- O Estado de S. Paulo
Fascinados pelo novo e por melhorias contínuas na vida material, nós, brasileiros, cultivamos um apreço mais do que vocabular ou momentâneo pela ideia de mudança. Essa ideia, que está no centro das representações acerca da trajetória do país, é parte integrante da nossa forma de ser. Não é sem razão que ela ocupa um lugar preferencial no discurso político, sendo ressignificada pelos atores conforme as encruzilhadas que se apresentam a cada conjuntura mais "quente", nas quais os embates invariavelmente acabam por opor personalidades, forças políticas, programas, estratégias e projetos, no mais das vezes entendidos como distintos e até mesmo antagônicos, mesmo que isso apenas revele a superfície das coisas.
Há quem entenda mudança como uma "ruptura no tempo histórico", identificando-a com a noção de revolução. Como se sabe, em nossa História, a revolução foi uma ideia mais vocalizada do que realizada. Nos dias que correm, essa vocalização é um eco tão distante quanto irreconhecível. Após o colapso do "comunismo histórico", a revolução deixou de governar o sentido de futuro da História.
Por essa razão, no Brasil aqueles que vinculavam mudança à revolução, depois de conquistarem o governo, passaram a referir-se aos projetos que implementavam por meio da expressão "grande transformação" - uma espécie de colagem construída sem muito rigor e indecifrável em seu sentido estratégico. Não se sabe ao certo se a inspiração para tal expressão adviria das mudanças notavelmente registradas por Karl Polanyi a respeito do capitalismo europeu do final do século 19 ou da recente trajetória chinesa de abandono da modernidade anticapitalista - comunista, em suma - e sua adesão vigorosa à economia de mercado. Na incerteza, o que parece correto é que, nesse caso, a revolução cedeu lugar a orientações de renovação econômica, tão claudicantes quanto frágeis - como se vem comprovando -, combinadas com programas sociais extensivos e focalizados que jogaram para longe toda e qualquer noção de universalidade.
Em contraposição, fora do universo apenas discursivo, mudanças a partir da ordem são mais comuns do que se pensa. Elas podem ser positivas ou negativas, podem ser impostas violentamente ou ser adotadas por consenso. Por rudes e grosseiros, governantes sem qualidades, pouco afeitos ao mundo da política democrática, imaginam que duvidosas alterações na estratificação da renda e nas dinâmicas de consumo por eles promovidas podem ser qualificadas como "revoluções silenciosas". Ignoram o fato de que a História pode mudar molecularmente, pressionada pela potência que vem dos subterrâneos da terra e que, no mais das vezes, é imperceptível. Iludem-se com realizações que não são suas. Por isso esse tipo de mudança nem sempre é adequadamente compreendido e assimilado pelo universo da política, uma vez que a natureza dos fatos pede umavirtù geralmente escassa nos políticos. Destes, os mais prepotentes imaginam que surfar na onda mudancista pode garantir-lhes a eternização no poder. Contudo uma dinâmica de tal natureza, mais comum do que se pensa, emerge hoje de forma combinada com a complexidade que definitivamente se instalou na sociedade do hipermodernismo, exigindo a ultrapassagem do velho paradigma mudancista expresso na frase "plus ça change, plus c'est la même chose", no qual, como nos ensinou Gramsci, a conservação dirige e condiciona a mudança.
O Brasil esteve sob o signo da mudança em diversos momentos da sua História recente. Na conclusão da longa travessia em que se processou o trânsito do autoritarismo para a democracia, o brado de "muda Brasil", proferido por Ulysses Guimarães ao saudar a Constituição cidadã de 1988, deu o sentido preciso da mudança para os anos que se seguiram: a conquista e ampliação dos direitos de cidadania. Essa tarefa deveria ser executada pelo Estado e por uma sociedade que gozasse cada vez mais de autonomia para livremente buscar realizá-la em ambiente democrático crescente. A partir daí, a ideia de mudança conectou-se com a de democracia política, promovendo um movimento de ascensão sem precedentes da cidadania no País, sancionado até mesmo por uma Constituição - também ela - aberta à mudança.
A vitória eleitoral do PT para a Presidência da República em 2002 impôs outro rumo àquele processo de democratização. A despeito de reconhecidos avanços, a partir daí o governo Lula engoliu e bloqueou a livre movimentação da sociedade, estatizando os movimentos sociais. Isso interrompeu a trajetória ascendente do processo de mudança que havia começado com a conquista da transição e com a elaboração da Constituição de 1988. Esse redirecionamento, muito bem qualificado por Luiz Werneck Vianna como "o Estado Novo do PT", deu roupagem nova à longeva "revolução passiva" à brasileira. Ao invés de se alçar como representação de toda a sociedade e adentrar o universo estatal com autonomia e com uma pauta própria de avanço da democracia em termos sistêmicos e civilizatórios, a política dos subalternos seria substituída, pelo alto e como dádiva, pelas benesses do Estado. Capturada, a política dos subalternos passaria a estar enredada - como comprovado está - nos anéis da corrupção.
Hoje estamos outra vez às voltas com a ideia de mudança. Se, em seu tempo, ela se chamou "Diretas Já", para logo em seguida ganhar o nome de Constituição cidadã, nos dias que correm a mudança parece construir seu imaginário na reafirmação do sentido público das instituições do Estado e no desejo de revivescer na sociedade espaços que fortaleçam ou façam surgir autonomamente novos sujeitos democráticos. O que significaria uma ultrapassagem dos termos colocados pela rude hegemonia que se estabeleceu nos últimos anos.
* Historiador, é professor titular da Unesp
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