• Já é tempo de avançar além da receita do Banco Mundial, rumo à qualificação dos direitos sociais
- Folha de S. Paulo
Conceitualmente, O Bolsa Família não nasceu com Lula, nem com FHC, mas no laboratório político do Banco Mundial. O "objetivo abrangente" de redução da pobreza, proclamado em 1991 por Lewis Preston, presidente do banco, seria alcançado por meio de políticas focadas de transferência de renda. Era uma resposta estratégica ao pensamento de esquerda, concentrado em reformas sociais, e um programa de ação para o ciclo aberto pela queda do Muro de Berlim. FHC a adotou sem o entusiasmo dos conservadores, encarando-a como um emplastro civilizatório que não substituiria iniciativas fortes do Estado nas esferas da educação e da saúde. Lula não só a abraçou como serviu-se dela para ancorar eleitoralmente seu sistema de poder.
Quando Lula fulminou o Bolsa Escola com o epíteto de "bolsa esmola", operava no registro tradicional do pensamento de esquerda. Na hora da chegada ao poder, sob a inspiração de José Graziano da Silva, perseverou naquele registro e lançou o Fome Zero, que não era um programa de transferência de renda. Graziano analisara de modo realista os rumos da formação do complexo capitalista do agronegócio, em duas obras significativas, publicadas na década de 1980, mas sonhava com o florescimento de uma agricultura familiar autônoma. No esquema do Fome Zero, sob o amparo estatal, pequenos produtores locais forneceriam os alimentos para a mesa dos pobres. O Bolsa Família surgiu dos escombros do Fome Zero.
O experimento utópico do Fome Zero nem decolou. No início, seus escassos críticos sofreram o bombardeio ideológico de acadêmicos de esquerda encantados com o lulismo. Contudo, depois de 388 dias de inércia, Lula demitiu Graziano do Ministério Extraordinário e promoveu o giro pragmático que conduziria à unificação dos programas de transferência de renda de FHC (a "bolsa esmola") no Bolsa Família. Naquele momento, cessaram as resistências de esquerda à estratégia conservadora de combate à pobreza e, no lugar delas, emergiu o coro dos contentes, a proclamar a aurora de uma nova era.
Lula descobriu uma virtude político-eleitoral da expansão das transferências diretas de renda: o impulso ao consumo popular (de material de construção, eletrodomésticos e celulares) propiciava-lhe a chance de congelar a agenda de reformas na educação e na saúde públicas. O Bolsa Família tornou-se o núcleo de um conjunto de políticas focadas que abrangem, notadamente, o crédito consignado e as bolsas do ProUni. Nas eleições, o espectro da supressão dos benefícios monetários passaria a figurar como linha de ataque permanente do PT contra qualquer adversário. Simplificado ao extremo, o tema tão decisivo do combate à pobreza convertia-se em monopólio de um partido.
Os tucanos sentiram o golpe, girando em círculos à procura de uma resposta. Desorientados, chegaram a ensaiar, nos piores momentos, a reprodução da primitiva réplica original de Lula. O prumo começou a ser reencontrado por Aécio Neves, que anunciou o compromisso de entalhar o programa na pedra da lei, fazendo-o "política de Estado, não de governo". Transferir o Bolsa Família do campo minado da disputa partidária para o das políticas públicas nacionais será um passo adiante, do ponto de vista da disputa eleitoral democrática. Mas, do ponto de vista conceitual, ainda estaríamos atrás do patamar atingido no governo FHC.
"Vemos as filhas do Bolsa Família transformarem-se nas mães do Bolsa Família", alertou Eduardo Campos meses antes de sua morte trágica, para indagar: "Queremos vê-las transformando-se em avós do Bolsa Família?". O círculo da pobreza e da dependência não pode atravessar gerações, sob pena de darmos razão ao Lula ancestral que clamava contra o "bolsa esmola". Já é tempo de avançar além da receita do Banco Mundial, rumo à qualificação dos direitos sociais universais. A bolsa não é a vida.
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