O Estado de S. Paulo
Com o escândalo da vacina, nem sobrou tempo
para festejar a saída do incendiário
Sai o ministro da fogueira, do desmatamento
e da porteira aberta para a devastação, mas fica o devastador-mor, seu chefe, o
presidente Jair Bolsonaro. Não valeria a pena gastar rojões para festejar, nem
haveria tempo para uma celebração. Mais um escândalo, o da vacina indiana, a
Covaxin, já dominava o noticiário. Além disso, logo em seguida sairia mais um
lembrete da situação miserável de milhões de brasileiros. Com a disparada dos
preços, viver ficou 8,13% mais caro nos 12 meses até junho, segundo a prévia da
inflação divulgada na sexta-feira. Sem folga no orçamento, as famílias têm sido
forçadas a enfrentar grandes aumentos de itens essenciais, como comida,
eletricidade, gás de cozinha e gasolina. Se os freios funcionarem, a taxa anual
ficará em 5,9% até dezembro, segundo o mercado, ou 5,8%, de acordo com o Banco
Central (BC).
Se qualquer dessas previsões se confirmar,
a inflação, além de ficar muito acima da meta oficial, 3,75%, ainda vai
estourar o limite de tolerância, fixado em 5,25%. A prévia, desta vez apurada
entre 14 de maio e 14 de junho, é conhecida oficialmente como Índice Nacional
de Preços ao Consumidor Amplo-15 (IPCA-15).
Para conter a onda inflacionária, o BC continuará aumentando os juros básicos. Até dezembro poderá elevá-los dos atuais 4,25% para 6,25% ou 6,5%, mas, ainda assim, a inflação deverá permanecer bem acima dos padrões internacionais. Negociações entre inquilinos e proprietários mantiveram os aluguéis em níveis toleráveis. De resto, as famílias seguem tentando cortar gastos e pechinchando quando possível.
Mas esse é o mundo da maioria dos
brasileiros, uma realidade conturbada pelos preços em alta, pelo desemprego
elevado, pela vacinação atrasada e pela pandemia ainda devastadora, com média
de mortes próxima de 2 mil por dia. No mundo do presidente Jair Bolsonaro os preços
nem sempre importam e nem sempre se recorre à pechincha. Isso é visível nas
“possíveis impropriedades” apontadas em relatório do Tribunal de Contas da
União (TCU) sobre a contratação de 20 milhões de doses da Covaxin. Exemplo:
nada indica, segundo os auditores, tentativa de negociação do preço.
Esse preço, US$ 15 por dose, é mais alto
que os das seis vacinas já compradas. Não houve ainda pagamento, mas o valor da
compra, R$ 1,6 bilhão, já havia sido empenhado quando o noticiário começou a
dar destaque ao assunto. Com o empenho, a despesa foi pelo menos incluída, de
modo formal, na gestão orçamentária do Ministério da Saúde. Além de ser maior
que os cobrados por outros fornecedores, o preço acertado pela vacina indiana
foi, como apurou o Estadão, dez vezes superior ao anunciado seis meses
antes pela fabricante.
Alertado várias vezes, o presidente pareceu
pouco se importar com as dúvidas sobre a vacina e as condições da compra. Um
deputado bolsonarista, Luís Miranda, e seu irmão, Luís Ricardo Fernandes Miranda,
chefe de importação do Departamento de Logística do Ministério da Saúde,
disseram ter apontado os problemas a Bolsonaro. O funcionário mencionou
pressões para tentar conseguir a liberação mais veloz da importação. O
presidente deveria ter agido, mas, segundo a Polícia Federal, nenhuma
investigação foi solicitada.
Enquanto o novo escândalo ocupava o
noticiário, com destaque para a atuação da Precisa Medicamentos, envolvida como
intermediária na compra, Bolsonaro participava, sem máscara, de mais uma aglomeração,
dessa vez no Rio Grande do Norte. Numa cerimônia em Jucurutu houve discurso
presidencial e declamação de poema por uma garota de 10 anos. Fora dos padrões
bolsonarianos, ela usava máscara, mas foi levada a retirá-la para atender o
presidente. Não se fala em punição para quem induz uma criança ao risco do
contágio e da transmissão do coronavírus à família. Para que pensar na saúde e
na vida de mais uns poucos, depois de mais de meio milhão de mortos?
Enquanto o presidente punha em risco, mais
uma vez, a vida alheia, a CPI da Covid preparava-se para investigar a
bandalheira da Covaxin. Na quarta-feira, a patética defesa do governo pelo
ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, havia
sobrevivido menos de dez minutos aos primeiros comentários jornalísticos e à
reação do vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues, e do relator, Renan
Calheiros.
Acuado, o presidente encerrou a semana
atacando a imprensa, encastelado e fechado cada vez mais em seu mundo
particular, contrário aos valores democráticos, à vida partidária, à ciência, à
informação e às obrigações de um governante. Amplia-se o fosso entre o mundo
bolsonariano e o da maioria dos cidadãos. Em 1957 um autor francês, Jacques
Lambert, publicou Os dois Brasis, um livro sobre os diferentes graus do
desenvolvimento brasileiro. Diferenças econômicas persistem, mas a expressão
“dois Brasis” ganhou nos últimos dois anos e meio um segundo sentido, o do
contraste cada dia maior entre o país de Bolsonaro – do negacionismo, do
despreparo e do horror à democracia – e o dos brasileiros ameaçados por um
desgoverno cada vez mais perigoso.
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