- O Globo
Facilitar a posse de arma não forma uma política de segurança, pode dar a ilusão de cumprimento de promessa eleitoral, mas ainda faltam medidas efetivas
O polegar e o indicador esticados em forma de arma. Esse foi o símbolo da campanha do presidente Jair Bolsonaro. A decisão de ontem é compatível com o que ele disse em palavras e gestos durante a campanha. Só não é uma política para combater a violência que tira mais de 60 mil vidas no país. Há uma dissonância entre o voto majoritário que o levou à Presidência e a pesquisa de opinião em que a maioria não apoia a posse de arma.
É fácil entender essa diferença. O presidente foi eleito porque atraiu o eleitorado com uma série de promessas e significados. Ele conseguiu encarnar o antipetismo mais do que qualquer outro. Definiu-se pelo não ser. Mas ainda há muito que ele precisa dizer e decidir para que se saiba o que será o seu governo.
O presidente optou, orientado pelos seus ministros, a baixar um decreto para a flexibilização da posse de armas, contornando o Congresso, e assim usar a caneta para entregar o que prometeu.
A liberação de posse para “pessoas de bem”, como disse o presidente, embute imensos riscos. Um deles é o de armar o crime. O presidente sabe por experiência própria que os bandidos conseguem com facilidade desarmar a pessoa assaltada, mesmo as que têm treinamento. As estatísticas mostram que o que aconteceu em 1995 com o então deputado Bolsonaro não foi caso isolado. Há inúmeros assaltos nas ruas e em casa em que as armas legais são levadas pelo assaltante e passam a integrar o arsenal do crime. Outro risco é o de aumento da violência contra a mulher, que tem apresentado números epidêmicos. A maioria dos crimes ocorre dentro de quatro paredes.
O país vive uma sangrenta luta pela posse da terra, em que grileiros se apoderam, pela força das armas, de terras indígenas e invadem terra pública usando capangas. Sempre foi assim, mas agora pode aumentar. Existe infelizmente uma conexão entre alguns produtores de áreas de fronteira agrícola com o crime de grilagem. Os elos dessa cadeia vão lavando o crime. Mas à base de muita violência. Hoje qualquer pessoa que se disser proprietário rural, mesmo que sua terra tenha origem ilegal, pode comprar mais de quatro armas. E o recadastramento se dá 10 anos depois. Isso tudo no meio dos vários sinais de enfraquecimento da agenda de proteção dos índios, ou do meio ambiente. Nos crimes urbanos, não há qualquer evidência de que o aumento de posse de armas irá reduzir a taxa absurda de homicídio no Brasil.
Falta ao governo Bolsonaro uma política de segurança, um projeto para enfrentar as várias complexidades do crime no Brasil. Facilitar a posse de arma ou impedir a punição dos policiais que matam em serviço não formam uma política de segurança e é isso que está fazendo falta desde o princípio. Se uma das promessas de Bolsonaro ao eleitorado foi a de que ele enfrentaria e derrotaria o crime, com que medidas ele pretende fazer isso? Como em outras áreas, não há nessa um conjunto de propostas, uma lista de prioridades com as quais seu governo informe como mudará a conjuntura brasileira. E o pressuposto de qualquer cidadão, de qualquer pagador de impostos, é de que o Estado o proteja e não de que ele tenha que se defender sozinho, armando-se.
Até agora tudo o que se viu foi a grande especulação em torno das ações da Taurus. Durante todo o ano passado, as ações da empresa oscilaram na casa de R$ 2. De setembro para frente, com a perspectiva de vitória de Bolsonaro, elas dispararam. No dia 20 daquele mês, já haviam dobrado para R$ 5,30 e continuaram a escalada até o pico de R$ 12,00 em 19 de outubro. Em apenas dois meses, a valorização chegou a 440%. Nos dias seguintes à vitória do candidato do PSL, as ações já passaram por uma correção, caindo para R$ 4,79. Subiram a R$ 8,40 no início deste mês e ontem fecharam em queda de 22%, a R$ 6,45.
Enquanto o mercado faz a festa com o compra e vende de ações da fabricante de armas, o presidente pode dizer que cumpriu o que prometeu, mas o país permanece vivendo uma onda crescente da violência. O principal defeito do decreto é que ele passa a impressão de que Bolsonaro cumpriu o que prometeu. Mas o que estava embutido no gesto da arma na mão era a ilusão de que haveria uma resposta eficiente para o grave problema da violência no Brasil. Ainda não há.
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