Folha de S. Paulo
A duradoura e livre sabotagem a vacinas não
veio (só) do negacionismo
Por trás dos milhões de mortes, o desespero
brasileiro pelas vacinas sabotadas. Por trás das duas imposições trágicas, uma
fortíssima ação quadrilheira a causá-las e explorá-las. Jair Bolsonaro está em
fuga, como
o Lázaro nas matas de Goiás. Com a diferença de que centenas de policiais
caçam um serial killer, e o outro tem a Polícia Federal sob controle e a favor
também dos comparsas.
Aconteciam coisas nos três dias anteriores
ao vazamento do tumor lancetado pelos
irmãos Miranda. Atitudes disfarçadas, fora de sintonia com as
circunstâncias e, no entanto, sugestivas de serem assim por intenção. Nenhuma
resposta do vice Hamilton Mourão a Roberto D’Ávila, por exemplo, dispensou uma
mensagem inexplícita, mas inequívoca. O homem calmo, “de direita em economia”,
mas “não na vida em geral”, ao lado de Bolsonaro por lealdade. E “se o
substituir” —o restante nem importa.
No mesmo dia, Arthur Lira,
presidente da Câmara no velho estilo, saía dizendo a Evandro Éboli e Thiago
Bronzatto patatices ostensivas, mas não gratuitas. “A CPI é um erro”, “não vai
trazer efeito algum”, “falta circunstância” para impeachment, “não houve demora
para compra de vacinas”. “Não sou governo”, mas age para e com Bolsonaro. Nada
firme, tudo maleável, lá e cá. Assim, nessa hora, nada é de graça em quem ocupa
posto de observação privilegiada. Como dizendo vários “olha, eu não estou na
armação do que está vindo aí”.
Não precisariam estar. As revelações enfim encontraram o caminho certo. O governo de Bolsonaro não é só um bando de saudosistas da ditadura a empurrar a democracia de volta ao abismo. Ligações com milicianos, compras sucessivas de imóveis, facilidades ao desmatamento ilegal e ao contrabando de madeira, como ao garimpo ilegal e ao contrabando de ouro, negócios com cloroquina aqui e no exterior, desvio de dinheiro público em Câmaras, todas as medidas necessárias para bloquear a ação legal das polícias, e mais e mais. Nada disso vem da índole autoritária: é bandidagem muito lucrativa. Para a qual o autoritarismo e a intimidação servem, além do que lhes é próprio, de instrumento múltiplo.
Avançar no caminho certo será descobrir que
a duradoura e livre sabotagem a vacinas não veio (só) do negacionismo. Foi,
também ou sobretudo, tática de negócio sujo. Pfizer, Oxford-Astrazeneca,
Johnson & Johnson, Moderna, Sputnik V e Covax têm em comum a negociação
direta com o governo: sem intermediários, pois. Só a Covaxin
teve intermediação. De trapaceiros, empresas de fachada, fraudadores de
dados contratuais e já autores de um golpe de R$ 20 milhões no Brasil. E cheios
de conexões entre políticos e empresários.
“O
rolo é coisa do
Ricardo Barros” —Bolsonaro tenta lavar as mãos em resposta aos Miranda denunciantes
do golpe agora de R$ 1,61 bilhão (cada dose ao preço de quatro da Astrazeneca).
Ricardo Barros era o ministro da Saúde no governo Temer e operador do desvio
impune dos R$ 20 milhões. Mas Bolsonaro mente. O rolo não é só do deputado por
ele designado, vê-se que em escolha precisa, para líder
do governo na Câmara. Ou representante maior do próprio Bolsonaro entre os
deputados.
O general Eduardo
Pazuello, os coronéis Alex Lial Marinho, Elcio Franco e Marcelo Bento
Pires, da tropa posta no Ministério da Saúde, e integrantes da atividade para
apressar (caso único) o negócio com a Covaxin, são parte do grosso rolo. Arthur
Lira foi informado pelo deputado Luis Miranda da tramoia em curso no Ministério
da Saúde, mas se recusou a tratar do assunto e não cumpriu o dever funcional e
indispensável de acionar a Polícia Federal. Bolsonaro nem precisaria
envolver-se com a tramoia para se tornar mais vulnerável ao Código Penal do que
qualquer dos outros. Uma fala do seu diálogo com os Miranda é suficiente:
“Vocês sabem quem é, né? Se eu mexo nisso aí você já viu a m. que vai dar,
né?”.
eixa correr, é o que diz a melhor linguagem
de Bolsonaro, na qual reduzi uma palavra. Mais de um crime em uma só frase. E
ainda a mentirosa afirmação de recurso à Polícia Federal —se feito, foi para
determinar ao diretor da PF o desconhecimento do caso.
Da dispensa de Ricardo Salles, planejada
entre eles para emergências, ao que fizer agora, Bolsonaro está em fuga.
Porque, em dois meses a CPI da Covid deu ao Brasil, e aos cidadãos
responsáveis, o que o restante do país lhes negou, por interesse e covardia,
durante dois anos e meio.
Ódio só
Os críticos do ódio vigente são, muitos
deles, produtores do ódio. Tudo o que se refere a
Lula é uma comprovação dessa deformidade difundida também na
chamada mídia. O reconhecimento, pela maioria do Supremo, da
parcialidade persecutória de Sergio Moro a Lula foi tratado por
uma comentarista de TV, no seu estilo conversa de comadre, nestes termos: o
Supremo “vai passando a boiada”. Cada ministro igualado ao boiadeiro Ricardo
Salles, candidato às grades.
Logo um comentarista fez sua reflexão do
decidido pelo Supremo: “Destruiu todo o sistema de combate à corrupção”. Se
existisse, o sistema não teria permitido a corrupção que a CPI da
Covid o levou a comentar, logo em seguida.
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