- O Estado de S. Paulo
O século 20 foi caracterizado como uma era de extremos pelas rupturas, tanto criativas quanto destrutivas, na vida das pessoas num mundo que foi crescentemente se interconectando. Esses extremos, para o bem e para o mal, se prolongam no século 21.
No plano das relações internacionais, a permanência da destrutividade da violência, que a inovação tecnológica amplia e irradia, é um dos dados mais constantes da dinâmica dos extremos. Essa violência expressa as dificuldades da diplomacia em encontrar interesses comuns e compartilháveis. Revela como o sistema internacional não tem sido capaz de bem lidar com o mundo caleidoscópico que resultou dos desdobramentos do término da guerra fria.
Neste mundo, a globalização das emoções, dos ressentimentos e das paixões se conjuga e frequentemente se sobrepõe à razoabilidade dos interesses dos povos e dos Estados.
É o caso do resultado do plebiscito da Grã-Bretanha, em prol da saída da União Europeia. Essa decisão deixa de lado a convergência da reciprocidade de interesses. Explicita a corrosão dos valores que impulsionaram uma das poucas utopias bem-sucedidas da segunda metade do século 20: a lógica da construção, juridicamente acordada, e não imposta, de uma Europa próspera e em paz. A ressonância da candidatura presidencial de Donald Trump nos EUA insere-se nessa moldura, na qual a mobilização interna das emoções deixa em segundo plano a articulação dos interesses americanos no mundo.
A vigência das emoções se vê intensificada também porque as memórias dos povos e dos seus dirigentes nem sempre são compartilháveis. Daí conflitos de valores e perspectivas que dificultam o papel da convergência universalizadora de receios e esperanças. A narrativa da memória da Europa, por exemplo, é muito distinta da do mundo muçulmano e árabe. O desagregador unilateralismo fundamentalista do Estado Islâmico e a intensificação da ação do terrorismo transfronteiras almejam a propagação do medo, que não se amolda aos critérios da razoabilidade diplomática da solução pacífica dos conflitos.
Pode-se dizer que o sistema internacional contemporâneo vive a instabilidade desordenada proveniente da interação de forças centrípetas e centrífugas e está permeado pelos desdobramentos, que têm impacto na dinâmica global da alteração das relações de poder. Na Ásia, as que resultam da primazia da China e da emergência da Índia. No Oriente Médio, as provenientes de um novo e mais significativo papel que passaram a desempenhar na região o Irã e a Turquia.
Nada disso põe em questão com tanta profundidade o valor e o papel de uma comunidade internacional, tal como preconizada no preâmbulo da Carta da ONU, quanto o problema dos refugiados. Com efeito, as nações não estão unidas para efetivamente conterem por uma ação conjunta a emergência em larga escala de uma crescente população de excluídos do mundo.
Estão se repetindo em novos termos no século 21 componentes dos extremos do século 20 que geraram, com o flagelo da guerra e os fanatismos das emoções do poder cego, tantas pessoas sem lugar no mundo.
Na discussão dos extremos no século 21 cabe um paralelismo com os do século 20. Lembro, assim, a análise de Hannah Arendt a respeito daqueles que na Europa pós-1.ª Guerra Mundial se viram, por obra dos totalitarismos, expulsos da trindade Estado-povo-território, tornaram-se indesejáveis não documentados em quase todos os lugares e tidos como descartáveis – ponto de partida dos campos de refugiados, facilitadores dos campos de concentração.
Foi a reação diplomática a essas catástrofes que levou à “ideia a realizar”, que está na origem da ONU, de institucionalizar uma comunidade internacional atenta aos direitos fundamentais e à dignidade do ser humano. Partiu-se conceitualmente do pressuposto kantiano de um direito à hospitalidade universal, lastreado na hipótese de que a violação do direito num ponto da Terra seria efetivamente sentida em todos os demais. É esta a “ideia a realizar” de uma comunidade internacional tuteladora do direito à hospitalidade universal que está hoje em questão de maneira dramática.
Na perspectiva do efeito destrutivo atual dos extremos, cabe sublinhar a trágica precariedade que assola a vida de pessoas nas regiões do que pode ser qualificado de o arco da crise. No Oriente Médio e em partes da África há Estados falidos (como o Iraque e a Líbia), Estados em estado pré-falimentar, conflitos e guerras civis que se prolongam com intervenções extrarregionais, como a que desagrega a Síria, a precariedade e artificialidade de fronteiras interestatais, que instigam conflitos étnicos e religiosos. Tudo isso, em conjunto, vem catalisando a existência dessa enorme população de excluídos do mundo comum, refugiados que fogem do arco da crise, sem encontrar destino e acolhida.
O número de pessoas que buscam asilo, estão internamente deslocadas nos seus países ou são refugiadas por obra de guerras e perseguições se elevou de 59.6 milhões em 2014 para 65.3 milhões de pessoas no final de 2015. Isso significa que uma em cada 113 pessoas da população mundial está fora do mundo comum e não tem acesso ao direito à hospitalidade universal. Cerca de 51% de refugiados do mundo são crianças, muitas separadas dos pais e viajando sozinhas à procura de destino. A situação da Síria, a do Sudão do Sul, a do Iêmen, do Burundi, da República Centro-Africana são forças alimentadoras desse fluxo de pessoas de países de baixa renda que enfrentam essa dura realidade.
O limbo em que se encontram os excluídos do mundo comum, mais tenebroso que os círculos do inferno de Dante, é, na perspectiva de uma razão abrangente da humanidade, a mais grave tensão difusa que permeia a vida internacional.
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*Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP; foi ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso
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