz dobradinha discreta com Flávio Bolsonaro, que tentará renovar o
mandato, caso não seja escalado pelo pai para desafiar Lula. “O que aconteceu
nos complexos do Alemão e da Penha faz parte de um projeto de poder desse grupo
político”, diz Braga, ao comentar o episódio e debruçar-se sobre uma pesquisa a
apontar Castro em terceiro na corrida ao Senado, atrás de Flávio e da petista
Benedita da Silva. A propósito, Braga cogita concorrer ao governo contra o
prefeito Eduardo Paes, recém-aliado ao PL de Castro.
Após algumas alfinetadas no caminho linha-dura
do governador do Rio, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, foi ao
encontro dele, por ordem presidencial. Ficou acertada a criação de um
escritório emergencial com as duas partes, a fim de que a comunicação e a busca
de soluções sejam mais rápidas. Será, nas palavras do ministro, o “embrião” do
“entrosamento” entre forças de segurança tal qual proposto pelo governo ao
Congresso em abril, na PEC da Segurança Pública. “O crime organizado está
altamente sofisticado”, declarou Lewandowski, ao anunciar o “escritório”.
Um de cada cinco brasileiros diz morar em
bairro dominado pelo crime organizado ou pela milícia, de acordo com pesquisa
encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública ao Datafolha. O quadro
agravou-se neste ano e é ainda pior no Nordeste e nas capitais. A atuação muito
além de fronteiras estaduais, e até do País, leva o governo a defender que o
combate às facções tenha coordenação nacional. Pela Constituição, cuidar da
segurança pública é atribuição dos governadores, e o Palácio do Planalto quer
mudar o texto para fazer funcionar melhor o Sistema Único de Segurança Pública,
criado por lei em 2018. A proposta de abril é isso. Haveria diretrizes e
estratégias comuns para todos os estados, além de garantias de que verbas
setoriais não seriam bloqueadas pela equipe econômica.
Marivaldo Pereira, secretário nacional de
Assuntos Legislativos, vinculado ao Ministério da Justiça, cita o combate ao
“novo cangaço” como exemplo do que melhoraria com a PEC. O “novo cangaço” mira
cidades pequenas ou médias, onde há menos policiais. Mobiliza homens com
antecedentes, veículos (roubados), armas e dinheiro, muitas vezes obtidos em um
estado diferente daquele onde o crime será cometido. Um governo pode
identificar essa movimentação e alertar os demais. Segundo Pereira, a PEC não
foi votada ainda por ser complexa. Antes de ficar pronta, era alvo de críticas
de governadores direitistas, caso de Castro. Claro, eles preferem deixar tudo
do jeito que está para continuarem a enfrentar o problema à bala, de olho nas
urnas. No embalo da carnificina no Rio, Lula e seus ministros voltaram a
insistir na votação da PEC. O relator na Câmara dos Deputados em uma comissão
especial promete um parecer em novembro.
O governador e o Ministro da Justiça
anunciaram a criação de um “escritório emergencial”
No Senado, será instalada, em 4 de novembro,
a CPI do Crime Organizado, requerida em junho pelo senador policial Alessandro
Vieira, do MDB de Sergipe, que deve tentar se reeleger em 2026. Segundo ele,
“não é pauta eleitoreira, é urgência nacional”. E é. Hoje existem “franquias”
do PCC e do CV no Nordeste, por exemplo, diz um delegado da Polícia Federal. A
aliança interessa aos grupos paulista e carioca por causa do controle de rotas
do tráfico de drogas. As franquias, prossegue o policial, costumam ser ainda
mais violentas do que a turma do Sudeste, a fim de exibir força e poder.
Na semana anterior ao massacre no Rio, a
polícia paulista tinha feito uma operação contra um plano do PCC de matar um
promotor, Lincoln Gakiya, e o chefe dos presídios no oeste do estado, Roberto
Medina. Gakiya investiga a facção paulista faz duas décadas e é jurado de
morte. Foi quem pediu, em 2019, a transferência de líderes do PCC para
presídios federais, mais rigorosos. Para ele, a facção mudou de estatura e
atingiu o status de máfia, caracterizado por misturar negócios legais e
ilegais, usar a intimidação como método e possuir código de conduta para
membros e territórios controlados. Operações recentes da PF e de forças
estaduais mostraram o PCC envolvido em produção de agrotóxicos, venda de
combustíveis e até comércio de brinquedos. E também em lavagem de dinheiro na
alta roda financeira paulista, como se viu na Operação Carbono Oculto, de
agosto. A necessidade de apostar na inteligência para asfixiar financeiramente
o crime organizado tem sido um mantra de ministros lulistas.
Um levantamento do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, feito em parceria com uma instituição inglesa, mapeou e
dimensionou a presença do crime organizado em quatro atividades legais:
comércio de combustíveis, bebidas, cigarros e ouro. O giro anual seria de 146
bilhões de reais. Desde 2023, o Fórum tem sido cada vez mais procurado por
empresários cismados de que facções estão em suas cadeias produtivas. “Eles
estão envolvidos em teias criminosas e não sabem ao certo, querem ter certeza”,
conta Alan Fernandes, conselheiro do Fórum.
O chefe da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, disse em uma entrevista em 20 de outubro que a penetração do crime organizado na economia formal não é recente, mas se acentuou. Delegados na linha de frente do combate às facções dizem que a tecnologia e o mundo digital colaboram para diversificar os negócios delas e para botar o pé na Faria Lima. Um exemplo são as fintechs. Estas se assemelham a bancos, e muitas vezes são iguais a um. Em algumas hipóteses, não precisam sequer alimentar o Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro. Mantido pelo Banco Central, esse cadastro, conhecido como CCS, é uma lista de correntistas e das instituições onde eles guardam o dinheiro. Uma fintech pode trabalhar com conta-bolsão, a serviço de vários clientes ao mesmo tempo. Quando a Justiça determina a quebra do sigilo de uma conta dessas, não aparecem o CPF e o CNPJ de ninguém, exceto o da fintech. Ficar invisível, um paraíso para criminosos.
Outra novidade, contam delegados, é o poder
bélico alcançado pelo crime organizado, como visto na reação do CV à PM
fluminense. Audácia nunca faltou às facções. Em 2003, o PCC matou um juiz na
cidade paulista de Presidente Prudente e, três anos depois, parou a cidade de
São Paulo em resposta à decisão do governo estadual de transferir líderes da
facção para presídios de segurança máxima. Agora, há mais instrumentos à
disposição da ousadia. Os autores do plano de assassinar Gakiya alugaram uma
casa próxima à do promotor e usaram um drone para conhecer a rotina dele,
conforme descoberto no celular de traficantes presos em julho. Para o promotor,
a morte dele e de Medina completariam o serviço iniciado em setembro com o
homicídio de outro pioneiro na investigação do PCC, o delegado civil aposentado
Ruy Ferraz, em Praia Grande, litoral de São Paulo.
No Rio, os traficantes do CV usaram drones
para jogar granadas na polícia. Não é difícil comprar um equipamento desses na
internet. Idem para armas de estilo militar, como fuzis. Estes estão mais
presentes nas ruas, inclusive, por decisões do governo Bolsonaro. Recorde-se: o
capitão incentivou a existência de CACs (caçadores, atiradores e colecionadores
de armas), hoje um batalhão de 992 mil civis armados, e aumentou os limites de
compra de fuzis e munições. Em julho do ano que vem, vencem os registros dos
CACs, e a PF pretende fazer uma limpa no cadastro.
Sem disparar um único tiro, operação da PF
sequestrou 1,2 bilhão de reais do PCC
Um delegado experiente na investigação de
facções afirma, sem medo de errar, que a maior parte dos fuzis do crime organizado
não é mais de fora do Brasil. É feita aqui dentro, em fábricas clandestinas que
usam impressoras 3D e peças avulsas importadas separadamente. Em agosto, a PF
fechou uma fábrica dessas em Santa Bárbara d’Oeste, no interior paulista, que
era capaz de produzir 3,5 mil fuzis por ano e os negociava com o Comando
Vermelho. Uma história iniciada em 2023, com a apreensão de 47 fuzis em uma
mansão no Rio. Aquelas armas estavam com um “empresário”, Silas Diniz Carvalho,
que era dono de uma indústria moveleira em Minas Gerais, utilizada também para
fabricar armamento. A unidade em Santa Bárbara nasceu, mesmo com Carvalho em
prisão domiciliar, a fim de contornar o desmantelamento da unidade mineira.
Agora em outubro, a PF foi às ruas na Operação Forja para prender outros
envolvidos no esquema de Carvalho.
Permitir a decretação de intervenção judicial
em empresas associadas ao crime organizado é uma das medidas da Lei Antifacção
preparada pelo Ministério da Justiça. Lula ainda precisa dar aval, antes de o
projeto ir ao Congresso. Atacar as organizações criminosas enquanto estruturas
empresariais é um dos pilares da proposta de Lewandowski. Outras medidas que
vão nessa linha são a autorização legal para infiltrar firmas fictícias em
esquemas e a ampliação das possibilidades de confisco do patrimônio de réus e
investigados. O projeto prevê ainda novas medidas investigatórias. Conversas
entre advogados e detentos seriam todas gravadas, para impedir que líderes de
facções que estão em presídios transmitam ordens para a tropa nas ruas. Isso já
ocorre nos cinco presídios federais, não nos estaduais. Outra medida seria
permitir que um delator continue a trabalhar para o crime e seja um espião.
Pela lei atual, um delator precisa comprometer-se a abandonar qualquer
atividade criminosa logo de cara.
A proposta tem ainda um pilar punitivista. A
pena máxima para um participante de organização criminosa subiria de oito para
dez anos. Ficaria criado um ilícito novo, o da “organização criminosa
qualificada”, com pena de até 15 anos e caráter hediondo. Esse tipo penal seria
caracterizado por domínio territorial e controle de atividade econômica pelos
criminosos. Em certos morros do Rio, o correio não entra, as encomendas são
entregues em um depósito, e os moradores precisam buscar ou pagar uma taxa de entrega
à facção. Pedágios assim são exigidos também para o morador ter água, luz e
internet. “Tem que retomar o controle territorial, sem isso não há como
combater as facções”, afirma um delegado. O Ministério da Justiça finalizará em
breve um projeto piloto de retomada territorial, similar à experiência das
UPPs. O teste deverá ser feito em uma cidade do Nordeste.
O desafio do crime organizado é tão grande
que o presidente Lula acaba de sancionar uma lei de autoria de um
arqui-inimigo, o senador Sergio Moro. Essa lei busca punir quem atrapalha a
investigação de facções e tem dispositivos para proteger as forças de segurança
que estão na linha de frente no combate às organizações criminosas.
Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital, em 05 de novembro de 2025.

Nenhum comentário:
Postar um comentário