Marcelo Coelho – Folha de S. Paulo
Como chegamos a esta crise? Adoto o sentido anti-horário, isto é, indo do fim para o começo. Uma das coisas que mais me chamam a atenção é a ruptura final do vice-presidente Michel Temer.
O governo já afundava, é claro, mas exatamente por isso já se colocava a hipótese de uma discreta "tomada de poder" pelo peemedebista, com Dilma honrosamente entronizada como uma espécie de rainha da Inglaterra.
Sem dúvida, a personalidade da presidente e as resistências do PT impediram esse projeto. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, era bem mais difícil de tourear. O Planalto confiou, talvez, que uma rápida cassação poderia neutralizá-lo antes de qualquer pedido de impeachment.
O ambiente, de qualquer modo, já era de profunda crise econômica, alimentada pelos pressupostos da campanha petista à reeleição, em 2014. Quem não se lembra do anúncio mostrando uma família à mesa, sem comida, criada por João Santana para identificar Marina com os interesses dos bancos?
Era a estratégia do medo, já que outros caminhos emocionais –a esperança ou a denúncia– estavam barrados para o PT. De bom grado, imagino, a campanha apostou naquilo que as teorias econômicas heterodoxas recomendam para situações de crise: mais gastos do governo.
Já temos o eleitorado do Bolsa Família, devem ter pensado. Boa parte da classe média já estava perdida desde o mensalão. A outra votaria no PT do mesmo jeito. Quanto ao empresariado, providenciaram-se isenções fiscais.
O esquema tinha lógica: os gastos públicos alimentavam as empreiteiras, e estas (legalmente ou não), a campanha do partido. Alimentava-se, ademais, a necessidade petista de conciliar-se com suas origens ideológicas, e de estigmatizar um adversário com o qual, em muitos aspectos, identificava-se mais e mais.
Tratava-se também da resposta possível ao terremoto das manifestações de junho de 2013. A quantidade de protestos pelo país inteiro, surgidos de repente, representava um enigma que se tentou resolver de várias maneiras.
Expressava-se, com certeza, grande insatisfação face aos serviços públicos –ironicamente, as esferas estaduais e municipais tinham igual ou maior responsabilidade nesse ponto, ainda mais nos grandes centros urbanos.
Expressava-se, entretanto, também uma crise de representação política –coisa que o governo petista tentou contornar numa proposta de reforma eleitoral ou constituinte exclusiva sobre a qual ninguém quis ou conseguiu se entender.
Em terceiro lugar, havia em junho de 2013 o esgotamento da retórica triunfalista dos "bons anos" –os do "nunca antes neste país". A Copa do Mundo, que seria o coroamento da era Lula, representou na verdade a elevação do nível das exigências populares –o "padrão Fifa".
Mais um aspecto: as condenações do mensalão mudaram a percepção de boa parte da sociedade a respeito de si mesma e de seu próprio poder. Começou a ser possível sonhar com um "país sério"; algumas coisas deixavam de ser admitidas automaticamente.
Este último fator traz consigo outro mistério: o papel do Ministério Público e da Polícia Federal. Como foi possível, se admitirmos que Lula e José Dirceu possuem um bocado de astúcia, que as coisas não tenham sido abafadas?
É que toda tentativa de abafamento pode ser combatida com informações vazadas à imprensa. Daí, aliás, o vezo de chamar a imprensa de "golpista", ao mesmo tempo em que se ostenta a "independência da PF" como um dos méritos do petismo.
Chego a imaginar uma teoria conspiratória: a de um "megavazamento" (sobre o caso Celso Daniel?) capaz de funcionar como carta na manga da polícia, a ser empregada sempre que (como agora) se tente controlá-la.
Voltando ainda mais no tempo, o mensalão foi sintoma das dificuldades do PT em se adaptar ao chamado "presidencialismo de coalizão". Uma base parlamentar fisiológica tinha de ser engolida pelos antigos puristas do partido. Corrompê-la no varejo, pagando a cada deputado, foi a tentativa de José Dirceu –e contra isso se insurgiu Roberto Jefferson, presidente do PTB, para quem a fisiologia tinha de passar por ele.
Indo ao fundo da coisa, a eleição de 2002 significava o "Lulinha Paz e Amor", capaz de organizar uma aliança com a direita (o partido de seu vice, José de Alencar) e com o que quer que fosse. O PT estava pronto para qualquer negócio –e demorou um bocado para ir à falência.
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