• Isolada, presidente se penitencia por não se contrapor a tempo ao que considera ‘conspiração’ do próprio vice e por ter se afastado de Lula
Vera Rosa - O Estado de S. Paulo
/ BRASÍLIA - A presidente Dilma Rousseff chega hoje à mais importante batalha de sua vida sem saber se conseguirá sobreviver, mas convencida de que o seu maior erro não foi enveredar pelo caminho do ajuste nem subestimar o desgaste da Operação Lava Jato ou autorizar manobras conhecidas como pedaladas fiscais. Dilma se penitencia pela demora em reagir à “conspiração” dentro do Palácio do Planalto – promovida, no seu diagnóstico, pelo vice-presidente Michel Temer – e por ter se distanciado de seu “criador”, Luiz Inácio Lula da Silva.
Isolada, sem ouvir quase ninguém, a primeira mulher eleita presidente do Brasil viu a crise política crescer dia após dia, mas nunca acreditou que ela pudesse fugir do controle. Nesse outono de intrigas, traições e fuga de aliados, puxada pelo PMDB, o governo, muitas vezes, pareceu atordoado e sem saber para onde ir. “A vida é mais complexa do que parece”, costuma dizer Dilma, desde que sua popularidade despencou.
A senha para uma ofensiva mais dura contra a ameaça do impeachment foi dada pelo próprio Lula, em 4 de março. Naquele dia, o ex-presidente foi obrigado a depor, no âmbito da Lava Jato, e a Polícia Federal cumpriu mandado de busca e apreensão em sua casa e no Instituto Lula.
A cúpula do PT, em rota de colisão com Dilma, temeu a prisão de seu maior líder.
Foi a partir daí que a narrativa do “golpe” e da associação de Temer com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) – réu em ação autorizada pelo Supremo Tribunal Federal, acusado de desviar recursos da Petrobrás –, ganhou força como estratégia de sobrevivência política de Dilma, de Lula e do PT.
“Se a gente não se mexer, vai acabar morrendo”, disse Lula após sair do depoimento, em conversa a portas fechadas com dirigentes do PT, em São Paulo. Dois interlocutores do ex-presidente disseram ao Estado que ele se arrependeu de não ter tentado um acordo com Dilma para ser candidato, em 2014. Já àquela época, temia que sua afilhada, mesmo ganhando, não conseguisse governar
“Vocês podem não gostar dela, mas é o nosso projeto que está em jogo. Não podemos sair das ruas. Precisamos defender a Dilma”, insistiu ele, na sede do PT.
Jararaca. Diante das câmeras de TV, logo em seguida, Lula não deixou dúvidas de como seria a reação. Tudo foi montado para proteger o ex-presidente, único nome que o PT dispõe, até agora, para disputar a sucessão de Dilma. “Se quiseram matar a jararaca, não bateram na cabeça. Bateram no rabo e a jararaca está viva, como sempre esteve”, gritou Lula, naquele 4 de março.
Treze dias depois, com o Planalto cercado por seguranças e manifestantes na Praça dos Três Poderes, Lula tomava posse como ministro da Casa Civil, mas sua nomeação foi suspensa por decisão judicial e até hoje aguarda julgamento do Supremo.
Na véspera, o vazamento de uma conversa entre Dilma e o líder petista, gravada pela Polícia Federal, agitou o mundo político e causou outro estrago. Pelo telefone, a presidente dizia a Lula que enviaria a ele o “termo de posse” no Ministério, para uso “em caso de necessidade”.
Os investigadores da Operação Lava Jato interpretaram o diálogo grampeado como uma tentativa de Lula de fugir da alçada do juiz Sérgio Moro, de primeira instância, e ganhar foro privilegiado no Supremo Tribunal Federal. A crise se agravou ainda mais.
O desarranjo na economia, com forte recessão e desemprego, fez um ministro do PT apostar no pior cenário, na semana passada. O argumento dele era simples: em 2005, no escândalo do mensalão, Lula e o partido conseguiram dar a volta por cima porque as pessoas tinham “dinheiro no bolso”, situação oposta à de hoje.
Sem o marqueteiro João Santana – preso em fevereiro pela Lava Jato –, o governo acabou agindo de acordo com estratégia definida por Lula, guiada por pesquisas de opinião.
Foi dele a ideia de carimbar o impeachment como “golpe”, manobra para “sentar na cadeira antes da hora” e também de ligar Temer e Cunha a um conluio dos que querem interromper o combate à corrupção. Na última hora, Dilma divulgou um vídeo nas redes sociais, acusando Temer de querer acabar com programas como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida. “É uma mentira rasteira”, reagiu Temer.
Sem poder despachar no Planalto, Lula tem usado uma suíte do hotel Royal Tulip, em Brasília, como “bunker” de negociações políticas. Há quase um mês, recebe deputados, senadores, dirigentes de partidos e até governadores. “Nunca pensei que chegássemos a essa situação tão crítica”, desabafou ele.
Aos mais próximos, Lula contou que se arrependeu de ter aceitado a Casa Civil, no momento em que a Polícia Federal e o Ministério Público investigam a propriedade de um sítio em Atibaia e de um triplex no Guarujá.
“Ficou parecendo que eu queria me salvar, mas não era isso”, afirmou Lula, que nega ser dono dos imóveis. “A Dilma me fez um apelo desesperado. Em agosto, ela já tinha me convidado e eu respondi: ‘Se nem Fidel e Che couberam em Cuba, como nós dois vamos caber no mesmo Palácio? Eu disse que poderia presidir o Conselhão, mas ela não quis. Não podia ver o governo desmoronando e não fazer nada. Eu tinha que ajudar”, emendou ele, numa referência ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.
‘Não passarão’. A entrada de Lula no governo, ainda que não consumada oficialmente, provocou novos protestos e atiçou a oposição. Mas o Planalto também foi pego no contrapé com a delação premiada do senador Delcídio Amaral (ex-PT-MS). Ex-líder do governo no Senado, Delcídio acusou Dilma de interferir na Lava Jato por meio Supremo e do Superior Tribunal de Justiça. Afirmou, ainda, que foi Lula quem o mandou procurar o ex-diretor da Petrobrás Néstor Cerveró, para impedir que ele contasse o que sabia. Temer e o senador Aécio Neves (MG), presidente do PSDB, também foram citados por Delcídio, que envolveu 74 pessoas em seus depoimentos.
“Nunca pensei que ele fosse esse canalha”, disse o ministro do Gabinete Pessoal da Presidência, Jaques Wagner. “Nós precisamos reagir à destilaria de ódio”. Na batalha, o Planalto foi transformado em tribuna contra o impeachment e teve seus salões tomados por juristas, professores, estudantes, mulheres e representantes de vários movimentos, que se revezavam ao microfone.
No último dia 7, a aposentada Maria José Pereira Said, de 87 anos, se postou ao pé da rampa que liga o Salão Nobre ao terceiro andar do Planalto, onde fica o gabinete presidencial, no fim de uma manifestação promovida por mulheres.
“Força, Dilma!”, exclamou ela. Cercada por seguranças, a presidente voltou alguns passos, agachou-se e deu um beijo nos cabelos brancos de dona Zezé. Tinha os olhos marejados.
Com o grito de guerra “Não Passarão” – lema da resistência republicana durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) – e o mote da defesa da democracia, o PT conseguiu, a duras penas, reconquistar movimentos sociais e até intelectuais que haviam se afastado do partido, após os escândalos de corrupção.
Mesmo assim, o protesto de 13 de março – a maior manifestação da história do País – aumentou a pressão pela saída de Dilma. Naquele dia à noite, em reunião com ministros, no Palácio da Alvorada, ela não escondeu o abatimento. “Uma das características estarrecedoras daquela manifestação foi a rejeição da política”, disse a presidente, na quarta-feira, a jornalistas. “Isso nunca levou a nada de bom”.
Com Lula no palanque, os contrários ao impeachment foram às ruas em 18 de março, num ato que surpreendeu o governo pelo tamanho. Voltaram no dia 31, data que marcou os 52 anos do golpe de 1964.
Pouco antes, o PMDB rompeu com o governo e emissários de Temer começaram a negociar a formação de um novo Ministério com antigos aliados de Dilma, como o PP e o PTB. Na tentativa de conter os dissidentes, a distribuição dos cargos foi ampliada por Dilma, mas muitos a abandonaram à própria sorte.
O Palácio do Jaburu, residência oficial do vice-presidente, passou a ser chamado pelo “núcleo duro” do Planalto de quartel-general dos traidores.
Nos bastidores, porém, o governo avalia que a ação de Temer para ocupar a cadeira de Dilma começou bem antes, logo após 8 de março de 2015, quando ela foi alvo de “panelaço” ao fazer um pronunciamento na TV, em homenagem ao Dia da Mulher, e defender o ajuste fiscal.
‘Alô, alô?’. O vice assumiu a articulação política do Planalto com o Congresso em abril daquele ano e, quatro meses depois, entregou o cargo. O movimento marcou sua aproximação com líderes do PSDB, que hoje o apoiam no combate a Dilma. “Desde aquela época, queriam derrubar o governo por dentro”, resumiu o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE).
A relação de Dilma e Temer nunca foi das melhores, mas o casamento de fachada continuava. Em 2014, porém, o vice deu sinais de que a renovação do enlace de papel passado não duraria muito.
Às vésperas da campanha pelo segundo mandato, o telefone tocou no gabinete de Temer. Do outro lado da linha, o tom de voz era tão alto que ele pôs o aparelho longe do ouvido. “Alô, alô, alô?”, repetiu, pausadamente, como se nada ouvisse. Um minuto depois, desligou.
O telefone chamou de novo. Irritada, Dilma continuou o “monólogo” do ponto onde a ligação fora interrompida, pedindo providências para conter Eduardo Cunha, então líder do PMDB, que se voltava contra o governo. “Mas era a senhora ao telefone? Desculpe, não percebi”, respondeu o vice, irônico. “Tinha uma pessoa aí gritando tanto que não dava para saber quem estava falando.”
No primeiro mandato, em 2011, Dilma também ligou para Temer, que estava em São Paulo, para cobrar apoio do PMDB numa votação do Código Florestal. Estava exaltada. “Acho que a senhora ligou para a pessoa errada”, respondeu o vice, que comanda o PMDB. “Eu estou acostumado a lidar com presidentes da República e todos sempre me trataram com muita educação”.
Em dezembro do ano passado, Temer enviou uma carta a Dilma, queixando-se de ter passado quatro anos como um “vice decorativo”. “Que coisa estranha!”, comentou Dilma, ao receber a correspondência no Alvorada.
No início da semana, com o divórcio já em fase adiantada, Temer deixou vazar um áudio a um grupo de deputados do PMDB, no qual apresentava as diretrizes de um “governo de salvação nacional” comandado por ele. “Isso passou de todos os limites”, esbravejou Dilma. “Não vai ficar assim. Quem ele pensa que é? Posa de estadista e age com essa pequenez?”
No Planalto, a mensagem do vice foi batizada de WhatsApp ao Povo Brasileiro, referência jocosa à Carta ao Povo Brasileiro, divulgada por Lula na campanha de 2002, para acalmar o mercado. Ao contrário de 2002, porém, o desfecho dessa história é imprevisível.
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