O Estado de S. Paulo
Novo surto de populismo e autoritarismo no
mundo normaliza grosseria
No Pequeno Tratado das Grandes
Virtudes, o filósofo francês André Comte-Sponville define a polidez como “a
primeira virtude e, quem sabe, a origem de todas”. Também a chamamos de bons
modos, educação ou gentileza, mas “polidez” tem a mesma origem de “política”.
Pertencem ao mesmo lugar: a polis, a cidade. Não é possível conviver bem em
sociedade na falta de uma e de outra. Tanto que a grosseria de um líder revela
suas intenções autoritárias.
Esse novo surto de populismo e autoritarismo no mundo vem acompanhado de uma normalização da grosseria. A polidez é a domesticação de nossos instintos. Todos temos impulsos agressivos. A educação nos ensina a não sermos arrastados por eles. É o que nos separa dos animais – e dos mal-educados.
A educação impõe limites ao indivíduo.
Populistas e autoritários, que no fundo são o mesmo líder em estágios
diferentes, rejeitam limites ao seu poder. Daí a sua rejeição à política, a
arte da negociação e da concessão. Seu ponto de partida é o não pertencimento à
polis, ao urbano. Por isso, suas referências a um país profundo, sua nostalgia
rural, suas fantasias de um passado rústico, sua desconfiança da inovação, da
ciência, da gestão.
O alvo preferencial da grosseria desses
líderes são as jornalistas. Em seu imaginário, jornalistas estão à sua mercê:
são obrigados a ouvir em silêncio o que eles têm a dizer. Essa é também a sua
primitiva percepção das mulheres: seres criados para aturar sua grosseria,
inconsistências e inseguranças.
Esses líderes são grosseiros com todos que os frustram. Mas eles crescem diante das mulheres, dada a mescla de insegurança e covardia, central em sua psique. Quando se sentem desafiados intelectualmente por uma mulher, diante de uma pergunta para a qual não têm resposta, partem para o ataque, como um rato acuado.
No dia 6 de agosto de 2015, durante debate
entre os pré-candidatos republicanos, Megyn Kelly, âncora da Fox News,
disse, numa pergunta dirigida a Donald Trump:
“O senhor chama mulheres das quais não gosta de porcas gordas, cadelas,
desgrenhadas e animais nojentos”. Depois do debate, Trump tuitou sobre a reação
de seus seguidores: “Uau, @megynkelly realmente bombardeada esta noite. As
pessoas estão enlouquecidas no Twitter. Divertido de assistir.”
Trump declarou depois à CNN, referindo-se a
Kelly no debate: “Havia sangue saindo dos olhos dela, sangue saindo de
sei-lá-onde dela”. Trump continuou alvo de críticas de Kelly e desenvolveu uma
paranoia em relação a ela. Seus frequentes ataques de cunho sexista à
jornalista levaram a Fox News, emissora amigável a Trump, a protestar
formalmente: “Sua obsessão extrema e doentia por ela está abaixo da dignidade
de um candidato presidencial que quer ocupar o mais alto cargo da terra”.
Se a mulher pertencer a uma minoria, maior
o incentivo. No dia 11 de maio do ano passado, a repórter Weijia Jiang, da CBS,
americana nascida na China, observou que Trump repetia que os EUA estavam
melhores do que qualquer outro país na pandemia: “Por que isso é uma competição
global para o senhor, se todos os dias americanos estão perdendo suas vidas?”
Trump respondeu: “Não pergunte a mim, pergunte à China”.
No dia 16, ao final da coletiva depois da
cúpula com Vladimir
Putin, a repórter Kaitlan Collins, da CNN, perguntou ao
presidente Joe Biden por
que ele estava confiante de que o líder russo mudaria de comportamento. Biden
respondeu: “Onde diabo – o que você faz o tempo todo? Quando eu disse que
estava confiante?”
Em seguida, antes de embarcar no Air Force One no aeroporto de Genebra, Biden parou para dizer aos repórteres na pista que devia um “pedido de desculpas” a Collins: “Eu não deveria ter sido tão sabe-tudo na última resposta que dei”. Collins aceitou o pedido. Todos erram. Mas alguns transformam a grosseria em método para esconder suas outras falhas.
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