Folha de S. Paulo
Bolsonaro ameaça a democracia, e a TV não
está sabendo mostrar isso
Como reagir quando o presidente
da República exalta a ditadura ou seu filho
faz chacota com a tortura sofrida por uma jornalista? A reposta não é
simples, mas é preciso ter em mente que tempos extraordinários exigem um
telejornalismo extraordinário.
Muita gente argumenta que reproduzir as
bravatas de Bolsonaro na televisão apenas alimenta a difusão do seu discurso.
Seria melhor, segundo esse raciocínio, não mostrar o presidente falando e
apenas resumir, mediado pelo texto jornalístico, o que ele quis dizer.
Já acreditei nisso, mas hoje tenho dúvidas
sobre a eficácia desta estratégia. Talvez sirva para figuras que dependem
basicamente da promoção pessoal, como o deputado
que passou uma noite no Congresso para não colocar a tornozeleira eletrônica.
Não é o caso do presidente. Esconder os absurdos que profere parece apenas
birra. Com as fontes de informação hoje tão difusas, o que ele fala,
infelizmente, chega de qualquer maneira ao ouvido de quem deseja ouvi-lo.
Em momentos como o do 31 de março, quando Bolsonaro diz que sem o governo militar "seríamos uma republiqueta", não basta fazer um contraponto, lembrando que houve perseguição, tortura e assassinatos de opositores do regime. Isso é o mínimo.
É preciso, creio, subir o volume. Desenhar
da forma mais didática possível por que este discurso é ofensivo. Explicar o
que está por trás desta insistência em louvar tempos sombrios. Parar de apenas
criticar o discurso de raiz autoritária e mostrar as consequências possíveis de
um ataque à democracia.
No caso do deboche de Eduardo Bolsonaro à tortura sofrida por Miriam Leitão, a
ironia é que o ataque confirma justamente o que a jornalista escreveu. O
deputado reagiu em resposta a um artigo no qual ela afirmava que Jair Bolsonaro
"é um perigo para a democracia".
Miriam fez algo que nenhum telejornal na TV
aberta fez até agora: criticou o discurso da chamada
terceira via, que aposta na confusão da falsa equivalência e coloca o atual
presidente e o ex-presidente Lula num mesmo saco. "Não há dois extremistas
na disputa, mas apenas um, Jair Bolsonaro. Semana passada, novamente, Bolsonaro
provou que ele é um perigo para a democracia", escreveu.
A repercussão da ofensa do deputado à
jornalista foi muito mais centrada na repugnância da mensagem dele do que na
força da mensagem dela. Acho que um caminho necessário, neste momento, entre
outros, é explicar melhor qual é este perigo para a democracia. Da forma mais
simples e elementar possível.
*****
"Julia", no HBO Max, conta a
história de uma das pioneiras na arte de cozinhar na televisão. Julia Child,
vivida por Sarah Lancashire, já era coautora de um livro sobre culinária
francesa quando sugeriu a um canal público, em Massachusetts, em 1962, a
criação de um programa no qual ensinaria como fazer um coq au vin ou um boeuf
bourguignon.
Um dos interesses dos primeiros episódios
da minissérie é o embate de Julia com um dos diretores do canal, que considera
a proposta do programa "frívola" para uma TV de cunho educativo.
"Posso estar na indústria da televisão, mas TV pública não é televisão.
Não é entretenimento." Ele está defendendo um ponto de vista elitista,
muito comum na época, e ainda não enxerga que é possível combinar informação de
qualidade com diversão.
Esse debate faz pensar no que virou a TV
Brasil, o canal público que Bolsonaro prometeu extinguir ou privatizar, mas que
foi transformado numa ferramenta de promoção do governo. Como o comício
disfarçado de culto que o canal transmitiu ao vivo nesta semana, numa
inauguração com a presença do presidente. Nem informação nem diversão. Só
propaganda.
*Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP
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