O ex-ministro José Dirceu trocou o hotel onde despachava no Setor Hoteleiro Sul, em Brasília, por uma casa às margens do Lago Paranoá de onde pretende travar a "batalha final do mensalão". Em geral, Dirceu fica de terça-feira a quinta-feira na cidade, organizando as defesas política e jurídica do processo em que é acusado de chefiar um esquema de compra de votos no Congresso, no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Ícone da geração dos anos 60, Dirceu não se conforma de ter se transformado em bandido "em menos de 48 horas", mais ou menos o tempo decorrido entre a entrevista que o presidente do PTB, Roberto Jefferson (RJ), concedeu à jornalista Renata Lo Prete e sua publicação no jornal "Folha de S. Paulo", no dia 6 de junho de 2005, acusando o PT de pagar mensalão a congressistas em troca de votos para aprovar projetos de interesse do governo federal.
Pouco importa dizer se era "mensalão", como batizou Jefferson, "mesada", como se queixavam os deputados que não entraram na folha de pagamentos (mas tinham conhecimento dele) ou caixa dois, nome pelo qual o esquema mais tarde viria a ser oficializado por seus autores. O que importa é que o esquema virou um fato político que por pouco não levou Lula a ter o mesmo destino de seu oponente nas eleições presidenciais de 1989. Talvez o maior escândalo político da história do país (houve outros como o Plano Cohen e a crise que levou Getúlio Vargas ao suicídio).
Convocação de Dirceu é um apelo à anarquia política
A julgar pelo que dizem nove entre dez advogados de Brasília, Dirceu tem boas chances de ser absolvido. Faltariam provas concretas para incriminar o ex-ministro. Jogam contra o ex-líder estudantil preso em Ibiúna (SP) por combater a ditadura militar o comportamento autoritário e os sinais de que não pretende aceitar um julgamento democrático, realizado dentro das normas legais. No sábado, dirigindo-se a uma plateia de jovens socialistas, Dirceu tornou público o que há algum tempo vem dizendo em particular.
"Todos sabem que este julgamento é uma batalha política. E essa batalha deve ser travada nas ruas porque senão a gente só vai ouvir uma voz, a voz pedindo condenação, mesmo sem provas". Dirceu até já condenou por antecipação - como julga terem feito com ele os que o denunciam por ter feito o mensalão: "É a voz do monopólio da mídia", disse, aplaudido por um auditório de 1,1 mil jovens que acorreram à Uerj para participar do 16º Congresso Nacional da União da Juventude Socialista, patrocinado pelo PCdoB.
Em suas conversas, Dirceu insiste para que seu passado seja considerado, diz que nunca foi um deputado da emendas parlamentares, mas sempre de militância política, e que nos 30 meses que participou do governo Lula nunca recebeu sequer uma repreensão do Tribunal de Contas (TCU). Passou a fazer consultorias para ter uma independência econômica. Na última eleição presidencial, fez 70 viagens aos Estados para defender a candidatura Dilma. Entrou no PT por baixo e saiu como presidente, para ocupar o cargo mais poderoso do governo Lula. Algumas vezes admite voltar a fazer política, em outras, que se voltar terá de deixar as consultorias. Na realidade, ele praticamente não faz outra coisa.
Dirceu convoca os estudantes para a batalha final. Esquece talvez que no último trimestre do ano passado, chegou a florescer um movimento contra a corrupção, essencialmente de classe média, mas que não tinha apenas o PT ou o mensalão como objeto. Era evidente que as sucessivas investidas da presidente Dilma Rousseff contra ministérios contaminados pela roubalheira também serviam de elemento indutor da campanha, que não chegou a ter as proporções esperadas. À época, vivia-se o clima da Praça Tahrir e muitos apostavam no poder de mobilização dos internautas, provavelmente sem levar em conta fatores de ordem social que ocorriam no Egito.
O que o ex-ministro José Dirceu propõe é de risco e talvez leve em consideração apenas uma vaidade icônica dos anos. Não há dúvida de que se levar a juventude para as ruas, Dirceu provocará uma reação em igual medida. Em uma conversa em sua nova moradia de Brasília, recentemente, ele especulou sobre essa possibilidade e não teve pressa nem dúvidas para responder. "Se for para a mobilização, nós mobilizamos 100 vezes mais", disse, com naturalidade. Dirceu diz que quer olhar nos olhos dos que o acusaram: "Eu tenho que provar minha inocência. Eu deveria ter a presunção da inocência".
É evidente que a sociedade não pode negar a José Dirceu um direito que é seu: um julgamento justo, dentro das regras estabelecidas do jogo democrático. "Eu quero ser julgado", costuma dizer aos que o visitam. Mas o que quer dizer José Dirceu quando chama jovens às ruas para disputar um "batalha" e não simplesmente acompanhar - e até apoiá-lo - a vitória da democracia? E se Dirceu for condenado, o erro estará nas bases nas quais se assentam nossa democracia?
O curioso é o argumento de José Dirceu, segundo o qual será "ilegítima" qualquer decisão do Supremo tomada sob a pressão da opinião pública. É uma contradição de quem não deixa as ruas atrás do apoio da militância de esquerda "para a batalha final" de uma guerra política cujo inimigo principal é a mídia, segundo ele mesmo declara.
Quando voltou ao Congresso, depois de deixar a Casa Civil, Dirceu levou consigo uma vigilante tropa de choque, cujo refrão, durante seu discurso, era: "O Zé Dirceu/É meu amigo/Mexeu com ele/Mexeu comigo". A Câmara dos Deputados, ao cassar o mandato de José Dirceu, pelo visto mexeu com um grande número de pessoas. Mas o tempo passou, Lula se reelegeu, Dilma é a presidente da República, José Dirceu ainda é sucesso de público entre correntes do PT, mas o que o partido está preocupado mesmo é com a próxima eleição municipal e com a "marolinha" que vem da Europa. Essa sim, capaz de provocar o armagedon que Dirceu imagina se for condenado.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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