DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Ante a perspectiva de execução da iraniana por lapidação ou forca, Lula poderia também se inquietar pelo fato de o Brasil ser um dos países em que mais se lincha
A notícia de que a lapidação de Sakineh Mohammadi Ashtiani, a iraniana condenada à morte por apedrejamento, teria sido comutada para enforcamento trouxe um estranhíssimo alívio para os que se manifestaram contrários à pena e à execução. Embora punições desse tipo ocorram frequentemente nos vários países em que se aplica a lei da sharia, pelo apedrejamento ou pela mutilação dos condenados, o caso de Sakineh teve no Brasil curiosa repercussão.
Num comício eleitoral em Curitiba, na campanha de Dilma Roussef para a Presidência da República, fora da pauta e fora da agenda do que de um presidente da República se espera, Lula, levado pelo seu costumeiro entusiasmo em ajuntamento público, ofereceu à condenada do Irã asilo no Brasil. Foi longe: "Se vale minha amizade e carinho que tenho por (Mahmoud) Ahmadinejad, se essa mulher está causando um incômodo, nós a receberíamos no Brasil". A bravata foi mais longe ainda. Referindo-se a Dilma, insistiu: "Quando ela for eleita, vai telefonar (para o presidente do Irã) e dizer: companheiro Ahmadinejad, meu companheiro Lula pediu que você não fizesse isso". Pouco depois, numa reunião do Mercosul, na Argentina, justificou-se dizendo que é cristão.
É inacreditável que as relações diplomáticas do Estado brasileiro fiquem à mercê dessa retórica de botequim e de amplos desconhecimentos e omissões em face do problema. Do chefe de Estado era de esperar que declarasse em palácio e não na rua que o Brasil adotaria cautelas para evitar que um país que tem tal concepção da Justiça e do castigo pudesse dispor da possibilidade de vir a ter a bomba nuclear, muito mais perigosa ao gênero humano.
O presidente do Brasil poderia ter se inquietado com o fato de que o país que governa está entre os que mais lincham no mundo e que, de 2.028 linchamentos documentados aqui ocorridos nos últimos 60 anos, em 12,1% deles, ou em 246 casos, o condenado morreu ou foi gravemente ferido por apedrejamento. A diferença é que no Irã eles de preferência apedrejam mulheres e nós, de preferência, apedrejamos homens. Gilberto Freyre, em suas referências à influência da cultura muçulmana nos costumes brasileiros, poderia ter incluído a lapidação. Nossas práticas, nesse capítulo, são mais refinadas porque influenciadas por técnicas e concepções herdadas da Inquisição, dita cristã, que fazia espetáculo público da queima de pessoas vivas.
O linchamento entre nós não é violência impensada. Por isso, prefiro me referir a suas vítimas como condenados. Em 14 casos o ritual se explicitou sob a forma de julgamento, até com voto dos jurados. Num caso ocorrido em 1984, no bairro de Cidade Dutra, em São Paulo, Osvaldo P., de 33 anos, ficou sabendo como é que isso funciona. Saído da cadeia havia três dias, após cumprir pena por três anos, era conhecido como traficante de maconha e pelo uso de drogas, por furtos, por espancamento de moradores e por expulsar moradores do bairro. Na manhã do dia 2 de abril foi agarrado por um grupo de moradores e levado para um bar.Os que chegavam, homens, mulheres e crianças, passaram a participar do julgamento. Ouviu as acusações, houve votação e foi condenado à morte. Pediu para ver os dois filhos pequenos, o que lhe foi negado. Os julgadores lhe ofereceram cachaça. Foi, então, morto a pedradas, pauladas e pontapés. Seu corpo foi arrastado pela rua. Houve festa para comemorar a morte. Quarenta e duas pessoas assumiram sua participação no justiçamento.
No sertão da Bahia, em 1996, ocorreu uma das manifestações extremas do linchamento brasileiro. Edvaldo S., de 19 anos, havia tentado estuprar sua antiga professora de escola, de 29 anos, que morava sozinha com a avó cega. Como ela resistisse, feriu a avó e perseguiu-a, matando-a a golpes de facão. Acabou preso e levado para a cadeia de Euclides da Cunha.
Ante a perspectiva de execução da iraniana por lapidação ou forca, Lula poderia também se inquietar pelo fato de o Brasil ser um dos países em que mais se lincha
A notícia de que a lapidação de Sakineh Mohammadi Ashtiani, a iraniana condenada à morte por apedrejamento, teria sido comutada para enforcamento trouxe um estranhíssimo alívio para os que se manifestaram contrários à pena e à execução. Embora punições desse tipo ocorram frequentemente nos vários países em que se aplica a lei da sharia, pelo apedrejamento ou pela mutilação dos condenados, o caso de Sakineh teve no Brasil curiosa repercussão.
Num comício eleitoral em Curitiba, na campanha de Dilma Roussef para a Presidência da República, fora da pauta e fora da agenda do que de um presidente da República se espera, Lula, levado pelo seu costumeiro entusiasmo em ajuntamento público, ofereceu à condenada do Irã asilo no Brasil. Foi longe: "Se vale minha amizade e carinho que tenho por (Mahmoud) Ahmadinejad, se essa mulher está causando um incômodo, nós a receberíamos no Brasil". A bravata foi mais longe ainda. Referindo-se a Dilma, insistiu: "Quando ela for eleita, vai telefonar (para o presidente do Irã) e dizer: companheiro Ahmadinejad, meu companheiro Lula pediu que você não fizesse isso". Pouco depois, numa reunião do Mercosul, na Argentina, justificou-se dizendo que é cristão.
É inacreditável que as relações diplomáticas do Estado brasileiro fiquem à mercê dessa retórica de botequim e de amplos desconhecimentos e omissões em face do problema. Do chefe de Estado era de esperar que declarasse em palácio e não na rua que o Brasil adotaria cautelas para evitar que um país que tem tal concepção da Justiça e do castigo pudesse dispor da possibilidade de vir a ter a bomba nuclear, muito mais perigosa ao gênero humano.
O presidente do Brasil poderia ter se inquietado com o fato de que o país que governa está entre os que mais lincham no mundo e que, de 2.028 linchamentos documentados aqui ocorridos nos últimos 60 anos, em 12,1% deles, ou em 246 casos, o condenado morreu ou foi gravemente ferido por apedrejamento. A diferença é que no Irã eles de preferência apedrejam mulheres e nós, de preferência, apedrejamos homens. Gilberto Freyre, em suas referências à influência da cultura muçulmana nos costumes brasileiros, poderia ter incluído a lapidação. Nossas práticas, nesse capítulo, são mais refinadas porque influenciadas por técnicas e concepções herdadas da Inquisição, dita cristã, que fazia espetáculo público da queima de pessoas vivas.
O linchamento entre nós não é violência impensada. Por isso, prefiro me referir a suas vítimas como condenados. Em 14 casos o ritual se explicitou sob a forma de julgamento, até com voto dos jurados. Num caso ocorrido em 1984, no bairro de Cidade Dutra, em São Paulo, Osvaldo P., de 33 anos, ficou sabendo como é que isso funciona. Saído da cadeia havia três dias, após cumprir pena por três anos, era conhecido como traficante de maconha e pelo uso de drogas, por furtos, por espancamento de moradores e por expulsar moradores do bairro. Na manhã do dia 2 de abril foi agarrado por um grupo de moradores e levado para um bar.Os que chegavam, homens, mulheres e crianças, passaram a participar do julgamento. Ouviu as acusações, houve votação e foi condenado à morte. Pediu para ver os dois filhos pequenos, o que lhe foi negado. Os julgadores lhe ofereceram cachaça. Foi, então, morto a pedradas, pauladas e pontapés. Seu corpo foi arrastado pela rua. Houve festa para comemorar a morte. Quarenta e duas pessoas assumiram sua participação no justiçamento.
No sertão da Bahia, em 1996, ocorreu uma das manifestações extremas do linchamento brasileiro. Edvaldo S., de 19 anos, havia tentado estuprar sua antiga professora de escola, de 29 anos, que morava sozinha com a avó cega. Como ela resistisse, feriu a avó e perseguiu-a, matando-a a golpes de facão. Acabou preso e levado para a cadeia de Euclides da Cunha.
Silenciosamente, durante a noite, um grupo de moradores do bairro rural do acontecimento desembarcou de um caminhão na porta da guarnição da Polícia Militar em que se achava o preso.
Rendeu os 14 soldados, arrombou a cela, embarcou o preso e dirigiu-se ao local em que a moça fora morta. No caminho, cortou as orelhas de Edvaldo, depois castrou-o, esquartejou-o vivo no local em que cometera o crime e queimou-o.
Nos dois casos e em muitos outros são esses os ritos de desconstrução do corpo do condenado e, no modo da execução, de destituição simbólica de sua condição humana à vista do crime que originalmente o desumanizara. Portanto, no Brasil e no Irã, muito mais do que crueldade.
Nos dois casos e em muitos outros são esses os ritos de desconstrução do corpo do condenado e, no modo da execução, de destituição simbólica de sua condição humana à vista do crime que originalmente o desumanizara. Portanto, no Brasil e no Irã, muito mais do que crueldade.
José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. é autor, entre outros livros, de Aparição do demônio na fábrica (Editora 34)
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