EDITORIAIS
As muitas faces de um escândalo
O Estado de S. Paulo
Câmara e Senado se uniram para manter o
‘orçamento secreto’ e afrontar o Supremo com desassombro poucas vezes visto na
história recente
O Congresso mostrou que está disposto a
tudo, inclusive a descumprir nada menos que uma decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF), para seguir com a apropriação de uma expressiva parcela do
Orçamento da União por meio das emendas de relator-geral – tecnicamente
conhecidas como emendas RP-9 – sem qualquer tipo de fiscalização institucional.
O único controle, por assim dizer, sobre o manejo de cerca de R$ 16 bilhões em
emendas RP-9 no ano que vem, assim como foi em 2020 e 2021, será o conchavo
entre quem libera, quem distribui e quem recebe essa dinheirama, uma
concertação de bastidor orientada por qualquer coisa, menos pelo interesse
público e pelo respeito à Constituição. É o patrimonialismo escancarado.
Na segunda-feira passada, deputados e senadores aprovaram uma resolução conjunta que não apenas institucionaliza o desvirtuamento das emendas RP-9, como sustenta o sigilo sobre a origem e o destino dos bilionários recursos liberados por meio dessa rubrica orçamentária. Na Câmara dos Deputados, a resolução antirrepublicana foi aprovada por folgada maioria: 268 votos favoráveis e 31 contrários. No Senado, a oposição ao texto foi maior, mas insuficiente para fazer prevalecer a decência: 34 senadores votaram a favor da resolução e 32, contra.
O resultado é fruto do esforço pessoal dos
presidentes de ambas as Casas Legislativas. Tanto Arthur Lira (PP-AL), na
Câmara, como Rodrigo Pacheco (PSDMG), no Senado, manobraram para que o mistério
que ronda a liberação das emendas RP-9 permanecesse ao abrigo do escrutínio
público. A resolução aprovada prevê que o relator “poderá” dar publicidade aos
valores e aos “patronos” dos recursos, mas, obviamente, o tempo verbal não foi
escolhido por acaso.
Poucas vezes na história recente do País o
STF foi afrontado com tamanho desassombro por outro Poder. No dia 10 de
novembro, a Corte ordenou que o governo federal suspendesse imediatamente o
pagamento das emendas de relator e que o Congresso desse “ampla publicidade” às
liberações realizadas até aquele momento. O STF não fez nada além de reafirmar
o princípio da publicidade dos atos da administração pública inscrito na
Constituição. A ministra Rosa Weber foi direta ao afirmar que “o regramento
pertinente às emendas de relator distancia-se dos ideais republicanos”. Noutros
tempos, menos confusos, um “lembrete” desses nem sequer teria que ser feito ao
presidente da República e aos presidentes das duas Casas Legislativas.
Mas são tempos estranhos. Tão estranhos que
Rodrigo Pacheco, ao defender a astuciosa resolução, chegou a afirmar que “as
emendas de relator vão salvar muita gente no Brasil”. Faltou explicar ao
distinto público a quem ele se referia.
A bem da verdade, não há nada de ilegal ou
imoral na concepção originária da emenda RP-9: é uma rubrica de natureza
eminentemente técnica, por meio da qual o relator-geral corrige erros e
omissões no Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) encaminhado pelo Poder
Executivo. Com a adulteração do propósito da RP-9 para atender a interesses
paroquiais, fisiológicos e eleitoreiros, longe dos controles democráticos,
atropelam-se a Constituição e os valores republicanos.
A resolução aprovada pelo Congresso no dia
29 passado estabelece que as emendas de relator não se prestam mais apenas à
correção de erros ou omissões na lei orçamentária, mas podem ser usadas para
distribuição de recursos do Orçamento da União de acordo com as vontades do
Congresso, que assim usurpa uma prerrogativa que é, eminentemente, do Poder
Executivo.
A raiz do mau uso das emendas RP-9,
portanto, é a absoluta falta de governo no Brasil. O interesse primordial do
presidente Jair Bolsonaro não é governar o País, mas sim ser reeleito. Com qual
propósito, só ele sabe. Bolsonaro é um ergofóbico incapaz técnica e moralmente
de governar. Não surpreende que, a despeito de todos os sérios problemas que
estão sobre sua mesa à espera de solução, o presidente encontre tempo para
passar horas acenando para motoristas na beira de uma estrada ou para dirigir
ônibus pelas avenidas de Brasília. Enquanto isso, o Congresso toma conta do
Orçamento e dos destinos do País, desde que estes não colidam com os interesses
particulares dos parlamentares.
Uma pedalada no setor elétrico
O Estado de S. Paulo.
Para evitar mais desgaste à tentativa de
reeleição de Jair Bolsonaro, governo prepara empréstimo para impedir tarifaço
na energia em 2022
A lista de medidas populistas que o governo
adotará para conter prejuízos políticos no ano em que o presidente Jair
Bolsonaro disputará a reeleição não para de crescer. Depois de um aumento de
19,13% no ano e 30,27% em 12 meses, segundo o índice de inflação oficial, o
IPCA, as tarifas de energia não poderiam ficar de fora. A exemplo do que fez
Dilma Rousseff em sua tenebrosa passagem pela Presidência, Jair Bolsonaro
adotará, novamente, a estratégia de postergar reajustes e diluí-los ao longo
dos próximos anos, uma verdadeira pedalada elétrica.
A ideia começou a ser desenhada há algumas
semanas e ficou clara quando a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)
estimou que a conta de luz teria de subir, em média, 21,04% no ano que vem para
cobrir os custos das ações executadas para evitar apagões e um racionamento. A
nota técnica nada mais era do que um documento preparatório para justificar a
edição de uma Medida Provisória a ser publicada nos próximos dias, de acordo
com o Estadão/broadcast.
A crise hídrica esvaziou os reservatórios
das principais hidrelétricas no Sudeste e Centro-oeste e levou à necessidade de
importação de eletricidade do Uruguai e Argentina e ao acionamento de térmicas,
que naturalmente já são mais caras. Mas a alta mundial nos preços de gás –
motivada pela retomada das principais economias mundiais após o avanço da
vacinação, pela oferta limitada do insumo pela Rússia para a Europa e pela
substituição, para diminuir emissões, do uso de carvão em usinas da Ásia – teve
impactos, também, no Brasil. Já há termoelétricas a diesel em operação no País
com produção de energia mais barata do que a gerada por aquelas movidas a gás.
Nem mesmo a criação da bandeira da escassez
hídrica, que cobrará dos consumidores R$ 14,20 a cada 100 quilowatts-hora (kwh)
consumidos, foi capaz de fazer frente a esses gastos. Isso, inclusive, já era
esperado. A própria Aneel, ao fazer os cálculos de receitas e despesas do
setor, já havia projetado que a nova taxa deveria ser elevada a até R$ 25,00 a
cada 100 kwh. Quem teria atuado para impedir essa decisão foram o ministro da
Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto –
que há meses repete a investidores que a inflação já teria ou estaria próxima
de seu pico.
O rombo na conta das bandeiras tarifárias
será de ao menos R$ 13 bilhões até abril, segundo a Aneel. Essa é uma das
despesas que teriam de ser repassadas aos consumidores na data do reajuste
anual de cada distribuidora. Outra é o bônus prometido aos consumidores que
reduzirem o consumo entre setembro e dezembro de 10% a 20%. Se ainda havia
alguma dúvida sobre quem iria pagar o pato por contribuir para o enfrentamento
da crise, não resta mais.
Assim, o governo pretensamente liberal
adotará, pela segunda vez, a mesma medida inaugurada pela inolvidável Dilma
Rousseff às vésperas das eleições: um empréstimo bilionário de um consórcio de
bancos, estimado em R$ 15 bilhões, para cobrir os gastos das concessionárias de
distribuição com a compra dessa energia e “aliviar” o bolso do consumidor. O
aumento de 21,04% será diluído nas tarifas em um prazo de quatro a cinco anos.
Algo sobre o qual não foi falado até agora
e que terá forte impacto no financiamento é o atual patamar da taxa básica de
juros, de 7,75% ao ano, com perspectiva de subir a 9,25% em dezembro. O último
empréstimo do setor elétrico, fechado no ano passado para arcar com os efeitos
da covid-19 no segmento, foi de R$ 15,3 bilhões, com custo de CDI mais 3,79% ao
ano e prazo de amortização nas contas de luz até dezembro de 2025. Nessa época,
no entanto, a Selic estava em 2,25% ao ano.
Agora, o consumidor pagará por dois empréstimos na tarifa. Enquanto isso, seguem travados no Congresso os projetos de lei que se propõem a alterar o marco do setor elétrico, ampliar o mercado livre e dar fim a subsídios. Eles não avançam porque o governo não faz o mínimo que se espera dele: trabalhar pela aprovação de textos que resolvam problemas estruturais que elevam o custo da energia há mais de dez anos.
Congresso mantém emendas do relator sem
transparência
Valor Econômico
Com a entrega do Orçamento ao Centrão, a
régua da ética, da moralidade e da responsabilidade no uso de recursos públicos
baixou muito
Entra para os anais da história política
brasileira a desfaçatez com que os grupos ligados aos presidentes da Câmara dos
Deputados, Arthur Lira (PP-AL) e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) decidiram
impedir que seja conhecido de todos os patronos e os beneficiários de R$ 30,8
bilhões (até agora) em recursos públicos. A resolução aprovada na segunda-feira
pelas duas Casas atende mal e parcialmente a determinação do Supremo Tribunal
Federal de transparência total do processo de distribuição das emendas do
relator. Lira e Pacheco dizem que há “impossibilidade fática” de atender a
exigência da ministra Rosa Weber, e uma suposta tragédia em curso, igualmente
fática, de centenas de municípios terem obras paralisadas sem esses recursos.
Sob o comando do Centrão, e no Senado, de
um político novo, cotado para candidato à Presidência pela terceira via, mas
que se sente plenamente à vontade com orçamentos secretos, o Congresso se
apropriou do orçamento e tenta esconder uso de verbas públicas para fins
privados - eleitorais ou pessoais. Com o uso da lei de acesso à informação, o
“Estado de S. Paulo” levantou dezenas de nomes de patrocinadores de emendas, de
receptores de verbas bilionárias e de pequena parcela de seu uso - compras
superfaturadas de tratores, por exemplo.
Não existe chance de políticos verem passar
bilhões de reais passeando soltos por aí sem saberem de onde vêm e para onde
vão. Mas o distinto público não pode ter esse conhecimento e, o que é mais
grave agora, nem o Supremo Tribunal Federal. A impossibilidade, que nada tem de
“fática”, mascara objetivos coronelísticos da distribuição de recursos pelos
chefes do Legislativo e tenta apagar as pistas de um acordo, selado com verbas,
para salvar o presidente Jair Bolsonaro de um impeachment e garantir sua
disputa à reeleição. Apenas uma fresta aberta nos repasses secretos revelou,
por exemplo, que o pai e um primo de Lira foram agraciados por essas emendas.
A farsa das emendas do relator foi punida
no escândalo dos anões do Orçamento e a resolução do Congresso de 2006
restringiu essas emendas à “correção de erros e omissões”, ou seja, verbas
marginais. Mas como nada existe por lá sem uma finalidade, a mesma resolução
deixou em aberto que o relator atendesse “às especificações preliminares de
pareceres parlamentares”, ou seja indicações da Comissão Mista de Orçamento.
Erros e omissões então se transformaram em 28 itens do orçamento em 2020 e 22
no de 2021 (Poder 360).
O sigilo tornou-se a essência da RP9
turbinada. Afora dificultar o rastreio do dinheiro, o segredo encobre o fato de
que alguns deputados e senadores são mais iguais que outros ou menos iguais que
os aliados do Planalto. Não existe razão para isso nos regulamentos do
Congresso. As legendas do Centrão e aliados formam a maioria do Congresso e
portanto já tem o direito de obter maior volume de emendas que a oposição. As
emendas individuais e de bancadas estaduais atendem a essa realidade política.
A rigor a RP9 deveria ser extinta.
O Congresso não pensa assim, tanto que a
Câmara aprovou uma resolução enviesada mantendo as RP9 por 268 favoráveis e 31
contrários, e o Senado também, por 34 a 32. Para dificultar a identificação da
origem dos pedidos, que muitas vezes denuncia seus fins, as emendas do relator
agora atenderão a solicitações vindas não só de parlamentares, mas de “agentes
públicos ou da sociedade civil”, um estímulo à criação de muitos “laranjais”
nos currais eleitorais do Brasil, como disse o deputado Marcel van Hattem
(Novo-RS).
Outra esperteza da resolução é
aparentemente atender à determinação de fixação de um teto para as emendas do
relator determinando um mínimo para elas - ambos inexistiam. O Congresso
estabelece que as RP9 serão no máximo a soma das verbas destinadas a emendas
individuais e de bancada (que corresponde a 1,1% das despesas primárias), que
são equitativas, enquanto as do relator não. Para o Orçamento de 2022 serão R$
16,3 bilhões. Além disso, a resolução não torna obrigatória nem a identificação
de quem solicitou os gastos nem a distribuição igualitária dos recursos. E
ficam a critério do relator e da elite dos grupos aliados do Planalto.
Com a entrega do Orçamento ao Centrão, a régua da ética, da moralidade e da responsabilidade no uso de recursos públicos baixou muito. A exigência do STF ecoa a de um filósofo libertino francês do século XVIII: “Um pouco mais de esforço se quereis ser republicanos”.
Involução na Capes
Folha de S. Paulo
Além do Inep, órgão responsável por
avaliação e bolsas de pós enfrenta debandada
Primeiro o Inep, agora a Capes. Prossegue a
toque de caixa o desmonte de instituições destinadas à formação de jovens
brasileiros na gestão do ministro da Educação, Milton Ribeiro. No MEC sob Jair
Bolsonaro, até a pós-graduação toma o rumo da pré-história.
Repetindo o gesto extremo de coordenadores
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais na antevéspera do
Enem, meia centena de pesquisadores da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior encaminharam
ao ministério pedidos simultâneos de renúncia.
Entre os pioneiros estavam três
coordenadores e 18 consultores de avaliação de cursos de pós na área de
astronomia. Seguiram-nos colegas do campo da matemática, outros três gestores e
28 pareceristas.
A debandada teve por motivo, segundo os
demissionários, a pressão para aprovarem novos cursos presenciais e, em
especial, a distância. Eles ainda deploram alegado descaso da direção da Capes
na retomada da avaliação dos programas de pós-graduação.
A categorização do sistema de pós sempre
foi uma pedra no sapato de instituições acadêmicas, porque dá transparência ao
público da qualidade aferida por especialistas independentes a serviço do MEC.
Universidades particulares são as mais refratárias à avaliação, porque perdem
prestígio e alunos ao sofrer rebaixamento, arriscando-se até a perder o
credenciamento.
São 49 áreas de avaliação, agrupadas em
nove campos temáticos e três "colégios" —a defecção por ora afetou
mais um deles, o que reúne ciências exatas e da Terra. A avaliação realizada de
quatro em quatro anos, alternando áreas, foi suspensa em setembro por decisão
liminar da Justiça.
Coordenadores em retirada criticam a Capes
por não se empenhar no recurso judicial e por tentativas da direção de
autorizar a abertura de novos cursos por programas que não passaram pelo
processo quadrienal. O MEC alega que as instituições ficam prejudicadas ao se
verem impedidas de abrir turmas de mestrado e doutorado.
A Capes tem como presidente Claudia Mansani
Queda de Toledo, doutora em direito pelo Instituto Toledo de Ensino, de Bauru
(SP), que pertence à sua família. O ministro graduou-se na mesma instituição,
cuja pós já teve nota rebaixada, mas, após recurso à Capes, viu seu conceito
elevado para 4, em 2020, numa escala de 7.
Parecem não ter fim os desmandos no MEC.
Seria surpresa colher resultados diversos após Bolsonaro entregar a educação a
uma sucessão de dirigentes despreparados, empenhados em impor à pasta uma
agenda retrógrada.
O risco ômicron
Folha de S. Paulo
Nova cepa evidencia mais uma vez que as
vacinas devem chegar a todo o mundo
A despeito do compreensível alvoroço
provocado pela nova cepa do Sars-CoV-2, batizada de ômicron, são ainda
numerosas as incógnitas que a cercam. As preocupações com a variante, com casos
já registrados em cinco continentes e, desde esta terça-feira (20), também no
Brasil, derivam de sua quantidade de mutações.
Teme-se, em particular, que as mais de 40
alterações detectadas em sua proteína S —espécie de chave que o patógeno
utiliza para adentrar as células do corpo humano— faça com que os anticorpos
gerados por infecções pretéritas ou pela vacinação não sejam eficientes para
combatê-la.
Mas as respostas definitivas a respeito não
só do nível de proteção conferido pelos imunizantes existentes como também da
transmissibilidade da nova cepa e da gravidade da doença gerada por ela devem
demorar dias ou semanas.
Os potenciais riscos apresentados pela
ômicron, no entanto, foram suficientes para que a Organização Mundial da Saúde
(OMS) a classificasse como uma variante de preocupação, colocando-a, dessa
maneira, na mesma prateleira ocupada pelas outras quatro cepas do coronavírus
(alfa, beta, gama e delta) que provocaram estragos ao longo da pandemia.
Na segunda (29), um documento
técnico da OMS avaliou como "muito alto" o risco
global de novos surtos causados pela variante.
O clima de alerta foi compartilhado também
pelos ministros da saúde do grupo de países ricos do G7. Numa reunião de
emergência realizada na mesma segunda, eles afirmaram que a nova variante requer
ações urgentes.
A mais importante delas talvez seja
garantir que todas as populações tenham acesso às vacinas, que, além de
proteger, evitam o surgimento de mais cepas perigosas. Diante disso, o G7 se
comprometeu a fornecer assistência operacional às nações mais pobres e a
cumprir os compromissos de doações de imunizantes.
Tais promessas, contudo, não só estão aquém
do necessário para promover uma ampla imunização mundial como ainda estão longe
de se materializar efetivamente.
Até o momento, segundo a OMS, mais de 80%
das vacinas produzidas foram destinadas aos países do G20, enquanto as nações
de baixa renda, muitas delas na África, receberam apenas 0,6%.
Reduzir essa desigualdade o quanto antes é, como se sabe, o meio mais eficiente para que todos, ricos e pobres, venham a estar realmente protegidos da Covid-19.
Senado precisa ser rigoroso na sabatina de
André Mendonça
O Globo
As sabatinas devem examinar as duas
exigências que a Constituição impõe a indicados ao Supremo: “notório saber
jurídico” e “reputação ilibada”
Depois de quatro meses e 17 dias, enfim o
ex-advogado-geral da União André Mendonça, indicado pelo presidente Jair
Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal (STF), será sabatinado hoje pela
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Os senadores da CCJ
deveriam submetê-lo a uma sabatina para valer. Sabatinas não são meras
formalidades, e não faltam perguntas a fazer a Mendonça.
Em primeiro lugar, as sabatinas devem
examinar as duas exigências que a Constituição impõe a indicados ao Supremo:
“notório saber jurídico” e “reputação ilibada”. Mas não só. Precisam também
avaliar a filosofia jurídica, desvendar o núcleo de convicções morais e tentar
revelar como seria seu comportamento em casos difíceis, com interesses
conflitantes. A religião do candidato, tão destacada no caso de Mendonça, não é
questão central.
É fundamental, em contrapartida,
questioná-lo sobre os abusos da antiga Lei de Segurança Nacional, usada para
tolher a liberdade de expressão de críticos ao governo quando comandava a
Advocacia-Geral da União (AGU). Ou sobre sua postura quando, durante a
pandemia, defendeu as teses anticientíficas do presidente Jair Bolsonaro. Nada
disso tem relação com ele ser “terrivelmente evangélico”. Mas muito com sua
convicção democrática, essencial a quem pleiteia servir na mais alta Corte do
país.
O senador Davi Acolumbre (DEM-AP),
presidente da CCJ, protelou a sabatina por interesses pessoais. Usou o desejo
de Bolsonaro de ter um conservador no Supremo para pressionar o governo em
busca de favores. Parece ter se inspirado no então presidente do Senado dos
Estados Unidos, Mitch McConnell, que segurou em 2016 a sabatina de Merrick
Garland, indicado à Suprema Corte por Barack Obama. A teimosia de Alcolumbre se
tornou tão ridícula que ele acabou cedendo e aceitou marcar a sabatina.
Em vez de copiar a estratégia da
protelação, o Senado brasileiro faria melhor se repetisse o rigor com que os
americanos costumam sabatinar os candidatos a vagas na Suprema Corte. Dos 27
indicados entre 1967 e 2018, 18 foram submetidos a sabatinas de pelo menos
quatro dias. Muitas vezes, são convocadas testemunhas para acareação com o
candidato. Dos 163 indicados desde 1789, 39 não foram aprovados. No Brasil,
apenas cinco foram barrados, todos no governo Floriano Peixoto (1891-1894), que
entrara em conflito com o Congresso.
Há nos Estados Unidos uma divisão até mais
rígida entre juristas progressistas e conservadores, e indicações são vetadas
com base nela. Mas candidatos sem qualificação jamais chegam à disputa. O que
importa na indicação ao Supremo, lá ou aqui, não é a inclinação política, a
ideologia ou a religião do candidato. É o saber jurídico e a independência.
Mendonça tem preparo suficiente para responder a uma sabatina rigorosa e
conquistar, assim, a aprovação dos senadores. Ele, o Senado e o Supremo só
terão a ganhar com isso.
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