Política Democrática Online**
“Brasileiro, profissão esperança” – era
assim que costumávamos nos autodefinir, na trilha do belo musical de Paulo
Pontes sobre Dolores Duran e Antônio Maria, ainda nos anos 1970. A ditadura,
afinal, era como que “externa” a nós, imposta de fora. Não a queríamos, só
éramos forçados a suportá-la. O que talvez explique certo pessimismo hoje
disseminado é a descoberta – terrível – de que a esperança não é
necessariamente nossa profissão e muito menos a segunda natureza. De dentro de
nós mesmos, de pessoas como nós – amigos, parentes, vizinhos – podem brotar
dezenas de milhões de votos capazes de jogar o país, como jogaram em 2018, nos
braços da extrema-direita. Uma escolha, historicamente desesperada, de quem
quer voltar atrás no tempo, negar conquistas, fugir a incertezas e desafios.
A experiência da luta contra o regime ditatorial nos educou, é verdade, mas é preciso entender bem o que houve. Aprendemos, por exemplo, que o “centro político” é um conceito essencial, pois nele se cruzam, se chocam e, também, se conciliam as tendências fundamentais de toda uma conjuntura. O centro não é um termo médio amorfo, um espaço povoado por mornos ou desmotivados para a luta, mas, sim, o elo que é preciso pegar firmemente com as mãos para fazer mover, num sentido ou no outro, o conjunto das forças políticas e a própria sociedade. De nada adianta autoexilar-se num gueto, batendo a mão no peito e apregoando a condição de “verdadeira” esquerda – condição talvez sincera, certamente impotente.
Considerar aquele centro como terreno
estratégico define a questão da hegemonia e das forças que se credenciam para
dirigir as demais numa dada circunstância. Na ditadura, o sentido da luta
contra o voto nulo e pela valorização das eleições foi precisamente este:
animar um centro organicamente comprometido com a redemocratização do país, no
qual pudessem convergir forças e personalidades variadas, inclusive as que
paulatinamente se destacavam do regime – Teotonio Vilela, Aureliano Chaves ou
José Sarney. E havia uma esquerda, uma parte dela ao menos, que dava
legitimidade a este movimento progressista, que desaguaria na Constituição de
1988.
Na situação de agora, um motivo de
desesperança – ou, se quisermos, uma interrogação para a qual ainda não temos
resposta – decorre da incerteza sobre o principal partido da esquerda, sua
linha básica e a orientação dos seus simpatizantes, que não foram “treinados”
na política de frente. Será que basta acenar simbolicamente para o centro,
escolhendo, tal como em 2002, um vice-presidente “conservador” para compor a
chapa? A intenção será só a de “acalmar os mercados”, sugerindo relações de
“paz e amor”? Ou, ao contrário, haverá algo de novo na ação institucional e na
definição de políticas que não copiem o velho desenvolvimentismo?
A inquietação, na verdade, não deve ser
estranha ao próprio núcleo da campanha petista. O senador Randolfe Rodrigues
demonstra instinto apurado quando constata a reconstituição de um poderoso
bloco em torno de Bolsonaro, militares e Centrão (“Bolsonaro vencerá se Lula
não for mais plural”, Metrópoles, 03.04.2022). Um conjunto que não está
suspenso no ar, uma vez que esta extrema-direita no poder tem sustentação na
sociedade: os 25 ou 30% que apoiam irrestritamente Bolsonaro são uma espécie de
aríete antidemocrático pronto para ser acionado contra instituições-chave, como
o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ou
qualquer outra. E um eventual segundo mandato do atual presidente, como toda a
literatura tem repetido a propósito da farta safra de populistas autoritários,
seria um risco ainda maior do que tentativas canhestras de golpe, como em
setembro de 2021.
Estadistas se movem audaciosamente na hora
do perigo. Tomam a iniciativa de procurar desafetos, curar ressentimentos,
reestabelecer pontes com adversários de ontem, sem nenhuma exceção. O senador
Randolfe menciona os palanques das diretas-já, cruciais para a eleição da chapa
Tancredo-Sarney e a consequente derrota do regime de 1964. A menção é
pertinente porque se trata, também, de acolher forças e personalidades da
direita democrática, bem como seus eleitores, em torno da candidatura
oposicionista mais forte. Além do mais, aquela ação típica de estadista, se
efetivada, teria um efeito pedagógico não desprezível sobre os adeptos de
sempre, mostrando a estes, num momento decisivo, que a vida em democracia
sempre requer embates e acordos, dissensos e consensos, com exclusão só de quem
ameaça a própria convivência civil.
Ao longo dos anos, a falta desta pedagogia
terá sido, em boa medida, a responsável pelo déficit de recursos que ora
sentimos para vencer o adversário nas urnas e diminuir na sociedade o
expressivo número de brasileiros com inclinações autoritárias. Não se pode
esquecer que, com a frente democrática de antes, o país afinal pôde respirar por
algumas décadas ares de “esperança e mudança”. Estas, contudo, são páginas já
escritas por gente como Ulysses e Tancredo. Há outras mais, igualmente
decisivas, a serem escritas aqui e agora. O feito será repetido?
* Luiz Sérgio Henriques é tradutor e
ensaísta
** Artigo produzido para publicação na
Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e
editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada
ao Cidadania.
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